O texto Resposta à pergunta que é o esclarecimento (Aufklärung) (tradução
de Raimundo Vier em Textos Seletos,
Petrópolis, Vozes, 1985, p. 100-117) de Immanuel Kant, propõe nos uma questão
interessante: o papel da razão foi diferentemente concebido entre franceses
(Rousseau e Montesquieu, Condillac e os enciclopedistas) ingleses (Berkeley e
Hume), alemães (Wolff, Lessing, Baumgarten, Kant) portugueses (geração
pombalina), etc. Isso não significa, entretanto, que não houvesse um pano de
fundo entre todos esses pensadores, ele existiu e era o entendimento de que a
razão subjetiva era a guardiã da verdade. Em outras palavras, a verdade exigia o reconhecimento, herdado
da filosofia cartesiana, de que a verdade/validade de um assunto estava assegurada
pela certeza íntima da razão individual e crítica, ainda que o caminho percorrido
por essa razão fosse compreendido de forma diferente pelos iluministas.
Esse percurso era singular porque a
forma de compreender a relação entre as duas coisas cartesianas: a extensa e a
pensante forjou trilhas distintas na tradição filosófica. A historiografia
filosófica as organizou colocando de um lado os racionalistas, que consideravam
que a definição de verdade se encontrava de antemão num princípio absoluto,
forjado no interior da própria razão. E de outro os empiristas como Hume, que
negavam a possibilidade de acesso a esse princípio absoluto pela via racional e
diziam que aquilo que estava no pensamento era uma crença, ou melhor, uma
certeza psicológica e tinha origem na experiência sensível. Assim, o princípio
absoluto do conhecimento acabou se deteriorando nesse debate filosófico que vai
de Descartes à Hume, mas permitiu reconhecer e proclamar que a verdade era
fruto da razão individual. O magistral trabalho investigativo de Kant encontrou
uma solução para: a. salvar a razão, b. justificar a ciência, c. recusar a
antiga metafísica e d. justificar a atividade reflexiva e crítica da razão.
A reflexão kantiana se pautou sobre dois
eixos. O primeiro foi a recusa da metafísica tal como se consolidara na
tradição grego-medieval e na afirmação de um pensamento crítico que estabelece
novas formas de pensar. O segundo que, com base nessa crítica, pretende realizar
uma nova forma de investigação filosófica, não mais voltada para o que as
coisas são em si mesmas, mas para estabelecer os limites da razão. A síntese
construída por Kant foi exposta na magistral Crítica da razão pura onde o filósofo concebeu um tipo de
pensamento que capta o real fenomênico e o organiza, de forma objetiva e
válida, através de categorias da razão. No entanto, entrar nos meandros dessa
discussão nos levaria para longe do eixo proposto no ensaio O que é o esclarecimento.
O tema do uso público da razão aparece
em diferentes obras de Kant, inclusive na sua famosa Crítica da Razão Pura. No ensaio que examinaremos Immanuel Kant apresentou
pontos fundamentais a investigação e a prática das boas formas de pensar. Kant
esclareceu o que é a boa forma de pensar e contribuiu para o entendimento do
que seja um pensamento crítico. Para o filósofo alemão o pensamento crítico é
aquele que:
1.
Nasce da própria meditação, ou do exame pessoal detido e cuidadoso de um
assunto, isto é, não se pode bem pensar sem proceder a esse criterioso exame
pessoal. “A menoridade é a incapacidade de fazer uso de seu entendimento.” (p.
100)
2.
É necessário vencer a preguiça e a indolência que impedem de se atingir a forma
crítica de pensar, porque elas “são as causas pelas quais grande parte dos
homens (...) continuam, de bom grado menores durante toda a vida.” (p. 100)
3.
Para pensar criticamente é necessário vencer o controle dos que querem tutelar
o uso pessoal e público da razão, pois é esse controle “que torna a maioridade
difícil e além do mais perigosa.” (p. 102).
4.
O pensar criticamente exige um ambiente de liberdade, onde se possa expor a
todo o público e ouvir as críticas de forma honesta e não xingamentos ou
perseguição, (condição necessária para o exercício do pensamento crítico)
porque essa circunstância é condição para “o uso público da razão, que deve
sempre ser livre.” (p. 104)
5.
O uso privado da razão é diferente do uso público, não se refere a forma de
pensar do indivíduo na sua intimidade e não produz pensamento crítico. Privado,
nesse contexto, é uma forma de pensar que, estando a serviço de uma instituição
ou cargo, defende os interesses deles, gerando aquilo que chamamos no ambiente
de pesquisa de conflito de interesse: “o uso privado é aquele que o sábio pode
fazer de sua razão em certo cargo público ou função a ele confiado.” (p.106)
6.
Mesmo quem pratica o uso privado da razão, pode fazer o uso público dela quando
não estiver falando pelo cargo, pois nessa outra situação ele “tem completa
liberdade, e até mesmo o dever, de dar conhecimento ao público de todas as suas
ideias.” (p. 106)
7.
As instituições, ainda que tenham seus interesses contrariados, não podem
impedir seus membros de exercer o uso público da razão, pois essa atitude de
censura atingiria toda a humanidade e não teria validade, pois isso “seria um
crime contra a natureza humana, cuja determinação original consiste
precisamente neste avanço.” (p. 108) Em outras palavras, agir contra o
esclarecimento “quer para si mesmo, quer ainda mais para sua descendência,
significa ferir e calcar os pés nos sagrados direitos da humanidade.” (p. 110)
8.
Nenhum governante ou dirigente de instituição pode renunciar ao esclarecimento,
pois ninguém está acima dessa lei da natureza: “Caesar non est supra gramáticos” (p. 112). O governante (como
Frederico II da Prússia) que autoriza o uso crítico da razão deve ser “louvado
pelo mundo agradecido e pela posteridade como aquele que pela primeira vez
libertou o gênero humano.” (p. 112)
9.
O uso público da razão não desorganiza a sociedade porque, até que seu conteúdo
seja reconhecido institucionalmente, permanecem valendo as regras em vigor ou
as teorias admitidas. Assim, os cidadãos que usam publicamente a razão não são
violentos, nem ameaçadores. “Um grau maior de liberdade civil parece vantajoso
para a liberdade de espírito do povo e, no entanto, estabelece para ela (razão)
limites intransponíveis.” (p. 114)
10.
Permitir o uso crítico e público da razão significa reconhecer algo próprio do
sujeito humano e tratá-lo “de acordo com sua dignidade.”
Nesse pequeno ensaio, Kant reafirmou o
que também escreveu na Crítica da Razão
Pura, quando observou que o século que vivia criticava a religião e os dirigentes
políticos e que somente o correto uso da razão podia justificar críticas
razoáveis. Na distinção entre os usos público e privado, explicitou-se o tipo
de pensamento que pode ser usado nas teorias científicas porque estabelece as
condições para formular um juízo verdadeiro. Derivando o que foi dito uma conclusão
possível podemos dizer que a publicidade de uma ideia é condição para integrar
a comunidade construtora da verdade, seja ela científica, política ou qualquer
outra.