O século XX começou com a percepção de que se mergulhara numa crise. Não simplesmente uma crise econômica que depois viria em 1929 para completar o cenário, mas uma crise mais profunda. A crise do desencanto dos homens que vieram da belle époque com suas crenças na bondade natural do homem e no progresso moral permanente da humanidade, com a confiança ingênua de que a ciência seria usada apenas para fazer o bem, que os cientistas eram os novos sacerdotes da humanidade e que viveríamos uma era de paz e de respeito. Enfim, crendo num idealismo no qual o mundo se revelava numa razão abstrata, ingênua e acrítica.
A
História não confirmou essas crenças. Explodiu o mundo em conflitos,
explicitaram-se as contradições do homem, aumentou a disputa entre os povos, os
interesses revelaram a irracionalidade, alastraram-se os governos totalitários
de esquerda e direita, ambos ruins, a sociedade de massas alimentou a despersonalização
com suas consequências: o tédio, a falta de sentido na vida, o suicídio, a
violência e o vício das drogas, explodiram os conflitos mundiais seguidos pela
guerra fria e pelas guerras no continente africano. A ciência não ofereceu ao
homem o que prometera. O mundo laico afastou Deus não apenas da organização
política, mas do horizonte vital.
As
filosofias refletiram esse estado de coisas, o vitalismo defendendo que a vida tem
dinâmica própria contra as fantasias da razão inocente, a psicanálise deu cor
científica a esse discurso que reduziu o homem aos seus instintos, o
existencialismo apontou uma saída individual nesse mundo deslocado. E, em meio
a tantas dificuldades e desilusões, se começou a falar da responsabilidade
pessoal pelo próprio destino e o da sociedade. Aos poucos cresceu o
entendimento de que a vida singular que temos que viver precisa de parâmetros
ou referências que a cultura traduz como valores e as religiões apresentam como
fé. Referências que orientam as escolhas.
Aqueles
pensadores vislumbraram dois caminhos para sair da crise. Caminhos que infelizmente
não foram trilhados, motivo pelo qual continuamos mergulhados na crise de
cultura que se estende desde então. O primeiro acenava para o rompimento com um
racionalismo abstrato, pensando o homem em situação com todas as suas
dificuldades e limites daí decorrentes, o que não significava a defesa pura e
simples da irracionalidade. O segundo era recuperar as referências que guiaram
o homem durante o último milênio, notadamente os valores da sociedade ocidental
baseados na dignidade da pessoa humana.
O
primeiro caminho significou uma retomada da razão, não mais segundo a bitola
estreita do iluminismo do século XVIII, mas com a nova roupagem da verdade. É esse
caminho que destaco, num momento em que a disputa política acirrou a
irracionalidade e colocou a disputa acima da razão. Nesse clima muitos
professam a descrença na razão. Porém a experiência histórica e a inteligência
dizem o contrário. A razão continua a ser uma importante referência para o
homem conviver. Não mais a inocente razão do iluminismo limitada pela ciência
renascentista ou a irracionalidade do romantismo e do vitalismo, mas a razão
que cresceu com seus limites, uma razão preocupada consigo mesmo e em se
esclarecer. Uma razão que sabe seu valor e seus limites e por isso não é prepotente.
Uma razão expõe o mérito da ciência e aponta seus limites. Uma razão que se
abre ao transcendente como guia para os passos que dá no mundo material. E,
sobretudo, uma razão que seja uma fronteira inviolável da dignidade humana, do
respeito aos diferentes o segundo caminho antes mencionado. Esses são os
caminhos que a Filosofia precisa trilhar nesse início de milênio, embora a
sociedade de massa não se dê conta dessa necessidade. É preciso retomar o
exercício da razão como uma das referências imprescindíveis de nossa cultura.