sexta-feira, 5 de fevereiro de 2021

Manual para destruir a democracia. José Mauricio de Carvalho

 





 

Considerando os inúmeros interessados no tema, consolidam-se abaixo alguns passos para destruir as liberdades democráticas, o estado de direito e assegurar a implantação de uma ordem totalitária:

1.O primeiro e o mais importante dos passos é desqualificar os outros poderes do Estado, a ênfase deve ser sempre colocada na autoridade presidencial, imperial ou real. É importante propagar que legislativo e judiciário são integrados por gente corrupta e inimiga do povo. Esse é um ponto fundamental, a pedra angular desse pequeno receituário;

2. Divulgue continuamente que o governante (presidente, rei ou imperador) é alguém puro que luta pelo bem do povo contra a gentalha corrupta que ocupa os demais postos do Estado ou que já assaltaram o Estado. Verdadeiro pai do povo, honesto, puro, incorruptível e verdadeiramente interessado no bem de todos os homens bons. Isso dá ótimos resultados;

3. Associe o governante a Deus, sempre é bom que ele seja considerado defensor da autoridade divina, que fale em seu nome, ou ao menos que esteja entre seus servos fiéis, mesmo que suas ações sejam claramente contrárias aos ensinamentos religiosos. O que ele faz importa pouco, se ele for apresentado como bom devoto;

4. Repita, todo o tempo, que os adversários do governante são desqualificados moralmente. Um tipo de gente a quem não se deve dar atenção: ladrões, corruptos e assassinos, contra os quais é preciso proteger o santo governante;

5. Estenda esse tratamento violento e irracional a todos os críticos do governante, pois se afinal alguém o critica, deve integrar a matilha de ladrões, corruptos e assassinos que são seus adversários;

6. Não dialogue com os críticos, é gente má, comedora de criancinha, assassinos. Pode chamá-los de comunistas. Não importa o que isso signifique. Não estamos interessados em clareza conceitual. Apenas xingue, xingue, xingue. Sempre que possível lhes associe vícios: são invejosos, orgulhosos, egoístas, a vaidosos, soberbos, maledicentes etc. Não economize nos adjetivos desqualificadores, quando mais usar melhor.

7. Considere os apoiadores do governante como pessoas nobres, pois afinal de contas se apoiam um homem de tanto caráter e bondade é porque também eles, seus apoiadores, são dotados dessas qualidades extraordinárias. Isso é promissor pois;

8. Divide a nação em dois grupos, nós os bons e eles os maus e ajuda a mobilizar os partidários contra os críticos de dentro e de fora.

9. Se você seguiu esses passos até aqui agora pode aplicar o golpe de mestre, próprio dos doutores no assunto: o Argumentum ad hominem, que é uma falácia lógica nesse caso usada para evitar discutir as ideias dos adversários e destruir direto o autor delas. Trata-se de falácia porque conclui sobre o valor da proposição sem examinar seu conteúdo. Mas, afinal, que importa o argumento dos adversários?  Ninguém pensa muito mesmo.

10. Espalhe que o que assegura a ordem da sociedade não são as leis constituídas legitimamente por um parlamento eleito (o estado de direito e as forças de segurança na garantia constitucional da lei a da ordem), mas sua força militar que decide por conta própria e arbitrariamente o destino da sociedade. 

11. Eleja os críticos externos como integrantes de um movimento contrário ao nobre e santo governante, um complô internacional contrário a ele, fruto de um movimento qualquer;

12. Se você for mesmo bom e já tiver incorporado o espírito da coisa e já entendeu que não é preciso explicar em que consiste esse movimento, basta dar um nome qualquer pomposo (globalismo, esquerda, por exemplo) e dizer que ele é terrível, indescritível, anticristão;

13. Associe esse movimento a uma causa metafisicamente má, numa sociedade cristã diga, por exemplo, que é conduzido pelo anticristo. Em contrapartida, associe seus radicais companheiros de missão à pureza da fé religiosa. Isso dá ótimos resultados, pois mesmo fazendo absurdos essas pessoas se acreditarão servos de Deus;

14. Demonstre fidelidade absoluta ao governante, não é necessário pensar, a autoridade pensa por você. Afinal, os adversários são maus e o governante é bom. É o que importa;

15. A verdade é sempre a que sai da boca do governante. Tudo o mais é mentira. Filósofos e cientistas e suas manias de experiência e evidência não merecem crédito. Assim procedendo teremos um tempo de obscurantismo muito adequado às ditaduras e sistemas totalitários;

16. Crie uma milícia radical que ameace as instituições, a inteligência, promova ações contra as leis, ataque as instituições de Estado, divulgue acriticamente propaganda do governo, ocupe as mídias sociais, um grupo religiosamente fiel (como a Gestapo no nazismo e a KGB nos tempos dos da União Soviética) ao governante. Se necessário invada o parlamento e a corte maior de justiça, ações de intimidação ajudam à causa;

17. Ataque a imprensa livre e crítica, afinal jornalistas têm a péssima mania de verificar a informação e duvidam do que sai da boca santa do governante sem antes verificar a veracidade dos fatos. Ataque, ameace, intimide e humilhe os jornalistas que criticam o governante. Acuse-os também de mercenários, ajuda muito à causa;

18. Ataque os defensores dos direitos humanos e os ecologistas. São comunistas disfarçados.

A adequada execução desses passos é garantia de sucesso e implantação de um governo totalitário ou, no mínimo, uma ditadurazinha. 


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