Estes dias reencontrei antigos colegas de curso na
comemoração de trinta e dois anos de conclusão da formação universitária. E ao
revê-los todos e todas na incontida alegria do reencontro deparei-me com
existências maravilhosas, vidas dedicadas ao que nunca pude imaginar quando
convivia com aqueles moços e moças. Não se sai impune de um reencontro em que
se escuta do colega, que tem nos olhos a ternura amadurecida no sofrimento, que
viveu esses anos para estudar, amparar, acompanhar e aliviar as dores de
pessoas diagnosticadas esquizofrênicas. Que vida é essa, é inevitável que se
pergunte?
Desde que se consolidaram os primeiros núcleos de
civilização os homens se perguntam sobre o que seria uma vida propriamente
humana. A simples pergunta nos coloca diante da constatação: uma vida
singularmente humana não se limita a responder aos desafios imediatos da
sobrevivência. Se conseguir os meios de sobreviver é importante, viver por
viver nunca pareceu valer a pena. Sem se encantar, apaixonar-se, entregar-se, a
vida humana é uma pobre experiência de sentido.
Encantar-se tem algo irracional no sentido de que
não dedica a cuidar dos que sofrem por decisão exclusivamente racional, não se
decide escolher um companheiro ou companheira simplesmente fazendo um balanço
intelectual, não se escolhe um amor como se busca um bom reprodutor ou
reprodutora para gerar filhos bonitos e saudáveis. Uma vida sexual satisfatória
só ganha charme e duração quando além do contato físico propicia momentos de
partilha do mundo do outro. Ortega y Gasset falava de um descansar no outro que
é para quem ama um lugar feliz de acolhimento. E o encantar-se é a
possibilidade de olhar de perto a personalidade do outro, de encontrar as
analgesias para a alma submetida à distância incômoda e inevitáveis ciúmes e
experimentar a terna superação das mágoas involuntariamente causadas.
Encantar-se é levar o componente irracional da
paixão, ou melhor, transferir o olhar maravilhado do amado para o cuidado com
os que sofrem, para as amizades cultivadas, para o ato criador de beleza e
bondade. Isto permitiu construir mais que um simples lugar para viver, mas
criar um espaço cultural que é uma espécie de segunda pele. Uma pele em que nos
sentimos verdadeiramente homens, mais do que quando estamos dentro de nossa
pele corporal que nos mantém protegido das inadequadas condições para a vida
biológica.
Encantar-se é também comprometer a inteligência com
a verdade, mergulhar numa procura diuturna do que vale a pena conhecer,
apreciar, avaliar e aprender. Encantar-se está na base da Filosofia. Ela é uma
forma de admiração que Aristóteles observa no comportamento do antigo grego
quando ele desejava entender os movimentos do universo e com tal preocupação
chegou à Filosofia, o maior bem com que os deuses presentearam os homens.
Encantar-se, portanto, tem algo irracional, mas não é irracionalismo ou
misticismo que ordinariamente alimentam crenças ruins e nos colocam na mentira
e na dúvida.
Uma vida especialmente humana é uma criação, é uma
realização pessoal que ocorre para além das exigências biológicas, para além da
rotina e das repetições sem sentido. E uma vida humana está, em nossos dias,
cada vez mais comprometida com relações respeitosas com o ambiente, com o reconhecimento
da dignidade dos outros que une todos numa humanidade comum, apesar das
diferenças e singularidades. Uma vida dedicada à superação da violência. Enfim,
uma vida que se realiza em direção ao futuro, no ir adiante dos limites atuais
para encontrar no que transcende a experiência fenomênica os elementos de
sentido que diferenciam a vida do homem de outras formas de existir. Uma vida
onde o sentido suplanta as dores do momento e o gozo efêmero que ao acabar
deixa o vazio da angustia
E só então, pelos imprescindíveis momentos em que
vamos além das exigências diárias, é que a vida humana adquire o sentido
singular que a diferencia de outras formas de existir. É nessas ocasiões que se
fortalece o compromisso com a singularidade que nos faz tão diferentes sob a
humanidade comum. É na construção de sentido único que vemos alguém fazer do
cuidado com os que sofrem uma razão para a própria vida.