sexta-feira, 13 de maio de 2022

O racismo, mexendo no alicerce. José Mauricio de Carvalho

 




Karl Jaspers foi genial, desses gênios que conseguem se tornar referência mundial em dois campos diferentes do conhecimento. Ele o foi como médico psiquiatra e como filósofo. E viveu em dias extremamente duros, tempo da emergência da extrema direita na Alemanha, na década de 30 do século passado e da redução do pensamento científico ao materialismo positivista, herdado do século XIX. Isso o levou a enfrentar tanto o cientificismo redutor quanto o pensamento político torpe. E interpreto como torpe toda forma de radicalismo político inimigo da liberdade, do estado de direito e da democracia. Creio que não é preciso muita inteligência para entender isso. Vilém Flusser, o filósofo tcheco que viveu no Brasil mais de três décadas, enxergou na teatralidade nacionalista-racista, que ele assistiu no nazi-fascismo, o êxtase orgiástico das grandes manifestações e a inautenticidade dos sentimentos expressões semelhantes à histeria. Quanto a sua dimensão filosófica, esse nacionalismo-racista dos nazi fascistas, como é o pensamento político da extrema direita, ele escreveu em Ser judeu (2014, p. 222): “é subumanamente cretino. Como articulação existencial, é covarde e nojento.”

Voltando a Jaspers, o filósofo elaborou, na última etapa de sua vida uma filosofia da existência pautada na liberdade responsável. Ali a compreensão de liberdade vinha amparada e limitada, no âmbito político pelas leis do país. No que se referia ao positivismo materialista, a liberdade se sustentava no reconhecimento do espírito e nas suas exigências na construção de uma crítica da ciência. Uma síntese desse programa de vida ele propôs em sua Introdução ao pensamento filosófico (1993, p. 92): “Em 1931, no meu livro Situação espiritual de nosso tempo deixei dito que o marxismo, a psicanálise e o racismo (nazismo), (portanto em termos mais gerais, a sociologia, a psicologia e a antropologia biológica) são – desde o momento em que perdem o caráter científico para se tornarem concepções do mundo – os três grandes adversários espirituais do homem de nossa época. Contra eles só podemos defender-nos recorrendo à filosofia, atividade a que todo homem se entrega mas que se esclarece pelo trabalho dos filósofos, que a explicitam e sistematizam.”

Jaspers não falou sozinho da sociedade que via. Outros pensadores, filósofos e cientistas descreveram a sociedade de então. Em síntese, pode-se dizer: Ortega y Gasset tratou de uma sociedade que funciona como massas, Sartre de uma sociedade desocupada da liberdade existencial, Martin Buber e de uma sociedade que perdeu suas crenças, valores e religiosidade, Flusser de uma sociedade em crise de cultura, Bauman de uma sociedade líquida onde não há solidez nas relações pessoais e institucionais, e tantos outros que descreveram o que viam se passar. O resumo de tudo é o surgimento de uma sociedade de massas, uma sociedade pouco reflexiva, que deixou de admirar os pensadores, perdeu vergonha da ignorância, desgostou-se da democracia e queria um líder carismático que dirigisse a vida: um füher, um duce, um condutor, um mito.

O crescimento das manifestações racistas, homofóbicas, excludentes, antidemocráticas, fundamentalista, etc. não são fenômenos isolados ou fruto de algo estrutural na sociedade brasileiro que agora, do nada, emergiu. É fenômeno amplo e complexo fruto de um movimento amplo do ocidente. O nacionalismo-racista reapareceu no mundo em diferentes países depois que a Guerra Fria acabou e deu origem a conflitos setoriais, favorecendo o reaparecimento dos movimentos radicais da extrema direita. Trata-se de fenômeno contaminante, que vai se espalhando.

Para esses dias também contribuiu a destruição do humanismo, a desvalorização da razão ou a antirracionalidade, que esse tempo acirrou. Isso porque todos os filósofos que examinaram a cultura e sua crise no século passado já descreviam quase tudo que estamos vendo acontecer nesses nossos dias. O enfrentamento do racismo e todas as formas de antihumanismo deverá ocorrer com ações na justiça, mas somente se tornará efetivo se conseguirmos retomar a tradição judaico-cristã e do humanismo republicano de que todos os homens são irmãos diante de Deus e/ou membros de uma humanidade comum, ainda que singulares em sua história e sentido existencial.

 

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