Ao olharmos para a tradição filosófica acabamos
envolvidos com o problema de encontrar nesse passado da Filosofia algo que
ajude a entender o nosso tempo e seus problemas. Isso parece mais ou menos
evidente, mas merece atenção. Só se as filosofias de outros tempos puderem
inspirar nossas questões atuais isso dá sentido a esse olhar para o retrovisor
da História. Muitos filósofos já disseram que a Filosofia não é uma coleção de
pensamentos mortos, mas uma especulação que embora tenha proximidade com os problemas
e a visão de certo tempo, possui um elemento original e imprescindível que
reaparece a cada tempo e inspira as gerações. Cada filosofia realiza esse
encontro com a originalidade da verdade que se encontra subjacente a cada
tentativa dos filósofos. E é isso que temos que ir buscar em cada uma delas.
Quando olhamos o
final da Idade Média e início da modernidade, encontramos uma visão de síntese
com elementos da ciência moderna emergente, do pensamento filosófico de então e
da fé religiosa. O humanismo renascentista que nasceu do diálogo com os clássicos
(Antiga Grécia e Roma) permitiu uma síntese entre esses vários elementos
culturais. Isso significa que, na perspectiva daquela geração dos séculos XIV e
XV, a ciência não nasceu e não precisava ser feita contra a racionalidade
filosófica e nem contra a fé religiosa. Ali encontramos um humanismo que
conseguiu agregar essas várias dimensões do espírito: razão experimental,
especulativa e fé. O que foi mesmo aquele humanismo? Há nele lições importantes
para o homem contemporâneo? Vamos responder a essas perguntas recordando as
reflexões do filósofo neoplatônico Giovanni Pico della Mirandola (1463-1494).
Entre os diversos humanistas do período como Francesco
Petrarca (1304-1374), Leonardo Bruni (1374-1444), Mario Nizolio (1498-1576),
Miguel de Montaigne (1533-1592), queremos destacar a contribuição de Pico della
Mirandola porque ele combinou a reflexão filosófica com as conclusões da
teologia da época. Em seu texto mais conhecido o Discurso sobre a dignidade do
Homem (1486) ele procurou resumir o que era essencialmente o homem. Mirandola
escreveu qual era o destino do homem enquanto construtor da história como se
segue (MIRANDOLA, São Paulo: GDR, 1988, p. 6): “tu, porém, não estás coartado
por amarra nenhuma. Antes, pela decisão do arbítrio, em cujas mãos te depositei,
hás de determinar a tua complexão pessoal.”
Nessa citação, o filósofo tratava da liberdade humana de
uma forma que fora inicialmente pensada como atributo de Deus. Mirandola
ajustou a ideia de liberdade para se ajustar a forma como o homem pode usá-la.
A vida do homem encontra-se em suas mãos, dizia. A liberdade por ele apregoada
realçava a possibilidade de escolher um caminho existencial, consistindo nisso
a singularidade e dignidade humanas. O que diferenciava o homem dos outros
entes não era a pura racionalidade, como preconizara Aristóteles, pois isso
deixaria os seres espirituais em melhor condição, mas a liberdade para criar
uma vida singularíssima e dar-lhe a direção desejada rumo ao futuro ao futuro.
No livro O Homem e a Filosofia há um comentário dessa
obra e da contribuição de Mirandola que passo a citar (Porto Alegre: MKS, 2018,
p. 168/9): “O homem era, nesta interpretação daquele humanista renascentista,
aquele ser que usa a razão para criar a si mesmo e melhorar sua natureza
animal. A ideia de liberdade forjada pelo filósofo italiano deixou essa lição
instigante, o homem pode construir sua existência. E, nesse sentido, ele é
criador como Deus ou co-criador junto com Deus, pois é o responsável pelo seu
destino. Ele divide com Deus esse importante atributo: a liberdade. Naquele
momento da história dizer isto significou que ele podia mudar para melhor a
natureza de que fora criado. É verdade que o pensador ainda tinha Deus como
referência, mas já fazia a dignidade da criatura depender mais do que ela
fizesse. Não fechava os olhos para o fato de que os homens podem dominar,
matar, escravizar, mas acenava para uma possibilidade de autocontrole dessa sua
natureza violenta. Ele indicava, ainda, a possibilidade de cada homem poder se
valer de uma interdição de natureza moral e se guiar por valores que a razão e
a cultura lhe apontavam. O pensador tanto se refere ao sujeito singular como ao
homem, em geral, membro de uma sociedade. Como membro da espécie cada sujeito é
igual a todos os outros, mas como indivíduo é único, e pode construir seu
futuro. Neste sentido, a espécie é portadora de esperança, seus membros podem
fazer boas escolhas. Quando, diversamente, escolhe mal a humanidade se torna
indigna do seu Criador.
A obra de Mirandola mostrou que o homem é aquele ente que
constrói o seu mundo. Ao pensar o homem como senhor de seu destino, Mirandola
reconhece-lhe uma dignidade que não está em outros entes. Retirada as
referências metafísicas da época e afastada das crenças renascentistas, as análises
de Mirandola emergem plenas de significado e atualidade em nossos dias.”
E onde foi resgatada as lições desse humanismo? Ela
reaparece na tese existencialista de que o homem é quem faz seu destino e é
fruto de suas escolhas. A existência humana única e singular, realiza um
projeto ou sentido, foi o tema de Ortega y Gasset e Viktor Frankl. Em outras
palavras, não importa de onde esteja partindo, não importa o quanto se desviou
do mapa interior que tem inconsciente, cabe ao homem viver por um sentido único.
O esforço para construir a singularidade acaba fazendo efeito. A singularidade
existencial, reconhecida como jornada única e responsável e que aparece nessa
meditação de Mirandola como um valor é um legado importante do filósofo
italiano.