quinta-feira, 18 de agosto de 2022

O que significa chamar Deus de Pai. José Mauricio de Carvalho.

 




Falemos de ser pai nos dias dos pais. A experiência de ter um pai é uma das mais extraordinárias formas de enriquecimento de nossa humanidade. Considere que a paternidade não é uma questão apenas biológica e é quase nada se fica apenas nessa dimensão. O que a faz especial é o fato de que o pai estabelecer com o filho uma forma de cuidado e relação que o enlaça e o faz crescer, crescer para seu lugar existencial e abrir-se para os outros numa relação de fraternidade.

 Não somente a paternidade é importante, a maternidade também o é, são ambas expressões do mesmo amor, mas com um tom diferente. Talvez se possa dizer que paternidade e maternidade sejam variações do mesmo encontro de afetos, o que fica confuso num tempo em que, frequentemente, o homem faz o papel de pai e mãe e existem mães que são, simultaneamente, mães e pais. Mas quando dizemos isto reconhecemos que há formas diferentes de cuidar do filho que qualificam essas formas de presenças de modo próprio.

Das variações possíveis desse amor o pai é quem mais se dedica a proteção da família, vive o esforço de prover e o desejo de ver o filho crescer e tornar-se adulto independente. Para isso muitas vezes acaba corrigindo comportamentos e indicando pontos em que o filho ou filha necessitam evoluir, ele cobra, ele mostra que a sociedade necessita de pessoas que saibam cumprir sua singular missão e o façam de forma madura e qualificada. Ele ensina a sempre procurar ser melhor.

Nosso propósito neste texto não é, contudo, examinar as diferenças entre a maternidade e paternidade já que em nossos dias ela não é tão explícita, mas indicar que os homens têm um Pai não somente nesse mundo, mas também fora dele. Um Pai para além do fenomênico.

As religiões antigas, quando alcançaram a dimensão monoteísta, identificaram um Deus que protegia, mas que era simultaneamente um disciplinador, um Senhor Altíssimo, isto é, distante, mesmo quando podia ser invocado. Um Ser acima de todos. Um esclarecimento crescente dessa relação foi desenvolvida na experiência de Deus feita no judaísmo e descrita no livro sagrado dos judeus.

Uma das mais significativas interpretações desse processo de relação com Deus foi feita por Martin Buber. Ele soube indicar que o mais importante na relação com Deus é a experiência existencial desse encontro. E Buber fez isso tratando da palavra dirigida a Deus como o lugar dessa presença. Isso porque Buber via na experiência do homem bíblico uma forma especial de encontro que, às vezes, também vivemos com outros homens. Isso porque a relação com o outro homem, em certas circunstâncias, é semelhante a outra forma que se tem com a transcendência. E é apenas nesse encontro entre pessoas que surge o amor porque na relação com as coisas se desenvolvem outras maneiras de relação, como a experiência da utilidade. E a relação com as coisas é o que vivemos de mais comum e rotineiro, mas a relação com o outro é o que nos faz humanos. É essa relação qualificada que podemos ter com Deus e que permite evoluir da percepção de um Deus insondável, distante, tenebroso, misterioso, violento, acima de todos e completamente Outro para Alguém com quem se pode viver momentos de intimidade, acolhimento, perdão e amor. Alguém que vive entre nós. Se Ele é alguém de quem se pode falar e descrever, então se fez uma reificação de Deus, tornado objeto de minha compreensão. Isso pode ser feito com o máximo respeito, mas não é mais que uma coisificação de Deus.

O que há de novo e fundamental no cristianismo foi que Jesus de Nazaré fez, melhor que todos os homens, a experiência dessa relação direta com Deus sugerida pelos profetas de Israel e, nesse encontro, formulou uma metáfora de quem O encontrou. Se temos que criar uma metáfora para falar Dele, que seja como a um Pai a quem se fala, disse Jesus. E assim devemos nos aproximar dele, como um pai que é bom, que acolhe e se entrega de amor a quem o procura e se dispõe a encontrar-se com Ele. Uma aproximação que não se faz fora da reciprocidade, totalidade, inobjetivação, imediatez, presença que conduz as pessoas para fora do tempo e espaço. O que vem depois já é um passo para fora desse momento especial. E para viver essa relação é que Jesus ensinou a chamar Deus de Pai, pedir para ser acolhido na Sua presença, Santificar o seu nome, reconhecer e pedir perdão pelos próprios limites, mostrar que está aprendendo a amar perdoando os outros que lhe fizeram mal (Mt. 6, 7-15). O encontro é relação entre Pessoas: entre um Eu e um Tu. Toda tentativa de estabelecer um controle sobre Deus, mediar esse encontro é farisaísmo e ele se torna mal quando usa o nome de Deus para outros objetivos menos nobres que participar e difundir o seu Reino. Quem faz isso, como disse Jesus aos fariseus, não é de Deus porque não O experimentam face a face, nem vivem na sua presença. E Deus não os escutará mais nem melhor do que que quem faz o encontro e vive na Sua presença.

 

 

 

 


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