sexta-feira, 24 de julho de 2020

O reencontro homem moderno com o mundo natural. José Mauricio de Carvalho – pós-doutorando do NUPES/UFJF


Quando tentamos fazer síntese do que houve num século ou num tempo ainda mais extenso que uma centúria, corremos dois grandes riscos. O primeiro é saber como bem caracterizar e apontar o essencial de um período tão longo. O segundo é a superficialidade e o engano porque à medida que avançam os anos e as pesquisas, mudamos o olhar para o passado e ele começa a ficar diferente quando fica iluminado pelos novos estudos. Em outras palavras, quanto mais sabemos do passado mais diferente ele nos parece do que dele nos fora dito. Para falar do novo olhar para o mundo natural, próprio do homem no início da modernidade, temos que ter uma boa compreensão do universo cultural europeu dos séculos XVI a XVIII separando dois momentos: uma primeira metade com a ênfase nos estudos de matemática e uma segunda com os trabalhos de Física. Porém, não se pode começar a falar desse novo olhar para o mundo natural sem voltar mais para trás e é isso que procuraremos fazer a seguir.

O século XVI, e seus estudos de matemática, foi preparado pelo século anterior. Leonardo da Vinci (1452-1519) e seus contemporâneos, como Nicolau Copérnico (1473-1543), viram que a razão podia identificar os segredos do mundo e o reconstituíram com o cálculo, não mais necessitando voltar à experiência. Na esteira dessas ideias, foi que mais tarde Galileu Galilei (1564-1641) afirmou que a matemática era o alfabeto do mundo. A medida e a representação matemática da natureza foram as bases da nova ciência que nasceria em seguida. Foi nessa perspectiva que Kepler (1571-1630) descreveu o funcionamento do sistema solar, destruindo de uma só vez, a cosmologia antiga de Aristóteles e a visão medieval da natureza. Adicionalmente estimulou novas formulações filosóficas a partir do heliocentrismo. Note-se que todos esses homens não contestavam a Teologia, nem a Filosofia. A autonomia dos estudos da natureza deixava, ao contrário, mais consistente a Filosofia e a Teologia do que as antigas formulações escolásticas, pois as construções medievais amarravam os dois mundos: o da natureza e o da transcendência.

Na segunda metade do século XV, Pico della Mirandola (1463-1491) ajudou a preparar o novo momento combinando a ideia de racionalidade, resumida pela filosofia da época, com a noção teológica de criatura de Deus. (CARVALHO, O homem e a Filosofia, Porto Alegre: MKS, 2018, p. 168): “Ele escreveu em A dignidade do Homem (1988) qual era o destino humano naquele novo tempo que se iniciava: tu, porém, não estás coartado por amarra nenhuma. Antes, pela decisão do arbítrio, em cujas mãos te depositei hás de determinar a tua complexão pessoal.”

O surgimento da ciência moderna foi preparado, portanto, nos séculos XIV e XV pelo legado de homens como Mirandolla, Leonardo da Vinci e Nicolau Copérnico. Ele foi um período de transição para uma nova maneira de compreender o mundo. Esses dois séculos se seguiram aos quatrocentos ainda cheio de grandes construções metafísicas, lembro de Alberto Magno, Roger Bacon e Guilherme de Ockam. A característica mais marcante desses dois séculos foi a investigação autônoma do funcionamento da natureza. Note-se que, nesse estilo de compreensão do mundo natural não há espaço para o ateísmo, antes nota-se a importância e significado da presença de Deus, além de não se contestar o valor da Filosofia. O que então se fez foi olhar mais atentamente o funcionamento do mundo, não ainda como na ciência moderna, mas já preparando a nova mentalidade.

Se o ideal da ciência nos quatrocentos era ainda descobrir a essência pura das substâncias, com a perspectiva copernicana, trabalhada nos séculos XVI e XVII por Kepler e Galileu, esse propósito mudou na direção apontada pelo método experimental. Esse método consistia na observação dos fenômenos naturais, sua tradução em relações quantitativas e numéricas, a formulação de hipóteses explicativas dos futuros fenômenos (indução) e a verificação da hipótese com o cálculo. Se o fato observado e o cálculo chegam a resultado igual, criava-se uma lei válida para explicar a natureza.

