sexta-feira, 16 de junho de 2023

A velha e sempre nova democracia. José Mauricio de Carvalho

 



No mundo antigo a democracia desponta como a grande novidade da flor do Peloponeso. Flor porque aquela península assistia a fabulosa reunião de Cidades-Estados da antiga Grécia com uma inédita experiência democrática. Na Cidade-Estado, o poder não pertencia a um monarca, mas aos cidadãos, esse é o princípio que regia aquela forma de governo. Ainda que diferente da democracia representativa do Estado Moderno, aquele sistema, em meio ao despotismo oriental então prevalente, revela uma experiência única de governo, semente do atual sistema democrático.

O propósito grego de encontrar a raiz da realidade, a arkhé, os fez entender que o que governa o destino da polis, não é uma pessoa, mas algo indeterminado. A ordem da cidade espelharia o mesmo equilíbrio que Anaximandro sugeria ser o fundamento do mundo. Existia, pois, uma disputa contínua entre cidadãos com interesses distintos que, com igualdade de direitos, reuniam-se em assembleias para decidir o próprio destino. Política é destino, comentou contemporaneamente o filósofo Karl Jaspers. Para os gregos, o mundo dos homens não é diferente da natureza: ambos são partes de uma única realidade. As disputas no interior da polis explicam, adicionalmente, o fortalecimento da filosofia entre os gregos porque era necessário bem argumentar para que uma proposta fosse admitida entre eles. Isso porque era impensável uma decisão política não pautada na razão e em boas explicações.

O Estado moderno recuperou a ideia de democracia a partir do século XVIII e o sistema alimentou a socialização das sociedades depois da revolução francesa dando origem, segundo Ortega y Gasset, ao homem-massa. Massa ocorre quando a democracia política torna-se um modelo para toda a vida social. Esse homem-massa limitado e infantil não compreendeu a cultura como resultado do esforço ingente das diferentes gerações pelos tempos afora. Perdeu-se o entendimento que para a sociedade atingir o nível em que se encontra precisou de esforço e talentos diferenciados e muitas excelências. Assim, acreditando que tudo estava aí pronto para ele gozar, o homem-massa tornou-se um parasita dos tempos e da sociedade, mas assumiu o protagonismo da história. Ele trouxe aquele ideal político para todas as instituições sociais e isso promoveu uma corruptela da democracia. O homem-massa não é apenas o medíocre inculto, ele se tornou o ideal de homem comum e promoveu a decadência da democracia. Não é preciso aprofundar a origem do homem-massa, mas não podemos desconsiderar o extraordinário e desordenado crescimento demográfico, que impessoaliza as relações nas cidades cada vez mais populosas; a especialização das tarefas, que pede conhecedores de tecnologias sofisticadas e absorventes, mas cujo domínio técnico resulta na ignorância de todo o resto. Um técnico inculto e uma crença emocional, este é o homem-massa.

Embora inadequada para muitas organizações sociais, o sistema democrático que se consolidou no mundo ocidental constitui a melhor forma de decidir politicamente o destino de uma sociedade moderna, grande e plural. Por isso, lembrava Delfim Santos, filósofo português contemporâneo, que quando a democracia é criticada não o é a autêntica democracia mas uma corruptela daquele sistema. Ele disse (SANTOS, democratismo, v. I, p 39): “é sobre isso que, em geral, recai a crítica dos antidemocratas. Eles atacam como democracia aquilo que não é democracia e caem por vezes na incoerência de que, sendo antidemocratas, defendem os mais altos interesses da democracia.” A crítica pode atingir um ou outro político que fazem mal uso do sistema, mas se a crítica os atinge ela enaltece os princípios democráticos.

Infelizmente a crise da cultura que ganhou força no último século, alimentou investidas políticas antidemocráticas, mas não há nada que se compare ao sistema democrático quando falamos da escolha dos representantes do povo que decidirão o seu destino. A democracia apazigua a disputa de legítimos e contraditórios interesses e profundas diferenças de uma sociedade plural.

Recentemente houve no Brasil outra investida antidemocrática. Não é uma exceção em nosso país, mas é uma serpente que sai do ovo para picar a liberdade. Se a democracia entra (id., p. 44): “em crise é porque, sendo um regime de liberdade, procura constantemente renovar-se e pôr-se de acordo com todos os interesses fundamentais da vida.” E assim, mesmo tendo seus limites é, na forma da democracia livre conduzida no estado de direito, o melhor sistema que podem assumir sociedades plurais contemporâneas como a nossa. A democracia é a melhor maneira de defender os desafios de hoje: o estado de direito, a justiça, a educação, a racionalidade e a ciência, a proteção ambiental, a liberdade, a cultura, a memória, a igualdade moral, a proteção social da vida, da velhice e dos incapazes e, finalmente, assegurar o respeito entre todos os homens.


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