quinta-feira, 17 de janeiro de 2013

DA SOLIDÃO À AMIZADE. Selvino Antonio Malfatti


Certamente hoje o milagre da ubiquidade, isto é, a capacidade de estar em diversos lugares ao mesmo tempo, como Santa Clara (padroeira da Televisão) e Santo Antônio, atualmente estão sendo superados e de muito. No entanto, nunca também o ser humano está tão só. Apesar de poder falar com quem quiser em qualquer parte, ouvir os mais longínquos e ver o mundo em tempo real, ele está só diante de uma máquina fria. O mundo atual é de solidão. Por isso, é bem vinda a publicação do filósofo e psicanalista francês Jean-Bertrand Pontalis do livro Le Songe de Monomotapa (O Sonho de Monomotapa) que aborda o tema da amizade.
Sabemos que há um abismo entre o mundo virtual e o mundo real. Quando nos comunicamos com nossos "facefriends" estamos diante do nada, do virtual. Quando estamos "face to face" estamos diante do mundo real. Por isso, gostaríamos de enfatizar este último aspecto, o real.
Este fenômeno ocorre na esfera da consciência numa relação entre seres humanos. Os sentimentos afetivos pessoais, no ser humano, se estratificam e se entrelaçam em várias relações e hierarquias. Apesar de estas não poderem ser completamente separadas umas das outras, conseguem ser entendidas como distintas. Referimono-nos às relações afetivas de atração física, amor, paixão e amizade. Nem sempre acontecem isoladamente, mas há sempre a predominância de uma delas. A atração física do tipo sexual não se confunde com paixão, esta não é o mesmo que amor e este, por sua vez, não se identifica com a amizade. Cada um deles tem um vetor de apoio no conjunto da fisiologia e psicologia humana.
A atração sexual ocorre entre dois sexos opostos e mesmo entre os mesmos sexos. É o que se designa pelas palavras, heterossexual e homossexual. É uma atração que se esgota com a satisfação podendo retornar quando novamente provocada. A atração sexual está no nível e tem seu ponto de apoio  no instinto da animalidade, sem conotações pejorativas. Evidentemente existem outros tipos de atração física por isso não é única e exclusiva. 
Já o sentimento afetivo da paixão ocorre quando se desfaz de toda crítica e se centra compulsivamente no objetivo. Bem diz o ditado que a paixão é cega.  A paixão pode estender-se a várias realidades como religião, política, arte. Aqui enfocamos a paixão afetiva pessoal, pelo outro. Quem estiver sob o domínio da paixão, não se detém para pensar, só quer seu objeto, que no caso é o outro. A paixão apóia-se na vontade. O desejo pelo objeto obscurece a, embota, embaça, a razão. Subjuga-a e a anula como faz o lutador com seu adversário. É como o amante da aranha viúva-negra. Embora reaja e queira sobreviver, a derrota o prostra. Quem é dominado pela paixão, tenta reunir forças para raciocinar. Diz para si: vamos ponderar e pesar os prós e os contras. A cegueira ofusca o esforço de pensar. É enlaçado, enredado, enrodilhado. Como sucuri empacota o corpo da vítima. Tenta chamar por socorro, mas o eco responde que não quer o socorro. Não quer o que quer. Sente o veneno doce da paixão fluindo pelas veias do corpo. É pleno gozo do não gozado. É o gozo do não gozo, mas que o sente, pressente, aumenta, avoluma-se, agiganta-se. Está aí a paixão poderosa, bela, escondida, encontrada e novamente perdida. O apaixonado ajoelha-se impotente, suplica, agradece, quer ficar longe, mas não quer perdê-la. Ela deleita, é néctar porque se saboreia apenas aquilo que se imagina. É bela e sórdida, é sórdida porque é bela.
O amor reside na alma, no espiritual do ser humano. O amor age como as almas que se contemplam, extasiam-se, querem comunicar-se. Mas elas são intocáveis e incomunicáveis.  Etéreas. Buscam-se abrasadoramente, queimam-se em chamas, mas permanecem em si. Elas se querem, mas não querem a posse. Buscam uma ponte que as possa fundir-se, torná-las uma. E por isso sofrem por que o amor está muito próximo da paixão. E quando ele finda geralmente a lacuna é preenchida pelo ódio.
Haverá espetáculo mais belo que o encontro de duas almas? Haverá delírio maior que a fusão de duas almas? Haverá felicidade que se comparece ao olhar de duas almas que se amam. Os olhos jamais viram, nem os ouvidos jamais ouviram, nem ninguém jamais sentiu o que deste encontro irrompeu.  Elas sentiram o céu abrir-se, a felicidade jorrar aos borbotões. O próprio Deus a inclinar-se e enlevá-las. Elas ressuscitaram, se transfiguraram, se tornam imortais.
A amizade tem sua morada no ser humano. No seu corpo, nos sentimentos, na razão, na alma. Ela tem o poder de despertar a alegria por que nos afasta da raiva. Até nos momentos mais tristes podemos sentir alegria se estivermos com amigos. A amizade esquece a pobreza, fortalece no sofrimento, perdoa a ingratidão.  Mesmo quando nos despedimos de um ente querido, se estivermos rodeados de amigos, podemos sentir a tristeza envolta na alegria. Amizade e alegria são dois sentimentos que se irmanam, se completam. São almas gêmeas que querem estar sempre juntas. Até a morte se detém diante da amizade.
Quando sentirmos a cadência da amizade, a alegria irrompe aos borbotões no coração. Dispara quando ouvimos a voz do amigo. A amizade pode nos elevar aos céus, imaginar uma humanidade irmanada, um mundo se dando as mãos e entoar a sinfonia de Ode à Alegria de Beethoven ou um Va Pensiero de Verdi. A amizade nos desprende desta terra, nos deixa levitando no espaço, voando com o pensamento como se não tivéssemos corpo. A amizade é o mais belo presente que alguém pode receber. Ela vale por toda sabedoria, todos os dons, todas as riquezas. Ela enche   coração todo. A amizade não necessita de mais nada, ela é completa em si, ela é A ALEGRIA. Ela é tão profunda como uma alma habitando dois corpos.


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