Entender
o homem contemporâneo, seus desafios e sua forma de vida é um assunto que
desperta curiosidade. Todas as pessoas chegam a esse tema intuitivamente, mas
para cá nos trouxeram os grandes intelectuais da atualidade desde que Emmanuel
Kant estabeleceu os limites da interpretação metafísica do mundo, isto é,
aquela que vinha sendo utilizada desde os antigos gregos e Martin Heidegger em Ser e Tempo apertou os contornos da
razão transcendental inaugurada por Kant (STEIN, A caminho de uma fundamentação pós-metafísica, 1997, p. 105): “Postos
esses limites (da razão), não se pode mais responder a nenhuma dessas questões
a que correspondem as três perguntas nas obras de Kant: a) que posso saber – Crítica
da Razão Pura; b) que devo fazer? – Crítica da Razão Prática; e c) que me é
dado esperar? Kant colocou que a metafísica resolveria esses problemas se
conseguisse responder a pergunta que é o homem?”
Então,
na tentativa de encontrar resposta para: o que posso saber do mundo e como
confiar nesses conhecimentos, como devo agir e o que posso esperar com minha
vida e escolhas, os escritores, filósofos e cientistas tentaram explicar quem é
o homem.
Desse
debate participou o filósofo tcheco que viveu grande parte da vida no Brasil.
Para ele, o homem de hoje é um funcionário ou programador. O ponto de partida
de sua análise foi a crise contemporânea da cultura. Como quase todos os
intelectuais contemporâneos ele entendeu que vivemos numa sociedade em crise. Essa
crise se mostra num vazio que lembra os dias do barroco, quando (FLUSSER, 1983,
p. 9): “a vacuidade que ressoava nos seus passos (do homem barroco) era a do
vazio debaixo do palco.” Hoje em dia, entretanto, o vazio social é diferente,
não mais pode ser comparado ao do vazio do palco. Debaixo de nossos pés há
outro vazio que o do tablado do teatro. Para Flusser, o homem contemporâneo age
como um criminoso que quer apagar um crime. O maior de todos os crimes recentes
foi cometido no campo de Auschwitz. O campo de concentração é mais que um
fenômeno isolado, é um produto característico de nossa cultura (id., p. 11): “o
inaudito em Auschwitz não é o assassinato em massa, não é o crime. É a
reificação derradeira de pessoas em objetos uniformes, em cinza.” A razão é
que, por traz do campo de extermínio, a contemporaneidade colocou para
funcionar um aparelho capaz de transformar cada homem ou mulher num objeto,
retirando dele sua singular humanidade. Em outras palavras, é a transformação
das pessoas em objeto, um fenômeno social que se repete atualmente.
Assim
sendo, resta o desafio de superar o caminho torto da objetivação das pessoas
que aparece em outras organizações sociais contemporâneas que atuam como
caixas-pretas. Essas organizações funcionam segundo uma programação que
des-humanizam e que, a partir de certo momento, escapam (id., p. 14): “ao
controle dos seus programadores iniciais.” A crise surge porque (id., p. 15):
“perdemos a fé na nossa cultura, no chão que pisamos; isto é, perdemos a fé em
nós mesmos.” E o homem contemporâneo tornou-se um funcionário das organizações
contemporâneas. Isso nos leva ao tema da responsabilidade com o próprio destino
e o de todos, que parece longe do horizonte existencial do homem de hoje. Para
Flusser, isso se dá porque a irresponsabilidade é o que surge numa realidade
que transforma tudo em coisa.
O
essencial dessas considerações é a urgência do uso cuidadoso da razão, porque
somente seu cultivo crítico e a procura honesta da verdade são capazes de
superar a conversa fiada que marca os diálogos contemporâneos. Creio que pode
acrescentar ao que foi dito as Fake News,
que é ordinariamente a transformação da mentira em arma política e de
encobrimento ideológico e que funciona como uma nova forma de programa
oferecido a funcionários que a põem a circular.