sexta-feira, 10 de maio de 2024

Bauman e a cidadania universal, um desafio para o nosso tempo. José Mauricio de Carvalho

 




A proposta de uma cidadania universal que foi tema de A Ideia de uma história com propósito universal, de Kant foi mencionada por Bauman em Amor Líquido. Trata-se de um assunto revisitado em A ética é possível num mundo de consumidores? Nesse último livro, a questão tem o mesmo tom do primeiro, mas o assunto foi melhor elaborado. O sociólogo observou que há excessos populacionais e de produtos no mundo contemporâneo, problemas que foram resolvidos pela Europa em outras épocas exportando bens e populações para outras regiões do mundo. Essa solução, no entanto, não é mais possível porque não há espaços disponíveis. Ele explicou (id., p. 232/3): “a Europa solucionou esses problemas produzidos internamente (e assim localmente) transformando outras partes do planeta em fontes de energia e recursos naturais de baixo custo, trabalho barato e dócil, e acima de tudo, em muitas áreas de descarte para produtos excedentes e redundantes.” Porém, como ele advertiu, essa antiga solução não é mais possível. Antes quando um europeu chegava num país africano ou asiático, mesmo tendo vindo de uma condição social baixa em seu continente natal era recebido como alguém muito importante. E como estão as coisas atualmente? Hoje ao chegar a um país estrangeiro o europeu está sujeito a muitos problemas, exceto quando sai numa excursão bem planejada e se porta como bom turista.

A realidade hoje em dia é que o mundo está quase todo ocupado, enfrenta dificuldades variadas e estamos desafiados a criar uma cidadania universal de que falava Kant (id., p. 229): “todos ficamos e nos movemos na superfície dessa esfera, não temos outro lugar onde ir e, por conseguinte, estamos condenados a viver para sempre na companhia e na vizinhança uns dos outros.” E então a questão posta por Kant e que ficou na prateleira por duzentos anos se reapresenta como atual. E há ainda a questão da hospitalidade universal proposta por Kant em A paz perpétua que é também um desafio atual pois (id., p.230): “a hospitalidade é a própria cultura, e não uma ética entre outras ... a ética é a hospitalidade.”

Este novo mundo produz perda de confiança nos europeus e estabelece o desafio de criar uma nova identidade europeia como de redefinir o seu papel na história mundial. Isso mesmo do ponto de vista geopolítico, a Europa não é mais o centro decisório do mundo (id., p. 234): “em meio ao caos planetário, são a Casa Branca, o Capitólio e o Pentágono que, entre eles, definem o significado da nova ordem mundial.” E o que se segue a esse domínio americano é algo parecido ao que se passou ao final do Império Romano com as invasões bárbaras, a incapacidade de o exército regular enfrentar o invasor produziu o caos, ansiedade e insegurança absoluta na sociedade.

Atualmente a poderosa máquina de guerra americana não consegue enfrentar com eficiência os ataques terroristas que usam outra lógica e atitude dos exércitos regulares. E ao tentarem responder às ameaças o resultado é a criação do caos, com o aumento de tudo quanto se esperava combater. Algo exatamente assim ocorre na Guerra em Gaza em 2024, com o texto de um livro de 2008. As palavras que se seguem se fossem escritas hoje não seriam mais precisas ou atuais (id., 327):

 

Dada a natureza das armas modernas, suas respostas aos atos terroristas devem parecer embaraçosas, e, com isso, mais terror, ruptura e desestabilização que os próprios atos terroristas poderiam provocar; e, assim, também produzem um salto adicional no volume de mágoas, ódio e fúria acumulados, aumentando ainda mais a fileiras de recrutas em potencial para a causa do terrorismo.

 

Por sua vez, essas células terroristas não enfrentam diretamente os exércitos nacionais, nem respondem à suas represálias. Elas acompanham em silencio e com desdém toda a movimentação dessas forças militares. E, a certo momento, com uma dúzia de homens provocam um mal que milhares de soldados não conseguem evitar. Esses grupos não necessitam de grande organização ou estratégia para provocar o caos (id., p. 239): “nem precisam projetar, construir e manter uma estrutura rígida de comando.”

Estando sob constante ameaça, as grandes cidades ocidentais, tornaram-se fortalezas onde se tenta criar barreiras para que os problemas globais não as alcancem, mas convenhamos isso não é possível. E essas cidades multiculturais e plurais são espaço de convivência de cidadãos e terroristas. Quanto as nações não estão a salvo das ações violentas. E completa Bauman (id., p. 239): “se há um império Global, ele se confronta com um tipo de adversário que não pode ser capturado nas redes que ele tem, é capaz de tecer e adquirir.” A guerra contra o terrorismo não pode ser vencida com meios militares, o que significa que Bauman sugere apostar na educação das pessoas e espera o apoio das nações ricas para resolver questões da vida social das mais pobres. E nessa missão a Europa desempenha um papel crucial porque os americanos não se preocupam com a coabitação planetária pacífica e nem enfrentam, como seria necessário, a pobreza, a desigualdade de recursos e a carência social.

Nesse mundo que está se desenhando a Europa não pode competir com o poderio militar americano e nem recuperar a liderança industrial do passado. Então ela terá que descobrir um novo papel na atualidade. E dada a sua história de guerras e sofrimentos, o continente tem condições de liderar as nações na busca pacífica de conflitos de interesses e na defesa da democracia. Quanto à sobrevivência da democracia há muitos críticos que julgam uma tarefa difícil de ser levada adiante sem a contribuição de uma identidade afetiva entre as pessoas, o que é complicado num mundo multicultural e multirracial. Sem a força do sistema democrático a coesão interna dos povos passa a ser buscada nos sentimentos nacionalistas e no fechamento das fronteiras, pautas que atualmente foram assumidos pela extrema direita. E como está mundo? Nada confortável para o europeu (id., p. 250): “o mundo já não está mais convidativo. Parece um mundo hostil, traiçoeiro, que respira vingança, um mundo que precisa se tornar seguro para nós, europeus.”

A Europa está se cercando contra imigrantes e se isolando das demais nações, mas não há como resolver os problemas da Europa isoladamente, apenas voltada para dentro. Isso porque (id., p. 251): “o destino da liberdade e da democracia em cada local é decidido e estabelecido no palco global.” Quanto a distribuição da riqueza, em que pese as inúmeras dificuldades, ela continua se concentrando (id., p. 252): “noventa por cento da riqueza global do planeta permanece nas mãos de apenas 1% dos habitantes da terra.” E a política de subsídios acaba privilegiando algumas categorias nos países ricos em detrimento de milhões que poderia melhorar muito a vida numa economia verdadeiramente livre e sem subsídios.

E como a Europa está enfrentando as alterações na economia global? Tentando manter investimentos e riquezas, se não mais dentro dos estados nações dentro da comunidade europeia. Isso muda um pouco o que estava sendo feito até aqui, mas não muda muito a antiga condição (id., p. 254): “a criação de unidades políticas maiores em si mesmas não altera em nada o modo de standortskonkurrenz enquanto tal.” O que fica claro é que se há uma necessidade da construção de uma comunidade global, não há uma base ético-política que lhe dê sustentação. Essa mudança é qualitativa e não apenas de ampliação geográfica, o que implica numa mudança qualitativa da organização mundial e não sabemos como a Europa irá caminhar.

 


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