O
mal feito dos políticos brasileiros ganhou destaque na mídia nos últimos
tempos. Episódios que não deveriam acontecer se repetem com frequência
assustadora na administração da coisa pública nos três níveis de poder. A ampla
divulgação desses episódios é resultado do clima de abertura política e de
liberdade presentes na sociedade brasileira nesses últimos trinta anos. Esse
ambiente de liberdade existente hoje em dia sugeriu que a corrupção aumentou,
pelo menos é a percepção da maioria dos brasileiros, conforme os números da
pesquisa divulgada recentemente pela Anistia
Internacional. No entanto, esse é um tema sempre presente na história política
do país e é difícil saber se objetivamente estamos pior ou se permanecemos tão
mal como sempre no que se refere à corrupção e outros males da gestão pública.
Os mais velhos se lembram que Jânio Quadros foi eleito, em 1960, com a bandeira
moralizadora, prometendo varrer a corrupção da vida pública considerada um dos
grandes males do país. Voltando mais no tempo sabemos que a República foi
proclamada, no já distante século XIX, tendo por justificativa o projeto moralizador
de Augusto Comte e do seu amor à humanidade. Tinha-se, dizia-se na ocasião, uma
monarquia incapaz de resolver nossos problemas e onde o universo político
atingiria um nível de corrupção incorrigível, apesar da intocável figura do
monarca. A alternativa possível era mudar o regime, avaliaram os líderes do
movimento republicano. Esses fatos não são novidade para quem percorre os
livros de história ou sociologia do Brasil. E há mais: O golpe de 64 teve,
entre suas justificativas, erradicar a corrupção do espaço público, mas o
governo revolucionário logo se viu nela envolvido, ainda que pouco divulgada
devido ao autoritarismo do regime. Em nenhum momento da nossa história pátria, vivemos a
sensação de pertencer a uma sociedade bem estruturada moralmente. Nem nos
tempos da colônia, onde a moral contrareformista era fiscalizada com mão de
ferro pela Santa Inquisição na união Estado - Igreja, deixou-se de experimentar
a corrupção, o contrabando e o mal feito contra o erário real em grandes
proporções.
Essas
referências históricas servem para indicar que a corrupção sempre esteve
presente na história pátria e, no nível que se encontra entre nós, tem raízes
no modelo de Estado e no modo como ele é administrado desde os tempos da
colônia. Essa realidade mostra que os problemas da Política vão além da
formação pessoal, contempla mais que a tensão entre valores morais e culturais
mencionada por Max Weber, mas reproduz problemas de nossa tradição cultural que
reforçam o mal feito. Esses elementos precisam ser conhecidos pela sociedade,
debatidos, para serem rejeitados e punidos. Essa parece ser a melhor estratégia
de lidar com os males que temos visto na política.
Cada
homem pertence a uma comunidade, que lhe fornece uma compreensão de mundo, que teceu seu
entendimento da realidade e tudo isso é muito maior que o mundo de cada
indivíduo. A pátria é um valor que não se pode desconhecer. A sociedade é
responsável por boa parte da vida e da felicidade possível de se alcançar.
Ainda que a existência de cada um seja resultado das escolhas que faz, ela não
se realiza à parte da circunstância em que vive cada homem. Talvez seja mais exato dizert que o homem é um ser dfe relações, dependendo sua existência da sociedade onde vive. A política e a vida social não são
descartáveis da vida pessoal e muitas vezes os valores que elas defendem (a
defesa da pátria por exemplo) conflitam com os princípios éticos estabelecidos
(não matar). No entanto, de modo geral semelhante tensão, ensina-nos Max Weber,
não invalida a existência de princípios morais universalmente aceitos. Também
não legitimam práticas totalitárias e a máxima de que fins bons justificam o
emprego de meios ruins, muito menos corroboram o mal feito, a corrupção e o
descaso com a coisa pública.
Examinar
a vida humana não é só descrever o que tentamos fazer, mas é pensar o que temos
que fazer com o que a vida fez de nós, como indivíduos e como sociedade. A
existência da vida livre do indivíduo singular em meio à uma cultura dá
nascimento às preocupações éticas. A Ética é o fio de ouro que amarra as
criações culturais e as relações entre as pessoas. Ela traz, para a consciência
pessoal, o sentido de pertença à humanidade, mesmo que isso seja vivido como
conflito entre propósitos pessoais e valores sociais. Essa circunstância nos
coloca diante do fato de que o sentido da existência há de ser construído entre
levar adiante um projeto vital e a necessidade de assumir a responsabilidade por
escolhas nos limites de princípios socialmente reconhecidos. O homem só pode se
realizar quando conduz o fazer de seu mundo pessoal no respeito à dignidade dos
outros, valor maior da cristandade ocidental. E é nesse espaço de
relacionamento que se pode falar de transcendência possível como a
ultrapassagem de limites pessoais para a realização de uma vida melhor.
O
desejo de viver um novo tempo em nosso país e a persistência de práticas
indesejadas, que nesses últimos anos também surgiram em outros países, foram oportunidade,
para o Dr. Selvino Malfatti e eu refletirmos sobre os problemas da Política e
da Ética. O livro nasce de um esforço para tratar, ainda que não nos moldes
acadêmicos a que estamos mais habituados, do problema da corrupção e da
imoralidade em geral, temas dos noticiários diários. Esclareça-se, é necessário,
que os textos originalmente foram preparados como artigos de periódicos
regionais e, mesmo sem possuir a metodologia rigorosa da investigação científica,
usam conceitos precisos e buscam a objetividade no tratamento dos problemas.
