A propósito da celeuma em torno da devolução de terras pertencentes
aos índios; dos quilombos aos habitados pelos negros; distribuição de latifúndios
aos Sem-Terra, é bom lembrar algumas questões, independentes da posição
ideológica.
Quando Cabral chegou ao Brasil não encontrou um sistema
jurídico no qual se definissem direitos e deveres em relação à propriedade. Os
índios não tinham propriedades, apenas territórios onde habitavam. Cada tribo
ocupava uma determinada extensão de terras de onde tirava, via coleta, o
necessário para alimentação. Dentro deste território também não havia
propriedade privada.
A coroa portuguesa, logo que tomou posse da terra, tratou de instituir um regime jurídico para este imenso território. Dividiu-o em capitanias e dentro delas começou a distribuição de sesmarias, isto é, propriedades privadas. Evidentemente, à revelia dos índios que não foram nem convidados e nem consultados. Foi um ato do poder político de forma autocrática, bastante comum naqueles tempos. Portanto, juridicamente o poder não confiscou a propriedade dos índios por que ela não existia. Ao contrário, implantou a propriedade.
A coroa portuguesa, logo que tomou posse da terra, tratou de instituir um regime jurídico para este imenso território. Dividiu-o em capitanias e dentro delas começou a distribuição de sesmarias, isto é, propriedades privadas. Evidentemente, à revelia dos índios que não foram nem convidados e nem consultados. Foi um ato do poder político de forma autocrática, bastante comum naqueles tempos. Portanto, juridicamente o poder não confiscou a propriedade dos índios por que ela não existia. Ao contrário, implantou a propriedade.
Da mesma forma, os locais onde os negros se refugiavam ao
fugir da escravidão, não constituíam uma propriedade, mas um território onde se
libertavam. Por isso, também neste caso não havia propriedade e por isso não se
pode dizer que atualmente o Estado “devolve” a propriedade ao descendestes dos negros, mas apenas
reconhece o territórios onde residiam, dando-lhe foro de propriedade.
Já com os Sem-Terra ocorre uma reivindicação de uma propriedade já existente, portanto, diferente do caso dos índios e negros. Neste caso, o
Estado desapropria um e transfere a propriedade para outro titular. Aqui sim, há uma propriedade que passa de um
sujeito para outro. Para melhor elucidar a questão trazemos um olhar de um
estrangeiro, focando o questão dos Sem-Terra no Brasil.
O livro “Função Social da
Propriedade e dos Latifúndios Ocupados”, do Professor Mário Losano, da Universidade
Degli Studi di Milano, aborda a questão agrária brasileira, a qual envolve
vários atores: políticos, juristas, latifundiários e Movimento dos Sem-Terra,
negros e índios. Embora se restrinja aos Sem-Terra, as teses podem ser
aplicadas aos outros atores. A problemática analisada pelo autor procura
evidenciar os limites entre estereótipos e realidade das questões: está o
Brasil cheio de latifúndios improdutivos? Os excluídos das periferias urbanas
podem se tornar agricultores? A pequena propriedade campesina pode ser
auto-suficiente? Quantos realmente são os sem-terra? Quantos são os latifúndios
improdutivos? Faz sentido ocupar os latifúndios, mesmo os produtivos, e
dividi-los em pequenas propriedades? Faz algum sentido a monocultura num país
que luta contra a fome? Quanto custa ao Estado, e por extensão à sociedade, um
processo de assentamento? É possível um modelo de reforma agrária para todo o
Brasil? Pode continuar a Igreja católica alimentar um exército de sem-terras
acenando-lhes para uma duvidosa “Terra Prometida”? Em vez de prometer “terra
para todos” não seria melhor incentivar um convívio entre “agrobusiness” e uma
agricultura familiar?
Para expor e discutir estes
assuntos Losano divide o livro em cinco capítulos. Os dois primeiros, “Diário
Seletivo de Dois Meses Normais” e “Política Agrária e Reforma Agrária” preparam
a grande discussão que acontece no capítulo terceiro: “A Ocupação das Terras
Improdutivas e o Movimento dos Sem-Terra”. Este é o capítulo central, pois
discute os fundamentos filosófico-jurídicos que alimentam a ideologia dos
Sem-Terra, dos latifundiários e do governo. O capítulo refaz com maestria a
trajetória genética dos Sem- Terra: opção preferencial pelos pobres, teologia
da libertação, Comunidade Eclesial de Base, Pastoral da Terra, Movimento dos Sem-Terra e Partido dos
Trabalhadores. A fundamentação filosófica do Movimento dos Sem-Terra –MST-
reside na tradicional Doutrina da Igreja católica do direito natural. Conforme
esta doutrina a terra é de Deus e Este a deu a todos. A Doutrina da Igreja
católica defende que o direito à terra é inerente à natureza humana por obra do
Criador. Para os Sem-Terra este direito natural é reforçado pelo dispositivo constitucional afirmando que a terra tem uma
função social e que as terras improdutivas são passíveis de desapropriação. Os
latifundiários apegam-se ao “sagrado” direito de propriedade de conformidade
com a filosofia liberal e argumentam que o dispositivo constitucional ainda não
foi regulamentado. O governo, por sua vez, em voltas com a eficácia, necessita
seguir os trâmites processuais para desapropriação e posterior assentamento. Em
síntese: o Movimento dos Sem-Terra apóiam-se num argumento teológico; os
ruralistas apegam-se ao jurídico e o governo age politicamente. Esta é a problemática com seus desencontros e conflitos e discutida pelo
professor Losano. O Movimento dos Sem-Terra, estribado nestes dois suportes, um
filosófico-religioso e outro filosófico-jurídico, lança-se à ocupação (na
versão dos sem-terra) e invasão (na versão dos ruralistas) de terras
supostamente improdutivas. Os ruralistas ingressam na justiça pedem a
reintegração de posse. O Partido dos Trabalhadores –PT- que na origem do
Movimento dos Sem-Terra foi o grande incentivador e mesmo financiador -
atualmente é governo e diante
disso opõe-se à ação dos Sem-terra. Este é um dilema tanto para o governo como
para o Movimento dos Sem-Terra. Se pressionar o governo está deixando em apuros
antigos e atuais companheiros, se o governo acua os Sem-Terra está rasgando
bandeiras que o ajudou a eleger-se.