Embora atento aos movimentos do mundo, o homem dos séculos XIV e XV fora marcado pelo humanismo, não mais o cristão da Idade Média, mas o da antiguidade clássica, redescoberto junto ao esforço de valorização das realizações humanas. E esse homem, olhando para o mundo clássico, desenvolveu um novo olhar para as relações de fé. Em que pese a existência das novas religiões cristãs, provocando o cisma da cristandade medieval, popularizou-se a ideia de uma religião natural e um direito natural, ambos acima das diferentes religiões e dos sistemas positivos do Direito. Essa forma de ver a religião ajudou a entender verdades naturais que não separavam, mas aproximavam as religiões. Quanto ao jusnaturalismo moderno, no século XVII com Samuel Puffendorf ajudou não apenas na formulação dos códigos de Direito, mas na organização do Estado Moderno sob bases diferentes da medieval. Como se encontra em O Homem e a Filosofia (Porto Alegre, MKS, 2018, p. 277): “No início da modernidade a consciência da diferença entre ética e política provocou uma crise, pois significou uma mudança radical no modo de pensar da Idade Média. Porém, aos poucos foi possível compreender a singularidade da Política.” Muito interessante que o Leviatã, livro de Thomas Hobbes (1588-1679), embora ainda concebido sob a noção de poder absoluto, admitiu um acordo onde as pessoas renunciavam ao interesse próprio em nome dos benefícios de todos e logo depois, um ajuste nessa teoria do contrato social, permitiu passar do absolutismo de Hobbes para o liberalismo e a ideia de tolerância desenvolvida por John Locke (1632-1704).

Os séculos XIV e XV prepararam, portanto, o desenvolvimento da razão experimental, afirmaram a dignidade e valor do homem com a recuperação do platonismo, contestaram a leitura de Aristóteles, popularizada na Europa Medieval, por Averróis. Ambas as coisas propiciaram, não eliminar Deus do espaço cultural, mas desnaturalizá-lo e construir uma nova ciência e um novo espaço social para substituir a cristandade medieval.

As diversas leituras e releituras feitas por especialistas desses movimentos intelectuais da modernidade mostraram que embora a ciência nunca tenha contestado a fé ou o funcionamento da razão, houve uma filosofia que começou a fazê-lo, séculos mais tarde, o positivismo. Na esteira do positivismo, já na segunda metade do século XIX, desenvolveu-se uma teoria materialista da ciência que foi nessa direção.

Na segunda parte do clássico Eu e Tu, Martin Buber resumiu a história do indivíduo e das primeiras civilizações através das expressões: mundo do Isso, que se refere à objetividade, à civilização e à ciência e mundo do Tu para se referir às relações do homem com a transcendência. As civilizações se iniciaram, lembrava Buber, com poucos objetos, o que significava que a consciência humana começou devagar a se articular na compreensão das coisas. Aos poucos, além das próprias experiências, essas antigas civilizações receberam influências de outras civilizações e os antigos impérios trocaram conhecimento sobre o mundo do Isso, quer diretamente como Roma fez da Grécia, quer indiretamente como foi a relação da sociedade medieval com a antiga Grécia. O mundo do Isso é o mundo da experiência e da utilidade. Assim, quando aumenta o experimentar e o utilizar no espaço social, amplia-se o mundo do Isso. Foi assim que Martin Buber explicou o que se passou também com a nova ciência. Ocorreu uma espécie de renovação do que houve no início das grandes civilizações. A ampliação da preocupação com as coisas e o funcionamento da natureza provocou, isso no século XIX, o esquecimento dos elementos espirituais que estavam presentes nos séculos XIV e XV. O que Buber observou não foi que Deus acabou esquecido ou a Filosofia abandonada ao longo da modernidade, mas que quando a razão humana reduz as relações espirituais e fortalece as relações com o isso, os aspectos transcendentes, metafísicos ou teológicos, ficam obscurecidos no espaço cultural e no mundo mental de cada pessoa. Ficam eclipsados para usar a expressão que o filósofo utiliza. Conhecer os mecanismos do mundo é imprescindível para o homem, mas ele também necessita das referências metafísicas e religiosas para viver. Isso significa que precisamos retomar aquela perspectiva humanista dos séculos XIV e XV, pois a ciência não nasceu e não precisa ser feita contra a transcendência e a fé.

 



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