Quando
tentamos fazer síntese do que houve num século ou num tempo ainda mais extenso
que uma centúria, corremos dois grandes riscos. O primeiro é saber como bem
caracterizar e apontar o essencial de um período tão longo. O segundo é a
superficialidade e o engano porque à medida que avançam os anos e as pesquisas,
mudamos o olhar para o passado e ele começa a ficar diferente quando fica
iluminado pelos novos estudos. Em outras palavras, quanto mais sabemos do
passado mais diferente ele nos parece do que dele nos fora dito. Para falar do
novo olhar para o mundo natural, próprio do homem no início da modernidade,
temos que ter uma boa compreensão do universo cultural europeu dos séculos XVI
a XVIII separando dois momentos: uma primeira metade com a ênfase nos estudos
de matemática e uma segunda com os trabalhos de Física. Porém, não se pode
começar a falar desse novo olhar para o mundo natural sem voltar mais para trás
e é isso que procuraremos fazer a seguir.
O século
XVI, e seus estudos de matemática, foi preparado pelo século anterior. Leonardo
da Vinci (1452-1519) e seus contemporâneos, como Nicolau Copérnico (1473-1543),
viram que a razão podia identificar os segredos do mundo e o reconstituíram com
o cálculo, não mais necessitando voltar à experiência. Na esteira dessas ideias,
foi que mais tarde Galileu Galilei (1564-1641) afirmou que a matemática era o
alfabeto do mundo. A medida e a representação matemática da natureza foram as
bases da nova ciência que nasceria em seguida. Foi nessa perspectiva que Kepler
(1571-1630) descreveu o funcionamento do sistema solar, destruindo de uma só
vez, a cosmologia antiga de Aristóteles e a visão medieval da natureza. Adicionalmente
estimulou novas formulações filosóficas a partir do heliocentrismo. Note-se que
todos esses homens não contestavam a Teologia, nem a Filosofia. A autonomia dos
estudos da natureza deixava, ao contrário, mais consistente a Filosofia e a
Teologia do que as antigas formulações escolásticas, pois as construções
medievais amarravam os dois mundos: o da natureza e o da transcendência.
Na
segunda metade do século XV, Pico della Mirandola (1463-1491) ajudou a preparar
o novo momento combinando a ideia de racionalidade, resumida pela filosofia da
época, com a noção teológica de criatura de Deus. (CARVALHO, O homem e a Filosofia, Porto Alegre:
MKS, 2018, p. 168): “Ele escreveu em A dignidade do Homem (1988) qual
era o destino humano naquele novo tempo que se iniciava: tu, porém, não estás coartado por amarra nenhuma. Antes, pela decisão
do arbítrio, em cujas mãos te depositei hás de determinar a tua complexão
pessoal.”
O
surgimento da ciência moderna foi preparado, portanto, nos séculos XIV e XV
pelo legado de homens como Mirandolla, Leonardo da Vinci e Nicolau Copérnico.
Ele foi um período de transição para uma nova maneira de compreender o mundo. Esses
dois séculos se seguiram aos quatrocentos ainda cheio de grandes construções
metafísicas, lembro de Alberto Magno, Roger Bacon e Guilherme de Ockam. A
característica mais marcante desses dois séculos foi a investigação autônoma do
funcionamento da natureza. Note-se que, nesse estilo de compreensão do mundo
natural não há espaço para o ateísmo, antes nota-se a importância e significado
da presença de Deus, além de não se contestar o valor da Filosofia. O que então
se fez foi olhar mais atentamente o funcionamento do mundo, não ainda como na ciência
moderna, mas já preparando a nova mentalidade.
Se
o ideal da ciência nos quatrocentos era ainda descobrir a essência pura das
substâncias, com a perspectiva copernicana, trabalhada nos séculos XVI e XVII
por Kepler e Galileu, esse propósito mudou na direção apontada pelo método
experimental. Esse método consistia na observação dos fenômenos naturais, sua
tradução em relações quantitativas e numéricas, a formulação de hipóteses
explicativas dos futuros fenômenos (indução) e a verificação da hipótese com o
cálculo. Se o fato observado e o cálculo chegam a resultado igual, criava-se
uma lei válida para explicar a natureza.
