Ricardo
Rodríguez e o ensino
É natural a curiosidade dos cidadãos
sobre pessoas que ocuparão postos estratégicos num futuro governo. Portanto, é
natural e louvável o interesse dos brasileiros sobre os novos ministros entre
os quais o Ministro da Educação, Ricardo Vélez Rodríguez. Dos outros ministros
indicados conheço pouco, Ricardo Rodríguez conheço bem. Nascido em 15 de
novembro de 1943, em Bogotá, Colômbia, ele vive no Brasil há mais de quatro
décadas tendo se naturalizado brasileiro e tido dois filhos brasileiros. Dotado
de inteligência rara e grande capacidade de estudo e trabalho, Ricardo
Rodríguez licenciou-se em Filosofia na Universidade Javeriana, em 1963. Cursou
Teologia no Seminário Conciliar ainda em Bogotá, fez mestrado em Filosofia na
PUC-Rio (1974), doutorado em Filosofia na UGF (1982) e estágio de pós doutorado
na França. É membro da Academia
Brasileira de Filosofia e Sociedade Tocqueville (ambas no Rio de Janeiro),
Instituto de Filosofia Luso-Brasileira (Lisboa), Instituto Brasileiro de
Filosofia (São Paulo), The Planetary Society (Pasadena – Califórnia), Instituto
Histórico e Geográfico do Rio de Janeiro, integra o Conselho Diretor do Centro
de Documentação do Pensamento Brasileiro (Salvador) e o Conselho Técnico da
Confederação Nacional do Comércio. Foi professor na Universidade Estadual do
Paraná, na Universidade Gama Filho e, desde 1985, atuou como Professor do
Departamento de Filosofia da Universidade Federal de Juiz de Fora, onde se
aposentou como Associado. Destaco entre seus interesses intelectuais: filosofia
brasileira, filosofia das ciências, história da filosofia, filosofia política,
ética e história da cultura.
Vou apresentá-lo a partir do que já
escrevi sobre ele em Contribuição
contemporânea à História da Filosofia Brasileira (3. ed., Londrina, Eduel,
2001) e em Antologia do culturalismo brasileiro (Londrina: Eduel, 1998).
Ricardo escreveu importantes livros sobre a realidade ibero-americana e
brasileira entre os quais se destacam: Liberalismo
y conservantismo en América Latina (Bogotá, Tercer Mundo, 1978); Castilhismo, uma filosofia da república
(Est-EDUCS, 1980, reeditado em 2000 pelo Senado Federal na Coleção Brasil 500
anos); A propaganda republicana (Ed.
UnB, 1982); O trabalhismo após 1930
(Ed. UGF, 1985); O Castilhismo (Ed.
UGF, 1994); A ditadura republicana
segundo o apostolado positivista (Ed. UGF, 1995); Tópicos especiais de filosofia moderna (Ed. da UEL e Ed. da UFJF,
1995), Oliveira Vianna e o papel modernizador do estado brasileiro (Ed.
da UEL, 1997), Socialismo moral e
socialismo doutrinário (Ed. UGF, 1997);
Avanços teóricos da socialdemocracia
(Ed. UGF, 1997); A democracia liberal
segundo Alexis de Tocqueville
(Mandarim, 1998), Keynes, doutrina e
crítica (Ed. Massao Ohno, 1999)
e Estado, cultura y sociedad en la
América Latina (Bogotá, Universidad Central, 2000). Além
desses é autor de muitos capítulos em outras obras e centenas de artigos
científicos.
Rodríguez
conhece como poucos o positivismo e sua derivação política no Brasil, o
castilhismo. Além disso, aplicou, com grande habilidade, os conceitos da
sociologia weberiana no estudo da realidade ibero-americana. Dessa forma,
avalia a organização político-burocrática dessas nações a partir dessa
sociologia, evitando utilizar categorias marxistas, que Vélez conhece bem, mas
avalia não traduzirem a realidade dessas sociedades. Com o conceito de Weber elaborou
um outro para explicar o comportamento político nessa sociedade: a ética patrimonial.
O que a tipifica? O fato de o homem projetar, no espaço cultural, a consciência
de seus limites e desejar encontrar no útero protetor da organização política,
aquilo que a vida parece negar. Essa noção de patriominialismo ajuda a entender
como os assuntos do Estado são resolvidos como se fossem assuntos familiares,
confundindo-se o público e o privado. Esta forma administrativa, o estado
patrimonial, teria prevalecido na Rússia e nos países do Leste Europeu, na
leitura de Max Weber. Rodríguez e os weberianos brasileiros a ajustaram à
realidade ibero-americana. Dialogando com Wanderley Guilherme dos Santos
empregou o conceito de autoritarismo
instrumental, como o modelo patrimonial de modernização do qual é exemplo a
própria revolução de 64 que usa o autoritarismo para promover a modernização da
sociedade. Nesse sentido, o movimento revolucionário parece-lhe parte de um
processo transitório, enquanto a democratização da economia não se completava.
