Esse
é um texto sobre referências. Referência é o que guia a existência. Difícil
fugir do impulso para falar de referências no início do ano, de orientações para
o imediato, mas essa é uma questão que precisa ir além do agora. Referência é a
nossa bússola existencial, é nossa orientação vital, uma rota da vida. Ainda
que estejamos, no dia a dia, ocupados com o que iremos comer, onde vamos
dormir, onde vamos passar as férias e o que vamos vestir há a questão maior de
para onde nos dirigimos enquanto cuidamos do trivial. Jesus chamou atenção para
o fato de que a vida é mais que essas preocupações rotineirasem Mt. 6, 25: “Portanto, vos afirmo: não andeis preocupados com a vossa própria vida, quanto ao que haveis de comer ou beber; nem pelo vosso corpo, quanto ao que haveis de vestir. Não é a
vida mais do que o alimento, e o corpo mais do que as roupas?”. Jesus orienta
no evangelho de Mateus não sobre a irresponsabilidade ou imprevidência, pois sempre
devemos nos ocupar dessas coisas corriqueiras, mas Ele ensina a confiança em
Deus. Depois de fazer a Sua vontade, isto é, depois de plantar, regar, cuidar do
solo, etc. podemos confiar que Deus dará o fruto da terra, não é preciso sofrer
com angústia pelo que virá quando fizermos o que deve ser feito. Jesus não raciocinava
de outro modo porque sempre fazia a vontade de Deus.
O
que se vai abordar aqui é um outro aspecto da questão do sentido, isto é, seu
vínculo aos valores. Essa é uma questão fundamental como mostramos no livro O Homem e a Filosofia. A vida humana
precisa de direção e essa vem com os valores que a cultura concretizou no
último milênio. Assim, para
buscar um sentido para viver além de comer, beber e passear, à parte do gozo
irresponsável e rápido, é preciso superar tensões e tentações. E o mundo anda estranho
com tanto conservadorismo, imediatismo e gozo
irresponsável e ansioso. Qualquer defesa do humanismo, ou até valores cristãos
é entendida como comunista. Ou as pessoas perderam a noção dos valores
nucleares da cultura ou enlouqueceram de vez depois da queda do muro de Berlim
e do fim do socialismo real. Stalinismo, marxismo foram experiências ruins,
mesmo que tivessem bons propósitos. Essa experiência está superada na História.
Buber já fez, no século passado, uma crítica demolidora a esse socialismo sem
moral.
O
que não se pode esquecer é que o liberalismo se desenvolveu como: liberdade
política, de expressão e pensamento, estado de direito, mas tudo orientado pelo
respeito humano e cuidado com os mais fracos. A cultura ocidental se
desenvolveu transmitindo para as novas
gerações o que foi aprendido com dor e sofrimento na história: sociedades
injustas e sem valores não sobrevivem. É sob essa base constitutiva da cultura
e inteligência que a vida de cada homem se individualiza e socializa. É aquilo
que cada homem incorporou como valor, que o prende ao destino dos outros. Foi
porque a cultura ocidental assumiu as raízes orientais judaico-cristãs que seus
valores de paz e justiça se universalizaram.
Quando o que impera
é o gozo rápido e irresponsável, a vantagem imediata, vem junto a injustiça, a
miséria, as drogas, as relações superficiais, o egoísmo generalizado, a
corrupção e o desânimo na vida dos povos. E um tempo assim, não de perda mas de
afrouxamento dos valores, de desânimo e descrença que está ganhando força
nesses dias.
Fazemos uma
sociedade boa aproximando nosso destino singular do dos outros homens, ainda que
nunca deixemos de ser nós mesmos ao fazê-lo. Essa é a ambiguidade inalienável que
é própria do homem, ao mesmo tempo que se é único e singular na forma de
compreender e viver, se é parte de uma comunidade e mesmo partícipe de uma
humanidade comum. Não se trata de viver uma ou outra realidade isoladamente,
pois isso leva ao totalitarismo ou à loucura. A liberdade se vive no exercício
da responsabilidade moral, a vida social numa democracia pelo direito e valores,
uma sociedade que mesmo imperfeita procura sê-lo cada dia menos.