Depois do que tudo foi dito, mostrado, escrito, representado, filmado, imaginado sobre Shoah haveria lugar para mais?
Quando se surpreende algo desconhecido, original, oculto, na
história, filosofia ou mesmo ciência abre-se aos olhos a uma nova visão, como o
Homem da Lenda da Caverna. A exclamação: “como não tinha visto antes?” Diz meu
colega filósofo José Maurício de Carvalho: “À medida que avançam os anos e as
pesquisas, mudamos o olhar para o passado e ele começa a ficar diferente quando
fica iluminado pelos novos estudos. Em outras palavras, quanto mais sabemos do
passado mais diferente ele nos parece do que dele nos fora dito.”
Foi o que aconteceu com Frediano Sessi (AUSCHWITZ,1940-1945) ao
reestudar Auschwitz, precisamente nos anos Sessenta quando a Alemanha resolveu
refletir sobre si mesma e o que foi o Genocídio do Povo Judeu, conforme atesta
Marcello Flores. Sessi debruçou-se sobre o cotidiano, o habitual, o dia a dia.
Conseguiu com isso, visualizar as rebeliões contra o SS, que as vítimas não foram
tão dóceis como geralmente descritas.
Na verdade firam necessários oitenta anos para saber mais e
melhor o que de fato aconteceu em Auschwitz. Este acontecimento foi um dos mais
trágicos da História, a própria personificação da política nacional-socialista
e tentativa em parte bem sucedida de exterminar com os judeus não só na Europa,
mas da face da terra. Se perguntássemos a estudantes e mesmo a historiadores o
que foi Auschwitz é muito provável que obteríamos respostas vagas.
Frederico Sessi, precisamente no ano de aniversário da abertura
do campo de concentração na cidade polonesa de Oswiecim defronta-se com uma
síntese ampla e exaustiva do volume Auschwitz (da ed. Marsílio) para
compreender o significado daquele nome e antever quanta história naquele
símbolo, a referência a uma tragédia, sobre os quais se interrogaram filósofos
e teólogos, políticos e cientistas sociais sem nunca ter colimado – de modo
convincente, coerente, completo – o drama daquele acontecimento histórico.
O que acontece quando uma nova realidade da pesquisa histórica, confrontada com a existente não fecham entre si? É preciso proceder a uma exumação do cadáver e voltar à estada zero nas conclusões. Foi precisamente o que aconteceu com a pesquisa de Sessi.Foi necessária toda uma revisão das conclusões.
A peculiaridade de Sessi reside na singeleza da narrativa
factual. Dotado de uma linguagem acessível, não deixa de enfrentar questões
complexas, sem necessidade de elucubrações filosóficas e teóricas, o que muitas
vezes é sinal de conhecimento deficiente sobre o objeto.
Na primeira parte, o texto de Sessi parte de questões simples
como a fundação do campo de concentração e sua estrutura organizativa.
Desenrola-se o cotidiano (comida, vestuário, trabalho, doenças) surpreende a complexa realidade que lança luz
sobre aspectos pouco visíveis (médicos detidos, a visita da Cruz Vermelha, a
sexualidade, os quais nos adentram para a “normalidade” do universo carcerário
da concentração.
A segunda parte pode ser considerada o miolo duro dos campos.
São mencionados e analisados os extermínios, os locais onde isso acontecia, o
pessoal do SS, a agonia e os últimos momentos de vida das vítimas, as divisões
em categorias, o destino das mulheres e crianças entre outros.
Sessi se detém com mais atenção sobre os Sonderkommando, isto é,
nazistas encarregados de recrutar dentre os prisioneiros – geralmente novatos –
para execução de tarefas sigilosas, como câmaras de gás e crematórios. Sobre
este assunto são escassas as informações por que os algozes não fotografavam o
que faziam e de tempos em tempos os comandados eram mortos e substituídos por
novos novatos como aconteceu na rebelião de 1944.
Foi graças à pesquisa de Sessi, a imersão no cotidiano do campo
de concentração, que ficou evidente a falsa ideia da resignação pacífica das
vítimas à morte. O capítulo que trata das “resistências”, caracterizadas por
atitudes individuais e de pequenos grupos, a maioria das vezes fracassadas, demonstra
que a falta de liberdade provoca revolta, rebelião e espírito de solidariedade,
mesmo em condições de extrema submissão e escravidão, como atesta Primo Levi,
sobrevivente de Auschwitz.
O enigma do por que do “esquecimento” foi baseado naquilo que pode ser chamado de sublimação do “crime mais demoníaco”, conforme Primo Levi. Acontece que os acontecimentos passaram para os museus, as memórias das vítimas e algozes. A representação nos deu, cinema, literatura, música, inclusive um filme romântico-cômico, como A Vida é Bela, modelo perfeito de deturpação histórico-literária.
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