Viver
e sonhar é esbarrar em limites. Somos tecidos de uma liberdade maravilhosa de
querer e um pouco do aceitar o que não podemos mudar. Quando escolhemos temos
em conta nossas possibilidades físicas, emocionais e intelectuais e também a
situação em que estamos. Ao projetar uma viagem consideramos o tempo
disponível, os recursos, nosso propósito para empreendê-la e os eventuais
acompanhantes na jornada. Tudo o mais na vida é um pouco assim, o viver de cada
um, uma experiência única para quem a vive e um partilhar com os próximos.
A
vida tem uma dinâmica curiosa, hora aproxima, hora afasta nosso olhar dos perigos.
Há dias simples em que tudo caminha fácil, em que nossos desejos logo se
realizam. Há outros não tão simples. E agora estamos diante de um limite: dias
difíceis de enfrentamento de uma doença grave (Covid 19) e suas consequências.
Dias difíceis, inicialmente, por conta do medo, um temor coletivo que se
espalha e se alimenta da inútil repetição de notícias, muitas falsas, que provocam
o pânico nas redes sociais. Esse medo se fortalece no sofrimento que o
inesperado representa. Segundo porque estamos diante de uma doença nova, grave
e capaz de, eventualmente, matar. Terceiro porque nos damos conta de que o
sistema de saúde, por mais que se prepare, não dará conta de atender todas as
pessoas que necessitarão de cuidados médicos.
Só
situações graves evidenciam os limites e riscos de nossas vidas. Se viver é
estar dramaticamente em perigo, como disse Ortega y Gasset, estou seguro que essas
situações dolorosas ativam o melhor de nossa humanidade. São os dias difíceis
que nos fazem sentir orgulho do que somos. São eles que nos mostram que é
possível enfrentar o medo e a morte com coragem e determinação, como fazem os
profissionais de saúde em vários países. Esses dias nos mostram a importância
de olhar além da própria vida, como fazem os funcionários encarregados de
manter em ordem na sociedade, os trabalhadores que não podem deixar a economia
parar. São os limites e a morte que nos ensinam que, diante de uma ameaça grave,
vale mais a solidariedade do que os títulos de propriedade e contas no banco.
Essas situações-limites nos dizem do valor e importância do ensino, e em
especial da Filosofia, saber que nos prepara intimamente, criando uma fortaleza
interior onde é possível habitar, crescer e entusiasmar-se para seguir em
frente. Descobrimos a importância de amar e ter um amor onde se possa estar
quando a circunstâncias externas são dolorosas. Pois também o amor, tanto
quanto o pensamento, fortalece nossas defesas íntimas, como mostrou o
prisioneiro Viktor Frankl nos tempos que passou em quatro campos de
concentração. Estando diante da morte, ele se alimentava do diálogo íntimo com a
esposa e das razões que tinha para viver. Naqueles dias experimentou a força das
palavras bíblicas do Cântico dos Cânticos
(FRANKL, Em busca de sentido, p. 56):
“põe-me como selo sobre o teu coração (...) porque o amor é forte como a morte.
Cantares 8.6.” E entre os fortes amores que alimentam a vida está aquele
dedicado a Deus, que é a expressão maior das transcendências e o maior dos
propósitos. Mostra-o diversas pesquisas sobre espiritualidade e saúde
conduzidas nas principais universidades do mundo e no NUPES/UFJF. O melhor de
nós está naquilo que é maior que o medo e a morte, a capacidade de mergulhar no
íntimo, transcender e amar.
Todos os riscos que nos ameaçam a cada
dia somente fazem brotar em nós o melhor, por isso não nos precisa assustar o
perigo, porque “aprender a viver é que é o viver mesmo...
Travessia perigosa, mas é a da vida”, como escreveu Guimarães Rosa em Grande Sertão: Veredas. Estou seguro que
esses dias difíceis são a oportunidade de fortalecer o mundo interior, amar e
transcender. Creio que nada vale mais que isso, penso, amo e crio as
oportunidades de uma vida melhor para nós e todos os povos.