O Papa Francisco resumiu os desafios da Igreja de nosso tempo na Exortação Apostólica Evangelii Gaudium. No documento o Pontífice toca num aspecto sensível e atual: a necessidade de uma nova presença da Instituição no mundo. O nosso tempo, com seus desafios, pede uma atuação singular da Igreja. Embora dirigida a todos os cristãos, a exortação do Papa Francisco dirige-se principalmente ao clero, estimulado a adotar uma atitude que o Pontífice denomina missionária. Poderíamos traduzir Igreja Missionária como aquela que vive no espírito acolhedor e amoroso do Fundador. Simples assim, o Papa quer uma Igreja que se entusiasme na singela alegria de anunciar o Senhor. Uma Instituição que saiba separar o que é essencial na sua missão dos acessórios incorporados ao longo de sua história.
O essencial da exortação do Papa
Francisco encontra-se no início do documento: aqueles que se deixam tocar por
Jesus "são libertados do pecado, da tristeza, do vazio interior, do
isolamento. Com Jesus Cristo, renasce sem cessar a alegria" (p. 3). E essa
maravilhosa relação pessoal de sentido em razão do encontro com Cristo, no
entendimento do Papa, a resposta para o sofrimento dos homens de hoje. Esta
Igreja está desafiada anunciar a "doce alegria do amor de Deus" (p.
4).
A alegria do anúncio vem da fidelidade
ao Evangelho. Se o convite para anunciar o Senhor for deixado de lado em nome
de outras doutrinas e procedimentos a Igreja se afasta do essencial. Escreve o
Papa: "Se tal
convite não refulge com vigor e fascínio, o edifício moral da Igreja corre o
risco de se tornar um castelo de cartas, sendo este o nosso pior perigo: é que,
então, não estaremos propriamente a anunciar o Evangelho, mas algumas
acentuações doutrinais ou morais, que derivam de certas opções ideológicas. A
mensagem correrá o risco de perder o seu frescor e já não ter o perfume do
Evangelho" (p. 34/35).
Para
anunciar com alegria o Evangelho a Igreja, principalmente seus ministros,
precisam distinguir o fundamental do acessório. Como diz o Papa
Francisco, esta distinção é necessária "tanto para os dogmas da fé como
para o conjunto dos ensinamentos da Igreja, incluindo a doutrina moral"
(p. 32). Separar o principal do secundário é desafio permanente da Igreja, que
tem que transmitir a eterna boa nova em meio aos ruídos do mundo. Logo o
anúncio precisa ganhar a forma dos tempos, para que o ensinamento conserve o
eterno frescor da formulação original. Explica Francisco: "as enormes e
rápidas mudanças culturais exigem que prestemos constante atenção ao tentar
exprimir as verdades de sempre numa linguagem que permita reconhecer a sua
permanente novidade" (p. 36).
Para efetivar tal desafio é importante
refletir sobre a verdade com liberdade apoiando-se na Filosofia, Teologia e na prática
pastoral livremente tratadas. Essa atitude "ajuda a explicitar melhor o
tesouro riquíssimo da palavra" (p. 36). A deixar que as circunstâncias
histórico-culturais limitem a transmissão da verdade corre-se o risco de
falseá-la, mesmo quando a verdade circunstanciada carrega a melhor das
intenções.
O Papa é realista. Entende que as
pessoas não são, de modo geral, santas e perfeitas, frequentemente vivem um
longo e difícil caminho de aperfeiçoamento pessoal. Para essas pessoas Cristo é
esperança de crescimento e salvação. Porém, é necessário anunciar Cristo
"com misericórdia e paciência, às possíveis etapas do crescimento das
pessoas, que se vão construindo dia após dia" (p. 39). De tal modo que o
confessionário deve ser o lugar da misericórdia, não da tortura. Creio que se
pode dizer o mesmo das homilias. E aqui palavras do Papa em seu esforço de
aproximar-se de Jesus: "um pequeno passo, no meio das grandes limitações
humanas, pode ser mais agradável a Deus do que a vida externamente correta de
quem transcorre seus dias sem enfrentar sérias dificuldades" (p. 39/40).
É essa Igreja renovada pelo amor
misericordioso de Deus que o Papa anuncia em seu documento. Ela não pode
permanecer intra-muros, mas deve sair para o mundo para renová-lo. Indo ao
mundo não deve se ocupar da autopreservação, com a suposta segurança doutrinal,
que estigmatiza as pessoas e as condena. Uma Igreja de saída para o mundo é uma
Igreja sensível às dores. Capaz de ir até onde está o mal sem se deixar contaminar
por ele. Não se pode ocupar com a glória, títulos, bem-estar, segurança
material e teórica, narcisismo e elitismo do clero.
E se essa Igreja errar ao sair para o
mundo, esse erro parece ao Pontífice menos grave do que permanecer preso
"em um emaranhado de obsessões e procedimentos" (p. 43) que emperram
a instituição de viver na alegria e graça do Senhor.
Se este é o tempo e tantas são as faces
do mal que nele surge, o homem deste tempo precisa de pastores alegres, generosos
e acolhedores. Pastores encantados com o Evangelho e que o vivam e o apresentem
com alegria. E é na alegria do Evangelho que a Igreja trará resposta às
dúvidas, incertezas e inseguranças do homem de hoje.
Pois bem se as palavras de Francisco
servirem para tornar a Instituição mais carinhosa, amiga e generosa, mais
atenta ao sofrimento humano, elas soprarão como a voz do Espírito Santo a
renovar e trazer vida nova à Igreja de Jesus. Creio que a compreensão de
Francisco está próxima do que diz o filósofo alemão Immanuel Kant no ensaio O fim de todas as coisas (1985): "o
amor é então, enquanto livre acolhimento da vontade de um outro, submetido a
suas máximas, um indispensável complemento da imperfeição da natureza humana
(para tornar necessário aquilo que a razão prescreve mediante a lei)" (p.
176). E completa: "Nunca se deve desprezar o fato de que somente a
dignidade moral do amor que o cristianismo traz consigo (...), poderia
conservar-lhe também no futuro os corações dos homens" (idem, p. 180).