Na
interpretação da cultura ibérica, Ricardo Vélez considera que o patrimonialismo
que aqui se estabeleceu é uma espécie de centripetismo privatizante,
estruturado em torno da figura do monarca, e foi herança política de um meio
cultural igualmente absorvente, a cultura muçulmana. Entre os árabes, que ocuparam
por oitocentos anos a península ibérica, a religião universalista e o dirigente
protetor eram a garantia contra uma vida insegura e instável. A novidade da
leitura de Ricardo é que, para ele, a opção patrimonial não destruiu a tradição
contratualista ibérica, afastando-se, assim, da clássica interpretação de
Alexandre Herculano. Por isso, a ideia de patrimonialismo pareceu-lhe uma
vertente destacada, em alguns períodos da história mais ativa, porém secundária
em relação ao desejo da liberdade e um certo gosto pelo individualismo que
entre os ibéricos se exteriorizou no direito consuetudinário visigótico, sob
cujas bases desenvolveu-se, hoje em dia, a democracia ibérica. Sua
interpretação do patrimonialismo modernizador revelou que o movimento podia caminhar
em direção a uma sociedade aberta. Isso
porque o patrimonialismo ibérico, como dito, não destruiu o espírito de
liberdade, herança do direito visigótico. É nessa tradição que ele estabelece
as raízes do pensamento liberal que lhe parece pode modernizar a sociedade
brasileira, ao mesmo tempo que dá, à sua interpretação, uma coloração
filosófica, que não é evidente na interpretação mais sociológica que Alexandre Herculano
realizou da sociedade ibérica.
Para
Ricardo Vélez, a superação do patrimonialismo é fundamental, pois ele está
associado ao atraso econômico, social e político da sociedade brasileira,
completando a influência negativa deixada pela moral contra-reformista, que
teve forte impacto entre nós durante mais de três séculos e que popularizou o ódio
ao lucro, o desinteresse pelas coisas deste mundo e a avaliação negativa do
trabalho entendido como castigo. Parece que, inicialmente, Rodríguez entendeu o
movimento que afastou Collor de Melo era uma recuperação dessa raiz visigótica
em direção a um liberalismo maduro, mas depois se convenceu que não foi o que
ocorreu. Recentemente enxergou nos governos petistas um recrudescimento do
patrimonialismo, onde a mistura se deu não entre as coisas da vida privada do
governante e do Estado, mas na confusão entre os interesses do Partido e do
Estado, o que levou a corrupção generalizada entre os altos dirigentes.
No
livro Tópicos especiais da filosofia
contemporânea (2001), Ricardo Vélez reconheceu sua filiação à escola culturalista
e fez uma análise da tradição pedagógica ibérica, vendo-a marcada pela falta de
interdisciplinaridade. Parece-lhe que o motivo foi o papel da teologia no
ensino escolástico, substituída, no século XVIII, pela aritmética política
pombalina, que não modificou seu caráter. Para superar essa limitação,
parece-lhe que a pesquisa continuada e a formação humanística do universitário
constituem os caminhos mais seguros para garantir a interdisciplinaridade.
Quanto à importância desse humanismo no ensino básico, Ricardo o faz integrar a
formação para a cidadania necessária na formação inicial do cidadão.
Isso
permite esperar tanto a revalorização das humanidades na formação
universitária, às quais Ricardo Vélez sempre deu atenção destacada e é tão
necessária quanto a competência técnica e profissional na formação do estudante,
quanto a educação interdisciplinar orientada para a formação da cidadania, na
escola fundamental, que seria entregue aos municípios, na melhor tradição
visigótica.
O
aprofundamento das chamadas humanidades representa uma orientação que intelectuais
como Ortega y Gasset e boa parte dos fenomenólogos fizeram desde o século
passado. Eles pretendiam assim enfrentar a superficialidade e outros males
advindos da falta de reflexão presente nas sociedades de massas. Esse estudo consiste
no entendimento e aprofundamento do legado que veio desde os tempos clássicos,
antiga Grécia e Roma, e foi revisitado no final da Idade Média e Renascença.
Nosso sistema educacional não tem cuidado do entendimento e análise dessa tradição,
praticando-se uma leitura comentada de raras obras apenas nos seminários de pós-graduação.
A disponibilidade de textos na rede mundial de computadores não garante uma
leitura proveitosa deles e é importante que a escola possa, do ensino
fundamental até a universidade, organizar um programa de estudo desses
conteúdos essencial para a formação para a cidadania.
Ricardo
Vélez e outros culturalistas (Leonardo Prota e Antônio Paim) elaboraram um
programa de estudos das humanidades tendo como referência as escolhas feitas no
St. John´s College ou da coleção Great Books da Enciclopédia Britânica, havendo
preparado um curso de humanidades sistematizando e comentando algumas obras ali
referenciadas. Esse estudo abrangia assuntos e livros da antiguidade clássica,
Israel e helenismo, bem como textos da Renascença e do pensamento moderno e
contemporâneo.
A finalidade do estudo das humanidades, no âmbito do
programa feito Ricardo, Paim e Prota, tem em vista o enfrentamento de
dificuldades da sociedade atual. Parece-nos que o desafio a ser vencido é o que
resumimos no livro O homem e a filosofia,
pequenas meditações sobre a existência e a cultura. 3. ed., Porto Alegre:
MKS, 2018, como se segue (p. 62):
É a
tradição judaico-cristã e histórico-filosófico-jurídica, sistematizada pelos
culturalistas do século XX como raiz axiológica e cognitiva do ocidente, que
coloca como desafio de hoje: aproximar a vida singular do espaço cultural. Essa
é a forma mais adequada para tratar a vida do homem, inseri-la na cultura.
Cultura é, pelo que se disse, tudo o que o homem objetiva como valor, tudo o
que referencia na relação com seu entorno. Na ordem das ideias, a distinção
entre sujeito e objeto é lógica, na cultura tem caráter existencial. Queremos
dizer que a vida tanto é objeto de investigação quanto é experiência singular.
Tomando o viver como objeto de investigação, constatam-se os limites do
conhecimento e criam-se teorias para explicar o mundo, assumindo a vida como
exercício de escolhas experimenta-se existência singular. Por esse motivo, uma
meditação sobre o homem precisa considerar que ele cria e absorve cultura, mas
o faz segundo exigências existenciais próprias de sua singularidade.