A
tolerância entendida como necessidade de conviver com a diferença parece tão antiga e natural quanto a experiência
social do homem. É que o homem é
singular na sua herança genética e único no modo de compreender o mundo.
Contudo, a história da humanidade foi quase sempre povoada de opressão e
intolerância, recheada de imposição pela força de uma crença ou modo de vida. Lamentável
faceta da animalidade humana.
A
noção de tolerância só se firma quando a vida comunitária adquire amadurecimento
e compreensão ética no respeito ao diferente. Neste sentido, merece registro o
entendimento de Guilherme de Ockam, ainda no século XIV, de que Deus podia
acolher entre seus escolhidos alguém que vive na razão. Dizer isto não era
simples num tempo em que se acreditava que o caminho até Deus podia ser
interditado pelos homens e que era legítimo torturar e matar quem partilhasse
outra fé. Assim, a noção de tolerância entra na história em momento determinado
e se torna importante nas disputas religiosas da cristandade dividida do início
da modernidade.
O
termo ganhou força depois da formação do Estado Moderno, pois pela primeira vez
depois de séculos tinha-se a experiência de um poder forte e centralizado
dirigindo grande comunidade. Enfrentar a intolerância tornou-se urgente com a divisão
da cristandade e multiplicação de igrejas cristãs. É, neste contexto, que as Cartas sobre a Tolerância (1689), de
John Locke, adquirem significado, pois reconhecendo ser o Estado um instituto
para conservar e promover os bens civis, cabia-lhe assegurar o convívio
pacífico dos cidadãos, desde que suas ações não contrariassem as finalidades
pelas quais Ele existe, a saber: defender a vida, a liberdade e a propriedade
das pessoas.
Locke,
contudo, admitia um limite, pois para estar entre os protegidos pelo instituto
da tolerância os cidadãos deviam professar algumas dentre as crenças cristãs
disponíveis. Os infiéis não podiam beneficiar-se da tolerância. Era o pavor da
brutalidade sem os limites do homem que não temia Deus. Foram as novas experiências sociais da Europa
laica que estimularam o debate público e trouxeram ao espaço coletivo estudos e
reflexões como o Tratado sobre a
tolerância (1763), de Voltaire. Desde então o assunto ganhou importância
crescente entre as diferentes sociedades civis regulamentadas pelo Estado
moderno, pois neles, conclui-se, o destino dos homens encontra-se nas próprias
mãos. Política é o exercício deste destino.
Os
episódios da semana que terminaram com depredação e violência em Porto Alegre,
lamentáveis incidentes de rebeldia ilegal que se repetem pelo país, mostra
como, com o exercício da violência, estamos longe de entender o significado da
tolerância como estratégia moderna de convivência no espaço público. O problema
se agrava com a divulgação crescente de teorias radicais que proclamam legítimo
um dito poder popular, nome usado para impor à força o que parece legítimo a um
grupo radical.
A
violência e a intolerância é não apenas um meio de fugir do estado de direito e
das leis existentes nas sociedades modernas, mas o caminho seguro de destruição
da paz social. É legítima a participação na vida política e no destino da
sociedade, mas isto não valida a brutalidade e a violência contra as leis do
país e princípios de conduta racionalmente reconhecidos. O debate público do
uso ilegítimo da força e o entendimento do significado da tolerância no espaço
político são temas para reflexão em nossa sociedade nos dias que correm.
Esperemos que ela inspire outras atitudes.