sexta-feira, 6 de agosto de 2021

Humanismo e dilemas contemporâneos. José Mauricio de Carvalho.


 

Humanismo historicamente caracterizou o movimento literário e filosófico que, no século XIV, dialogou com a antiga cultura clássica. Teve início na Itália e se espalhou pelo mundo ocidental, estando suas ideias na base do que ficou conhecido como modernidade. Depois dessa origem, o conceito se misturou a diferentes teorias modernas que genericamente tinham o homem no centro de suas preocupações. É claro que há uma base comum aos humanismos que surgiram desde então, e ela parece ser a intenção de entender o homem de forma ampla, tomando-o em suas várias dimensões e inserindo-o na natureza e/ou história, ou melhor, naquilo que Ortega y Gasset resumiu, contemporaneamente, com o nome de circunstância.

É evidente que, dado seu caráter geral, há muitas teorias filosóficas, sociológicas ou históricas que genericamente assumem, como pano de fundo, essa raiz humanista da renascença, mas é uma simplificação inadequada confundir o humanismo com qualquer delas. Um erro comum nestes dias de conservadorismo religioso e ultradireita política é recusar, por exemplo, como marxismo toda teoria que valoriza o esforço do homem para criar um mundo mais do seu jeito. O marxismo, embora integre o movimento moderno de valorização do esforço humano contra o primado medieval da fé, como teoria filosófica, social e econômica representa uma visão de homem, história, sociedade e economia que ficaram para trás no tempo. Teve sua importância na história das ideias pela crítica que significou ao idealismo hegeliano ao interpretar a história e a sociedade em função das necessidades materiais do homem. Nesse sentido, ampliou o significado da dimensão econômica do homem, realçando a vida prática e produtiva. Vivendo nos dias da estruturação da sociedade industrial, Karl Marx viu no proletariado a força da mudança histórica, compreendendo as explicações espirituais do mundo como produto das diferentes maneiras de produzir riqueza. A economia marxista vê o capitalismo como forma de produção econômica de transição, destinada a ser substituída pelo comunismo, em razão das contradições captadas pelo movimento dialético da história. Em síntese, foi um movimento datado, representa, no âmbito filosófico, uma crítica ao hegelianismo, contempla uma preocupação com o homem privilegiando suas necessidades materiais e foi superado pelo andar da história, apesar das contribuições que trouxe.

O humanismo encontra-se na base do marxismo e de muitas outras teorias modernas, ele reflete um modo ampliado de ver o homem. No entanto, não é sinônimo perfeito de nenhuma dessas teorias modernas ou renascentistas que embasa. Desse modo podemos dizer que surgiram na modernidade diferentes formas de humanismo, conforme foram combinados com outras ideias.

Interpretações divergentes e opostas do humanismo estão, na base do conflito atual do neoconservadorismo evangélico com outras criações modernas. As versões antagônicas do humanismo representam, em seus extremos, uma proposta de salvação do homem pela religião ou, ao contrário, uma dissolução da religião no processo histórico. O mundo moderno provocou, pelo foco no mundo, um eclipse de Deus, como mencionou Martin Buber, isto é, representou um esquecimento de Deus e de seu papel na vida humana.

As dificuldades contemporâneas de setores evangélicos é que eles negam, em nome de uma fé pura o valor do esforço e realizações humanas, apostando numa salvação fora do mundo. A face contrária desse movimento, representada pelas teses de Georg Hegel e radicalizadas por Karl Marx, considera a evolução histórica, a superação da espiritualidade religiosa e redução da capacidade espiritual do homem como objetivos culturais. O esforço da razão humana, em suas várias realizações, independente do vínculo com a fé, tornou-se foco de ataque de setores radicais evangélicos.

No entanto, sabemos que a realizações da razão como outras criações humanas não são contrárias a espiritualidade, sendo, algumas vezes, parte da evolução das ideias cristãs. Isso porque muitos aspectos da cultura, a ética filosófica por exemplo, foi profundamente influenciada pelo cristianismo, diga-se o mesmo dos direitos humanos e muitos aspectos da arte. E não apenas sabemos hoje que a espiritualidade religiosa representa um sentido importante para proteção da saúde mental, como boa parte dos cientistas mostram-se pessoas de fé. Isso mesmo a ciência limitando seu discurso ao entendimento do funcionamento do mundo e havendo aqueles que se limitam ao que a ciência reconhece. Resumindo, há uma compreensão da fé que nega o mundo, uma que se faz em diálogo com ele e uma visão de mundo à parte da fé. Em todas elas podem ou não existir ideias humanistas.

O singular de nossos dias foi a aproximação da ultradireita dos setores mais radicais do movimento evangélico. Os evangélicos recusando o humanismo absoluto em nome do primado da fé e a ultradireita recusando, as criações modernas que não se ajustam as suas teses, especialmente o marxismo. Enfim, a aproximação entre movimentos tão diferentes se explica porque o hegelianismo e marxismo representam o esforço humano de construção do mundo que contém os elementos recusados por ambos os grupos. Hegel e Marx foram tomados como exemplo do que ambos os grupos recusam. Daí a confusão que fazem muitos filiados da ultradireita que identificam nazismo com o comunismo, considerando-os de esquerda, sem perceber que as posições da ultradireita são essencialmente nazistas e formam, em nossos dias, um neonazismo. Esses políticos revelam desconhecimento histórico ao não saberem que essas duas formas de totalitarismo foram inimigas no século passado. A confusão se nutre por essa identificação de inimigos comuns presentes nas ideias modernas. Porém, falamos de movimentos diferentes, radicais evangélicos e ultradireita que se aproximaram por conta da recusa do que o idealismo hegeliano e marxismo representam: a recusa do esforço humano de um lado e do modo de produção econômica de outro.


 

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