O
ano começa mais leve, a perspectiva da vacina contra a pandemia do Coronavírus
representa a esperança de uma vida próxima da normalidade nos próximos meses. O
ano começa mais leve também pela iminência da posse de Joe Biden, o 46º presidente
da história dos Estados Unidos. Com ele o Partido Democrata volta ao poder, mas
o que chama atenção nessa transição não é a alternância de poder entre
Republicanos e Democratas, o que é uma rotina na democracia americana, mas os
novos ares na política da nação mais importante da terra. Esses ares, com
certeza, logo alcançarão outros países, purificando o ambiente mundial.
Os tempos de Trump no
governo americano foram marcados por um aumento estrondoso de mentiras nas
redes sociais. Somente na última campanha eleitoral americana contou-se cerca
de 900 mensagens falsas sobre fraudes nas eleições americanas. A conta pessoal
do presidente americano foi tirada do ar pelo Facebook por veicular comprovadamente
e reiteradamente inverdades. Grupos de supremacia branca, inspirados nas ideias
de Trump, passaram a falar livremente contra negros e latinos e a defender abertamente
a intolerância contra feministas e homossexuais. Algo semelhante ao que fez o gabinete do ódio em nosso país, fazendo
emergir tempos de obscurantismo que baniu do espaço público o compromisso com a
verdade e com aquelas qualidades próprias da pessoa que os romanos denominavam humanitas.
O discurso do ódio
aumentou as ações racistas nos Estados Unidos como a que resultou na morte de George Floyd, apenas um caso mais falado entre tantos outros
nesses últimos anos. Esse mal se alimentou das redes sociais com os defensores
da superioridade étnica e pela propagação da ideia nazista de existir vidas de
segunda classe que não merecem ser vividas. O slogam vidas negras importam
foi uma reação a tais ideias e práticas. Nesse mesmo espírito de ódio,
Trump construiu um muro (ou parte dele) para separar os Estados Unidos do
México, implantou uma política isolacionista e xenofóbica contra os árabes, facilitou
o comércio de armas em benefício da indústria bélica americana (como fez o governo
brasileiro ao liberar a compra de armas e facilitar a sua importação).
A Faculdade de Direito da Universidade de Harvard, que
acompanha a legislação ambiental americana, constatou um programa sistemático
de desmantelamento regulatório de proteção ambiental (o equivalente tupiniquim
ao passar a boiada do Ministro Sales). O governo Trump anulou 34 leis
ambientais, enquanto 33 outras foram tiradas de vigor. Os cientistas alertaram
que somente essas medidas aumentariam a temperatura do planeta e provocariam a
morte de mais de 80 mil pessoas por ano, ao que Trump respondeu com crítica
sistemática à ciência, radicalizando o obscurantismo e defendendo a ignorância
e interesses mesquinhos criticando cientistas e ambientalistas.
Quanto aos filósofos foram lançados no vazio, com a exaltação
de ideólogos pouco críticos, ficando encantoados na defesa da racionalidade e
da inteligência. As boas práticas do raciocínio que foram para as gerações
anteriores um ideal a ser buscado tornou-se coisa ridícula. Ainda assim, em
meio ao deboche das redes e aos kkkkkkkk diante de qualquer tentativa de
raciocínio, coube aos que vivem o compromisso com a verdade seguir as regras da
razão e ao imperativo da bondade. Assim tentaram preservar um resto de
humanidade e esperança em meio a um ambiente geral de fake news,
intolerância e obscuridade.
Apesar desse esforço solitário de alguns poucos, ganhou força
a mentira, dita sem constrangimento, abriram o caminho para afirmações sem
comprovação ou descompromisso com a verdade. Desse fato consta a negação do
aquecimento do planeta. Mentira repetida para atender parte (parece que
minoritária) de setores do agronegócio, de empreendimentos imobiliários e das
madeireiras, que pouco se importam com os efeitos da destruição ambiental e
suas consequências, desde que garantam, no curto prazo, o aumento dos seus
lucros.
Quanto ao ódio à ciência e a racionalidade, ele foi impulsionado
por Trump com as críticas às medidas de proteção contra o coronavírus,
inspirando nosso governante maior a igualmente menosprezar a recomendação das
autoridades sanitárias. Trump e Bolsonaro foram os únicos presidentes a
receitar medicamentos e prescrever protocolos terapêuticos contra o coronavírus
sem possuir formação médica. E nunca foram acusados de prática ilegal da
medicina, o que seria feito com qualquer outro cidadão. Então, mesmo sem entrar
na relevância terapêutica da droga, ambos defenderam e propagaram a eficácia do uso da hidroxicloroquina para o tratamento e
prevenção da Covid-19, que os dois presidentes afirmaram ter tomado sem impedir
que fossem contaminados. Naturalmente a audácia do governante americano
inspirou seu fã tupiniquim a também prescrever a droga na prevenção e
tratamento da Covid 19, por ele rebatizada de gripezinha.
Nesse novo ano esperamos a vacina, mas ainda mais que ela.
Desejamos novos ares com o reconhecimento da validade da ciência e o
entendimento de que o compromisso com a razão e a verdade é valor social, bem
como o respeito às boas práticas da lógica. Esperamos um 2021 com abertura para o diálogo
racional e paciência para o estudo dos problemas. Razão que anda não só com a
ciência, mas ao lado da fé, como sua companheira de jornada. Não para lhe ditar
o rumo transcendente em direção a Deus, mas para lhe impedir que, na procura do
Altíssimo, entre nos desvios da ignorância, superstição e irracionalidade.