Lembrar
de Mandela com objetividade e equilíbrio agora que o perdemos não é fácil. É
difícil separar o homem de gestos serenos do herói nacional dos sul-africanos
disposto a morrer pela causa que abraçou. O que dizer,com verdade, de quem seu
povo reconhece como pai da pátria?Como separar o homem do Chefe de Estado
admirado em todo o mundo, o ex – Presidente que mereceu reconhecimento dos
principais líderes mundiais no dia de sua morte? Como se referir ao homem
cordial e de sorriso gentil cuja imagem delicada esteve em todos os televisores
do mundo?O que nos deixa Mandela, agora que já não estamos fisicamente com ele?
O que primeiramente aparece como seu legado é uma democracia multi-racial a
enfeitar um dos mais belos cenários do continente africano. Uma democracia que Mandela
fez brotar de um regime desigual e injusto. A África do Sul era antes de sua
ação política o país do apartaheid, o
regime político e social que separava brancos e negros. Esse país onde os
homens foram separados primeiro pelo ódio e preconceito e depois pelo arame
farpado e pelos muros foi a matéria-prima que ele teve para criar uma
democracia de homens livres e iguais perante a lei e o Estado.
E
o que mais dizer da circunstância à qual esteve associada sua vida? Nelson
Mandela nasceu quando a Belle Époque dava
os últimos respiros e o mundo mergulhava nas piores guerras de sua história.
Seus dias nesse planeta foram os de revoluções cruéis como a espanhola e
soviética. Lições de crueldade e intolerância não lhe faltaram. Um mundo que
passou por uma crise econômica sem comparação, crise que destruiu milhões de
vida, que mudou o perfil das famílias, que transformou a angústia na categoria
com a qual seus intelectuais pensaram a vida humana e seu destino. Um triste
tempo de sofrimento, o tempo da Guerra Fria e do medo da bomba atômica arrasar
o planeta. Tempo de homens divididos. Esse tempo foi o período das massas. Uma
ocasião em que democracia tornou-se sinônimo de mediocridade, onde o ideal
divulgado em todo o planeta era ser igual a todo mundo. Um tempo em que a massa
assumiu a liderança da história e como sua protagonista alimentou os
totalitarismos fascista, nazista e soviético. Esse tempo de mudanças sociais
foi o palco da busca ansiosa pelo gozo rápido que termina, inevitavelmente, no
vazio e na lama existencial. Esse tempo fez da política atividade suspeita e de
seus líderes protagonistas da corrupção. Esse tempo foi também matéria-prima
para a ação política de Mandela.
Nesse
tempo de massas e de consumismo ansioso, Mandela viveu trajetória singular.
Nascido em 1918, na aldeia de Mvezo, na
Província do Cabo Leste, foi educado na fé cristã da Igreja Metodista. Foi nela
que aprendeu do cristianismo a dignidade de todos os homens, aprendizado que
ele tornou concreto no curso de Direito. Advogado de formação tornou-se
militante político na juventude quando foi seduzido pela violência como
estratégia política fundando o MK (UmkhontoweSizwe),
o braço armado da ANC. Preso por 27 anos, obrigado a trabalhos forçados,
isolado da sociedade e quase sem direito a visitas, superou o ódio íntimo e a
violência nas relações humanas. Tornou-se admirado pelos carcereiros que,
depois de algum tempo, não mais lhe punham as correntes próprias do seu regime
prisional. Vencendo em si o ódio e a violência habilitou-se a lutar pela
aproximação entre os homens de seu país, pois é no íntimo que se vencem os
ódios e é o coração o campo de batalha mais difícil de ser enfrentado. Foi superando
em si o que desumaniza que ele conseguiu unir o nobre ideal da democracia à
estratégia humana mais eficiente, pois nenhuma boa causa é verdadeiramente boa
se tangencia o respeito e a dignidade humanos.
E
como despedir desse homem agora que ele se foi? Dizendo-lhe singelamente nossa
gratidão pelo que considero seu maior legado: a superação do ódio e da
violência. Não porque o mistificamos agora que morreu ou porque hoje falseamos
ou diminuímos seus erros, mas porque reconhecemos que Mandela se fez admirável
ao vencer em si o ódio e a desconfiança, porque ele conseguiu derrotar o pior
inimigo que nós temos. E qual é esse inimigo? Aquele que, no íntimo, leva à
indignidade, semeia a violência e colhe a miséria existencial. Grato somos
Mandela não porque desconhecemos seus limites humanos, mas porque vimos que você
fez tudo o que podia para superar suas limitações e nos legar o que de melhor
um homem pode alcançar ao vencer circunstância tão difícil e nos deixar a
esperança de um mundo melhor: uma democracia racial construída no esforço
íntimo de superação de nossos limites.