A proposta de uma cidadania
universal que foi tema de A Ideia de uma história com propósito universal, de
Kant foi mencionada por Bauman em Amor Líquido. Trata-se de um assunto
revisitado em A ética é possível num mundo de consumidores? Nesse último
livro, a questão tem o mesmo tom do primeiro, mas o assunto foi melhor
elaborado. O sociólogo observou que há excessos populacionais e de produtos no
mundo contemporâneo, problemas que foram resolvidos pela Europa em outras
épocas exportando bens e populações para outras regiões do mundo. Essa solução,
no entanto, não é mais possível porque não há espaços disponíveis. Ele explicou
(id., p. 232/3): “a Europa solucionou esses problemas produzidos internamente
(e assim localmente) transformando outras partes do planeta em fontes de
energia e recursos naturais de baixo custo, trabalho barato e dócil, e acima de
tudo, em muitas áreas de descarte para produtos excedentes e redundantes.”
Porém, como ele advertiu, essa antiga solução não é mais possível. Antes quando
um europeu chegava num país africano ou asiático, mesmo tendo vindo de uma
condição social baixa em seu continente natal era recebido como alguém muito importante.
E como estão as coisas atualmente? Hoje ao chegar a um país estrangeiro o
europeu está sujeito a muitos problemas, exceto quando sai numa excursão bem
planejada e se porta como bom turista.
A realidade hoje em dia é que o
mundo está quase todo ocupado, enfrenta dificuldades variadas e estamos
desafiados a criar uma cidadania universal de que falava Kant (id., p. 229):
“todos ficamos e nos movemos na superfície dessa esfera, não temos outro lugar
onde ir e, por conseguinte, estamos condenados a viver para sempre na companhia
e na vizinhança uns dos outros.” E então a questão posta por Kant e que ficou
na prateleira por duzentos anos se reapresenta como atual. E há ainda a questão
da hospitalidade universal proposta por Kant em A paz perpétua que é também
um desafio atual pois (id., p.230): “a hospitalidade é a própria cultura, e não
uma ética entre outras ... a ética é a hospitalidade.”
Este novo mundo produz perda de
confiança nos europeus e estabelece o desafio de criar uma nova identidade
europeia como de redefinir o seu papel na história mundial. Isso mesmo do ponto
de vista geopolítico, a Europa não é mais o centro decisório do mundo (id., p.
234): “em meio ao caos planetário, são a Casa Branca, o Capitólio e o Pentágono
que, entre eles, definem o significado da nova ordem mundial.” E o que se segue
a esse domínio americano é algo parecido ao que se passou ao final do Império
Romano com as invasões bárbaras, a incapacidade de o exército regular enfrentar
o invasor produziu o caos, ansiedade e insegurança absoluta na sociedade.
Atualmente a poderosa máquina de
guerra americana não consegue enfrentar com eficiência os ataques terroristas
que usam outra lógica e atitude dos exércitos regulares. E ao tentarem
responder às ameaças o resultado é a criação do caos, com o aumento de tudo
quanto se esperava combater. Algo exatamente assim ocorre na Guerra em Gaza em
2024, com o texto de um livro de 2008. As palavras que se seguem se fossem
escritas hoje não seriam mais precisas ou atuais (id., 327):
Dada
a natureza das armas modernas, suas respostas aos atos terroristas devem
parecer embaraçosas, e, com isso, mais terror, ruptura e desestabilização que
os próprios atos terroristas poderiam provocar; e, assim, também produzem um
salto adicional no volume de mágoas, ódio e fúria acumulados, aumentando ainda
mais a fileiras de recrutas em potencial para a causa do terrorismo.
Por sua vez, essas células
terroristas não enfrentam diretamente os exércitos nacionais, nem respondem à
suas represálias. Elas acompanham em silencio e com desdém toda a movimentação
dessas forças militares. E, a certo momento, com uma dúzia de homens provocam
um mal que milhares de soldados não conseguem evitar. Esses grupos não
necessitam de grande organização ou estratégia para provocar o caos (id., p.
239): “nem precisam projetar, construir e manter uma estrutura rígida de
comando.”
Estando sob constante ameaça, as
grandes cidades ocidentais, tornaram-se fortalezas onde se tenta criar
barreiras para que os problemas globais não as alcancem, mas convenhamos isso
não é possível. E essas cidades multiculturais e plurais são espaço de
convivência de cidadãos e terroristas. Quanto as nações não estão a salvo das
ações violentas. E completa Bauman (id., p. 239): “se há um império Global, ele
se confronta com um tipo de adversário que não pode ser capturado nas redes que
ele tem, é capaz de tecer e adquirir.” A guerra contra o terrorismo não pode
ser vencida com meios militares, o que significa que Bauman sugere apostar na
educação das pessoas e espera o apoio das nações ricas para resolver questões
da vida social das mais pobres. E nessa missão a Europa desempenha um papel
crucial porque os americanos não se preocupam com a coabitação planetária
pacífica e nem enfrentam, como seria necessário, a pobreza, a desigualdade de
recursos e a carência social.
Nesse mundo que está se desenhando
a Europa não pode competir com o poderio militar americano e nem recuperar a
liderança industrial do passado. Então ela terá que descobrir um novo papel na
atualidade. E dada a sua história de guerras e sofrimentos, o continente tem
condições de liderar as nações na busca pacífica de conflitos de interesses e
na defesa da democracia. Quanto à sobrevivência da democracia há muitos
críticos que julgam uma tarefa difícil de ser levada adiante sem a contribuição
de uma identidade afetiva entre as pessoas, o que é complicado num mundo
multicultural e multirracial. Sem a força do sistema democrático a coesão
interna dos povos passa a ser buscada nos sentimentos nacionalistas e no
fechamento das fronteiras, pautas que atualmente foram assumidos pela extrema
direita. E como está mundo? Nada confortável para o europeu (id., p. 250): “o
mundo já não está mais convidativo. Parece um mundo hostil, traiçoeiro, que
respira vingança, um mundo que precisa se tornar seguro para nós, europeus.”
A Europa está se cercando contra
imigrantes e se isolando das demais nações, mas não há como resolver os
problemas da Europa isoladamente, apenas voltada para dentro. Isso porque (id.,
p. 251): “o destino da liberdade e da democracia em cada local é decidido e
estabelecido no palco global.” Quanto a distribuição da riqueza, em que pese as
inúmeras dificuldades, ela continua se concentrando (id., p. 252): “noventa por
cento da riqueza global do planeta permanece nas mãos de apenas 1% dos
habitantes da terra.” E a política de subsídios acaba privilegiando algumas
categorias nos países ricos em detrimento de milhões que poderia melhorar muito
a vida numa economia verdadeiramente livre e sem subsídios.
E como a Europa está enfrentando as
alterações na economia global? Tentando manter investimentos e riquezas, se não
mais dentro dos estados nações dentro da comunidade europeia. Isso muda um
pouco o que estava sendo feito até aqui, mas não muda muito a antiga condição
(id., p. 254): “a criação de unidades políticas maiores em si mesmas não altera
em nada o modo de standortskonkurrenz enquanto tal.” O que fica claro é
que se há uma necessidade da construção de uma comunidade global, não há uma
base ético-política que lhe dê sustentação. Essa mudança é qualitativa e não
apenas de ampliação geográfica, o que implica numa mudança qualitativa da
organização mundial e não sabemos como a Europa irá caminhar.