Eles têm a pretensão de trazer de modo simples, ao grande público, os problemas
políticos e éticos, permeados de uma reflexão sobre os fins da sociedade e o
sentido da vida. É esta a base do livro Política
e Ética editado, em Curitiba, pela CRV que hoje estamos apresentando a essa
sociedade literária e alguns convidados. Nenhuma mudança virá da sociedade sem
um debate amplo dos problemas abordados no livro, um debate que enfrente tanto
a herança cultural de raiz patrimonial da sociedade brasileira, como a
desorganização do modelo de moral tradicional prevalente entre nós até poucas
décadas.
O
dito acima ajuda a entender que a corrupção e outros problemas políticos como a
mistura entre os bens públicos e privados têm raízes antigas, vêm da herança
patrimonial, que Portugal assimilou do convívio com os árabes, povo que ocupou,
por séculos, a Península Ibérica. A tradição patrimonial não é causa única da
corrupção nacional, a tentação ao mal feito é universal, mas o patrimonialismo
cria um ambiente favorável para que ela persista. Se a política impõe o desafio
de estabelecer os fins da sociedade, esse precisa nascer de novas práticas para
alcançar melhores resultados que hoje é o desejo dos brasileiros. Isso
significa romper com a enorme burocracia do Estado, com a prática do
favorecimento dos amigos, com o tratamento desigual dos cidadãos e com a praga
do idealismo jurídico que obriga o
impossível e irrealizável, estabelecendo um mundo surreral de leis que colam e
que não colam, numa confusão da qual nem o Estado escapa. O que dizer do
princípio de que a saúde é um direito de todos e um dever do Estado? Enfim, no
plano da cultura será preciso firmar as bases da democracia liberal, da disputa
legítima de interesses, respeitar as leis, estabelecer mecanismos eficientes de
controle do uso da máquina pública, mas sobretudo criticar, desde dentro, a
organização do Estado onde a ideologia e as práticas reinantes fortalecem o
patrimonialismo, o privilégio e o uso público da máquina governamental em
benefício privado. Está nisso a raiz da procura de benefícios particulares,
independente de como se organiza a máquina pública, do desrespeito ao espaço
coletivo, da apropriação indevida pelos particulares do que é público. A
expressão sofisticada desses fatos é a negociata, frequentemente denunciada, de
empresários com agentes do governo. Para a classe média o problema se mostra,
por exemplo, na ocupação indevida dos jardins e praças públicas para pequenos
negócios particulares, prática tão comum em nossa cidade e, na forma mais
grotesca, na invasão dos sem isso e sem aquilo nas terras e propriedades
públicas e particulares. Olha-se o patrimônio público como um tesouro sem dono do
qual pode-se apropriar sem constrangimento, pois o que é público não tem dono na
visão patrimonial, ou melhor, o dono é o rei muito rico e que mora distante no
além mar (ou em Brasília) e tão longe ele mora que não dá notícia do modo como
se trata o que é dele e que o cidadão não sente como coisa de todos, base da res-pública.
Por
outro lado, a falta de discussão moral que situe o problema moral nos limites
da razão humana, a ausência de limite da juventude educada na crença de que é
proibido interditar desejos, as mudanças profundas no entendimento dos valores
nucleares da cultura, o desejo ansioso e permanente do gozo contínuo e
irresponsável presente hoje em dia numa forma de hedonismo angustiado que se
espalhou pelo mundo, tudo contribui para o enfraquecimento do tecido social.
Alguns desses problemas são percebidos localmente, mas são questões universais
de uma sociedade de massa que Ortega y Gasset associou, no século passado, à
invertebração histórica. Invertebração que consiste na perda do compromisso de
fazer bem feito os desafios pessoais e de não reconhecer socialmente a
liderança de competências e talentos, impedindo que a exemplaridade moral e a
excelência pessoal conduzam a vida social. Invertebração que é, essencialmente,
produto da crise de valores e da falta de compromisso com aquele núcleo íntimo
e insubornável que é a consciência moral, núcleo que nos impede de mentir para
nós mesmos, pois não podemos iludir a nós mesmos.
Conceber
a vida como subjetividade situada no mundo e não pelas categorias da
subjetividade abstrata concebida no início da modernidade é um desafio complexo
de criar ciência, técnica, arte, filosofia, leis e até novas formas de
experiências religiosas, tudo alimentado pelo compromisso de sermos melhores e
de fazermos uma sociedade mais justa.
Enfim,
os problemas da Política e da Ética contemporâneas são muitos, possuem origem
complexa e envolvem muitos aspectos. É o que os pequenos capítulos do livro
procuram apresentar ao tratar dos ideais da democracia, das funções do
parlamento, da organização partidária, do funcionamento do Estado, da
corrupção, das políticas públicas, da importância da educação para a
moralidade, do significado dos valores, dos relacionamentos intersubjetivos, da
relação entre Moral e Direito, do compromisso de fazer o futuro. Os textos do
livro se não aprofundam esses assuntos os apresentam em toda sua complexidade.
Eles propiciam uma visão ampla da problemática e oferecem a exata dimensão do
desafio que precisaremos enfrentar nos próximos anos.
José
Mauricio de Carvalho
Departamento
de Filosofia da UFSJ