sexta-feira, 10 de fevereiro de 2017

O fio de ouro. José Mauricio de Carvalho


Morreu esta semana a senhora Marisa Letícia, esposa do ex-Presidente da República Luís Inácio da Silva. Como figura pública é natural que tivesse admiradores e desafetos. Sua morte não apaga seus erros, nem ofusca seus méritos, a vida é resultado das escolhas feitas. Nossa história, o bem e o mal realizados,são nosso legado para a sociedade. Não raro é comprovar que a vida humana é cheia de contradições. Elas são partes de nossa humanidade, dizia Paulo de Tarso na Carta aos Romanos 7, 15-25: “miserável é o homem que sou (pois...) não faço o bem que desejo, mas o mal que não quero”.
O desfecho natural da vida biológica é a morte. No caso de Dona Marisa o fato foi lamentavelmente precedido por manifestações de desumanidade. Durante toda a semana correu nas redes sociais que ela havia morrido, etc. do modo exato como foi oficialmente notificado mais tarde. Umanotícia que somente podia vir de dentro do hospital. Ao mesmo tempo, também nas redes sociais, começaram as manifestações de escárnio somadas aolamentável debochede membros da equipe médica. Quando veio a nota oficial do falecimento foram possíveis as primeiras as manifestações de solidariedade.
Não se pretende fazer qualquer julgamento das pessoas envolvidas nos acontecimentos, não creio que ajudasse ninguém, nem a sociedade brasileira. Porém, os fatos relatados nos levam a um pequeno ensaio de Tobias Barreto de Menezes, um jusfilósofo nordestino. Um ano antes de falecer, em 1888, escreveu Glossas heterodoxas a um dos motes do dia, ou variações anti-sociológicas (1887). O texto está publicado emEstudos de Filosofia. São Paulo, Grijalbo, 1977. Num esforço para explicar o que é a sociedade humana e porque os homens nela vivem, Tobias fez observações interessantes para concluir que vivemos em sociedade para superar a nossa animalidade. É natural que existam ladrões dizia, mas é cultural que eles não existam, a escravidão é natural, existe até entre formigas, mas é cultural que não exista, etc. E cultural quer dizer moral. O que Tobias ensinou, nos seus textos pouco lidos e meditados, é que a moral é que eleva o homem da animalidade para um bom convívio. Issomesmo sabendo que o homem não deixa sua animalidade e que precisa ser punido quando ela se sobrepõe ao comportamento moral. Ele dizia algo interessante sobre isso (1977, p. 232): “o direito é o fio vermelho, e a moral o fio de ouro”.
O que Tobias escreveu pode ser lido assim: é natural que o homem poderoso utilize sua posição para ter privilégios ilegais, mas é moral que não o faça, é natural que o empregado tenha preguiça e não cumpra suas obrigações, mas é ético que cumpra bem sua missão, é natural que as pessoas debochem e se vinguem de quem as prejudicou, mas é humano que não o façam. A vida civilizada deixa para as instituições fazer justiça com quem se porta mal. Isso deve ser feito para que o bem no final prevaleça, mas cada homem deve combater em si aquilo que o leva à animalidade e escolher o que é humano.
Dessa forma Tobias Barreto deixou considerações importantes sobre a sociedade, as razões pelas quais ela se organiza, dos propósitos das suas instituições e do valor do processo educacional. Uma educação que se não leva à intimidade da consciência os elementos de humanidade necessários à vida boa falhou na essência. Aliás, o episódio inspira uma resposta à propaganda do governo: ao invés de quem conhece aprova onovo ensino médio, melhor seria quem conhece educação não aprova o novo ensino médio. Sobre o fundamental das intenções éticas, que são o cerne da educação, dizia Tobias Barreto (idem, p. 331): “ela é o grande aparato da cultura humana, deixa-se afigurar sob a imensa teia de relações sinérgicas e antagônicas, é um sistema de regras, é uma série de normas que não se limitam ao mundo da ação e chegam aos domínios do pensamento” (id., p. 331).
De tanto enxergar a animalidade se sobrepor à humanidade, pode ser que percebamos como podemos fazer um país melhor.



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