O capítulo segundo de O Homem e a Filosofia (Porto Alegre,
MKS, 2018, p. 47- 63) examina os
conceitos existência e cultura. Tratam-se dos conceitos nucleares daquele livro
porque com eles se examina a realidade humana, atualizando e ampliando uma
discussão anterior que descrevia o homem a partir da dialética genética e
ambiente. Os dois conceitos escolhidos são mais amplos e agregam novos
elementos procurando responder à clássica questão antropológica: o que é o
homem? Com existência tratamos da circunstância quotidiana da vida singular e
com cultura consideramos a presença histórica e consolidada dos valores da
sociedade. O homem ao nascer age apenas por instinto, mas como não tem como
viver em sociedade apenas obedecendo seus instintos, à medida que cresce
aprende valores e adquire conhecimentos que guiam suas escolhas.
Os dois conceitos, existência e cultura,
são fundamentais pelo que definem, mas devem ser entendidos não apenas
isoladamente mas pela interação sujeito e circunstância. (p. 47) “O estar no
mundo, no meio das coisas, é realidade do homem. A vida humana é situada, ou
circunstanciada, se quisermos usar a categoria de Ortega y Gasset. Trata-se de
relação inseparável que interfere na forma de compreender o entorno e de
responder a ele.” Isso nos chama atenção para o fato de que a existência humana
não se dá apenas no ambiente natural, mas nesse ambiente natural modificado
pela cultura. É nesse espaço modificado
pela própria ação humana durante a história que o indivíduo vive uma relação
dialética (p. 49): “entre a consciência e os produtos do espírito.” E sua
consciência funciona sempre no sentido fenomenológico identificado por Husserl,
é uma consciência cheia de objetos do mundo, não é um pensamento vazio.
A existência (entendida como vida
singular que se atualiza nas ações diárias) não está fora de um ambiente
cultural, mas pode afastar-se dele (p. 50): “por alguns momentos. O indivíduo
se aparta do entorno enquanto tece seu projeto.” Em outras palavras, enquanto
transcende a situação vivida e examina o que vai fazer na circunstância em que
se encontra, o homem se auto direciona. E a situação do homem contemporâneo é
singular pelos desafios que enfrenta, viver numa sociedade de massas hedonistas
e ansiosas, pouco dedicadas ao cuidado com a vida singular e com aqueles
talentos ou vocação singularíssima que diferencia uns dos outros.
O entendimento de cultura como objetivação
de valores é uma tese consagrada pelo culturalismo brasileiro, notadamente por
Tobias Barreto e Miguel Reale. Esse último construiu com sua teoria da cultura a
base filosófica da versão que deu ao tridimensionalismo jurídico. No entanto,
essa teoria da cultura ganhou um complicador quando os valores ocidentais foram
confrontados com sociedades como a islâmica num processo de globalização
cultural. Isso não significa que Reale deixou de ter razão, mas mostrou que o
reconhecimento dos valores não é feito sem embates e não tem o reconhecimento
definitivo que ele anunciou. Por sua vez, o embate cultura e natureza
tematizada por Tobias Barreto ganhou novas nuances com as recentes alterações
climáticas (p. 53): “A luta contra a natureza tanto se refere a domar a força
dos instintos no íntimo de cada pessoa, como ele (Tobias) explicou quando disse
que se a escravidão é natural é cultural que ela não exista, como em submeter
as leis da natureza exterior e que são entendidas como antítese da cultura. Se
a vida pessoal em nossos dias favorece olhar os instintos como parte da
condição humana, algo que integra a circunstância de existir, o olhar para o
mundo exterior mudou com o reconhecimento daquilo que Miguel Reale denominou
valor ecológico, por ele considerado um novo valor. É com esse reconhecimento
que a natureza deixou de ser percebida apenas pela antítese da cultura para se tornar
um novo valor que dá suporte à vida humana.” Portanto, o conceito de cultura
não significa, hoje em dia, simples antítese da natureza, é um valor a ser
cuidado.
Quanto à noção de existência, ela foi
enriquecida pelos existencialistas e por Ortega y Gasset, pois passou a
representar não somente o entorno, mas tudo o que foi vivido pelos indivíduos,
mesmo suas perdas. Circunstância diz (p. 54): “não apenas o que precisamos para
viver como: alimentos, carinho, roupas, moradias, aparelhos, utensílios,
crenças, sonhos, mas também o que está ausente e cuja expectativa reclama
esforço aquisitivo. O amor perdido pede um esforço de reconquista, o que está
falho solicita correção, o que obstrui o desenvolvimento demanda remoção. Tudo
isso constitui o entorno e mais as esperanças cultivadas com zelo parecido ao
da mulher grávida, que antecipa em cada dia da gestação, o momento em que terá
o filho nos braços.”
Uma das contribuições mais interessantes
dessa forma de tratar o assunto é nos livrarmos de uma espécie de determinismo
neurótico, isto é, de achar que somos assim por causa da circunstância. Se elas
nos limitam (ibidem): “o existente é
o ser que não tem como abandonar a criação do seu modo de ser. Dele faz parte o
reconhecimento de valores, por isto o seu modo de ser inclui um dever ser, como
dizia Miguel Reale. Dependendo das escolhas que faz ou deixa de fazer sua
existência tomará um ou outro rumo. A
sua vida ganhará um ou outro sentido, uma ou outra direção, nexo e
significado.”
Entre os valores identificados na
cultura, o homem é o maior deles por que é o centro e o condicionante dos
demais. Constitui aquilo que Miguel Reale denomina de invariante axiológico.
Essa escolha do valor nuclear não é arbitrária (p. 61): “ela traduz o
entendimento da pessoa como valor que amadureceu na herança judaico-cristã
através da meditação filosófica”.
Se somos educados e modificados pela
cultura e seus valores também a modificamos com nossa ação singular (p. 62):
“Fazemos cultura aproximando nosso destino do dos outros homens, ainda que
nunca deixemos de ser nós mesmos ao fazê-lo. Essa é a ambiguidade inalienável
que temos que viver; somos únicos e parte do grupo.”
A relação entre a vida singular é complexa e envolve todas essas
nuances. Queremos destacar mais uma: “Apontou-se que a singularidade
existencial ganha compreensão no confronto com a cultura, quando incorpora
elementos da subjetividade fenomenológica.
Os valores estão na cultura, mas não se impõem sem a adesão pessoal e mesmo
quando ela existe não esgota a construção do sentido. Mesmo sendo referência
para o sentido, a existência permanece aberta como possibilidade de
ressignificar o futuro e conjecturar sobre o mundo, em meio aos limites que o
homem não pode superar: de conhecer e do viver.”
Todo o restante do livro consiste num aprofundamento e esclarecimento
de diversos assuntos humanos a partir da relação dialética entre existência e cultura.
Alguns dos temas tratados nos outros capítulos são: a política, a história, a
ética, a religião, a ciência, a finitude humana.