Embora
atento aos movimentos do mundo, o homem dos séculos XIV e XV fora marcado pelo
humanismo, não mais o cristão da Idade Média, mas o da antiguidade clássica,
redescoberto junto ao esforço de valorização das realizações humanas. E esse
homem, olhando para o mundo clássico, desenvolveu um novo olhar para as
relações de fé. Em que pese a existência das novas religiões cristãs,
provocando o cisma da cristandade medieval, popularizou-se a ideia de uma
religião natural e um direito natural, ambos acima das diferentes religiões e
dos sistemas positivos do Direito. Essa forma de ver a religião ajudou a
entender verdades naturais que não separavam, mas aproximavam as religiões.
Quanto ao jusnaturalismo moderno, no século XVII com Samuel Puffendorf ajudou
não apenas na formulação dos códigos de Direito, mas na organização do Estado
Moderno sob bases diferentes da medieval. Como se encontra em O Homem e a Filosofia (Porto Alegre,
MKS, 2018, p. 277): “No início da modernidade a consciência
da diferença entre ética e política provocou uma crise, pois significou uma
mudança radical no modo de pensar da Idade Média. Porém, aos poucos foi
possível compreender a singularidade da Política.” Muito interessante
que o Leviatã, livro de Thomas Hobbes
(1588-1679), embora ainda concebido sob a noção de poder absoluto, admitiu um
acordo onde as pessoas renunciavam ao interesse próprio em nome dos benefícios
de todos e logo depois, um ajuste nessa teoria do contrato social, permitiu
passar do absolutismo de Hobbes para o liberalismo e a ideia de tolerância desenvolvida
por John Locke (1632-1704).
Os
séculos XIV e XV prepararam, portanto, o desenvolvimento da razão experimental,
afirmaram a dignidade e valor do homem com a recuperação do platonismo,
contestaram a leitura de Aristóteles, popularizada na Europa Medieval, por
Averróis. Ambas as coisas propiciaram, não eliminar Deus do espaço cultural,
mas desnaturalizá-lo e construir uma nova ciência e um novo espaço social para
substituir a cristandade medieval.
As
diversas leituras e releituras feitas por especialistas desses movimentos
intelectuais da modernidade mostraram que embora a ciência nunca tenha
contestado a fé ou o funcionamento da razão, houve uma filosofia que começou a
fazê-lo, séculos mais tarde, o positivismo. Na esteira do positivismo, já na
segunda metade do século XIX, desenvolveu-se uma teoria materialista da ciência
que foi nessa direção.
Na
segunda parte do clássico Eu e Tu,
Martin Buber resumiu a história do indivíduo e das primeiras civilizações
através das expressões: mundo do Isso, que se refere à objetividade, à
civilização e à ciência e mundo do Tu para se referir às relações do homem com
a transcendência. As civilizações se iniciaram, lembrava Buber, com poucos
objetos, o que significava que a consciência humana começou devagar a se
articular na compreensão das coisas. Aos poucos, além das próprias
experiências, essas antigas civilizações receberam influências de outras
civilizações e os antigos impérios trocaram conhecimento sobre o mundo do Isso,
quer diretamente como Roma fez da Grécia, quer indiretamente como foi a relação
da sociedade medieval com a antiga Grécia. O mundo do Isso é o mundo da
experiência e da utilidade. Assim, quando aumenta o experimentar e o utilizar
no espaço social, amplia-se o mundo do Isso. Foi assim que Martin Buber
explicou o que se passou também com a nova ciência. Ocorreu uma espécie de
renovação do que houve no início das grandes civilizações. A ampliação da
preocupação com as coisas e o funcionamento da natureza provocou, isso no
século XIX, o esquecimento dos elementos espirituais que estavam presentes nos
séculos XIV e XV. O que Buber observou não foi que Deus acabou esquecido ou a
Filosofia abandonada ao longo da modernidade, mas que quando a razão humana
reduz as relações espirituais e fortalece as relações com o isso, os aspectos
transcendentes, metafísicos ou teológicos, ficam obscurecidos no espaço
cultural e no mundo mental de cada pessoa. Ficam eclipsados para usar a
expressão que o filósofo utiliza. Conhecer os mecanismos do mundo é
imprescindível para o homem, mas ele também necessita das referências
metafísicas e religiosas para viver. Isso significa que precisamos retomar
aquela perspectiva humanista dos séculos XIV e XV, pois a ciência não nasceu e
não precisa ser feita contra a transcendência e a fé.