Quando a sociedade se ressente de escassez de bens
materiais, saúde, educação, segurança o primeiro setor afetado é a cultura. Constatei
que quando se disseminou a pandemia do coronavirus ao mesmo tempo os itens
culturais desapareceram das “prateleiras” culturais.
Ao preparar algum artigo costumava verificar na parte
cultural de alguns jornais nacionais e estrangeiros bem como revistas, como
revisão, conteúdos iguais ou afins. Fui constatando que à medida que o tempo ia
passando e a epidemia aumentava e se alastrava as notícias escasseavam sempre
mais. Jornais como Corriere, Le Monde e El Pais de artigos sempre abundantes na
secção “cultura”, agora praticamente deixaram de existir. Fiz-me então a
pergunta? Estaria relacionada à pandemia a este fenômeno? Teríamos entrado num
período intermediário? Entre o “antes”, com sua cultura própria, e o período
ainda “vazio”?
Evidentemente que o exemplo histórico acendeu a luz do alerta na mente. Como foi a produção intelectual na antiga Atenas na Guerra do
Peloponeso? Roma na guerra com Cartago, a Europa nas Invasões dos Bárbaros, a
Peste Negra na Europa, os Conflitos Mundiais?
Na Atenas clássica o florescer cultural se seguiu após o
término das guerras médicas. Despontaram escritores, historiadores, escultores
e filósofos. A cultura grega foi ao auge servindo de modelo para os demais
povos que a copiavam e imitavam.
Aqui também se percebeu um período de retração, as
guerras, e logo após o rebroto de uma nova cultura.
Não é outra a situação das invasões dos bárbaros na
Europa. Além de destruírem o maior império da antiguidade, o substitui por
outra cultura que dará seus frutos durante mil anos, a cultura cristã. Pelos
poros da cultura antiga penetrou a cristã e paulatinamente substituiu seu
conteúdo, embora muitas vezes tenha mantado a forma antiga, como a formação de
novos reinos, novas línguas, nova arquitetura e oxigenados pelo sangue cristão.
“Queima o que adoraste e adora o que queimaste”, São
Remígio, ao rei dos Francos, Clóvis.
Com igual intensidade devastadora foi a Peste na Europa.
Curiosamente também inspirou obras culturais, evidentemente depois superada a
crise. Da inspiração da Peste Negra surgiram obras primas da lava de
Bocaccio, Petrarca, Chaucer e Pushkin e da pintura figuram Konrad Witz, Bernt
Nötke e Hans Holbein.
Não será diferente do que irá acontecer após a pandemia
do Coronavirus. Um novo mundo cultural despontará com as premissas culturais
deflagradas pela crise.
O que a pandemia impôs sociologicamente? A ruptura da
convivência social do indivíduo. Foi retirado da profissão e confinado na
família, afastado do convívio cultural e isolado no seu Home Office, desligado
de sua religião publicamente e abandonado a seu destino sem relação com ser
superior. O distanciamento social- como o próprio nome designa - isolou-o como
ser individual sem referências com os demais seres. Aconteceu a inversão da
inserção social. Em vez do pacto social, aplicou-se o pacto individual. Em vez
de o homem individual, natural, do pensamento de Rousseau, passar para o
social, com a pandemia acontece a involução. Voltou o homem à natureza
solitária, confinado no domicílio, sem ligações com seus semelhantes, sem
desejo de prejudicar ninguém, sem reconhecer sua própria individualidade,
autossuficiente e único, sem passado nem continuidade. O homem sempre criança.
Neste estado, não há desigualdade. Foi o saldo inverso: da sociedade para a
individualidade.
Agora vivemos o jejum cultural aguardando o novo rebroto
civilizatório. Como será? Algumas constatações:
- A pandemia rompeu com as consagradas dinâmicas sociais
e culturais em voga.
- Sufocamento da cidadania política do indivíduo
transformando o trinômio do cidadão trabalho-renda-consumo em um mero
homem-consumidor.
- A dinâmica do bem pessoal como favorecimento do bem
comum, foi substituída pela dinâmica tão somente individualista.
- Como consequência o liame ético entre
indivíduo-pessoa-cidadão-bem comum foi abandonado em prol de um liame solipsismo
individualista.
- Os estratos sociais passaram a ser impulsionados
somente por interesses econômicos e valores hedônicos, abandonando o bem comum.
- O homem foi despido do estrato social, nacionalidade,
raça. Sele só existe como um número na rede virtual.
- A obrigatoriedade de “ficar em casa”, amputaram as
conexões interpessoais, intergrupais, recreativas, esportivas, culturais. A
própria presença em casa deixou de ser natural e se transformou em um habitat
estranho a si mesmo, artificial.