sexta-feira, 12 de setembro de 2014

Subjetividade e corporalidade na Filosofia e na Psicologia. José Maurício de Carvalho.





Esse é o título do livro que  acaba de ser publicado pela Filoczar de São Paulo e é edição bilíngue, foi editado em português e espanhol e tem 279 p. Destina-se  principalmente a filósofos, filósofos-clínicos, educadores, médicos e psicólogos que estudam a consciência humana e os métodos de considerá-la. As referências teóricas são os legados de Merleau- Ponty e Karl Jaspers autores com quem se dialoga. O primeiro é um filósofo francês que, ao examinar a consciência corporal, deseja aprofundar conceitos como espacialidade e temporalidade. Merleau-Ponty realizou um amplo debate com os psicólogos apresentando as posições da fenomenologia. O segundo é um psiquiatra alemão que encontra na fenomenologia o caminho para justificar os estudos científicos da consciência humana e tratando-a como um fenômeno, reflete sobre os desafios dessa consciência para alcançar a verdade e da realidade. Os estudos de fenomenologia que tratam do mundo interior do homem ganharam recentemente com a filosofia clínica uma nova forma de expressão. Também ela é mencionada, mostrando-se que a Filosofia Clínica se insere na tradição da psicologia existencial que engloba várias abordagens (Gestalt - Kurt Lewin, Köfka, Köhler, Wertheimer), Teoria do Self - Carl Rogers, Logoterapia - Victor Frankl e muitos psiquiatras além de Karl Jaspers. No Brasil recorde-se Nilton Campos, que foi diretor do Instituto de Psicologia da antiga Universidade do Brasil (atual UFRJ), e outros médicos e psicólogos de renome, destacando Antonio Gomes Pena, Eustáquio Portela, Élson Arruda, Nelson Pires e Isaias Paim, todos utilizando a fenomenologia para fundamentar os estudos de psicologia humana.
O livro em questão trata da subjetividade, isto é, da consciência que temos de nós mesmos em seus dois lados: a consciência subjetiva e a corporal. E ao olhar esses temas da fenomenologia existencial é possível identificar os elementos filosóficos que justificam diversas técnicas psicoterápicas nascidas desse pressuposto metodológico, algumas mencionadas no parágrafo anterior. No último século essa base fenomenológica deu origem à chamada psicologia existencial, em cujo rastro surgiu a Filosofia Clínica, que foi desenvolvida no Brasil e que começa, nesse século XXI, a ganhar mundo.
Antes de tratar das contribuições que a escola fenomenológica trouxe para o entendimento da consciência devemos lembrar que o mundo moderno começa a se delinear com a descoberta da consciência para o entendimento do mundo. Passaram-se séculos examinando o funcionamento da consciência se ela era povoada de ideias e/ou esquemas inatos ou se seu conteúdo era simplesmente os fatos percebidos armazenados em feixes fenomênicos. O responsável pelo início dessa investigação foi o filósofo francês René Descartes, mas a consciência subjetiva que ele concebeu era abstrata, não tinha história nem singularidade, era uma forma de referência universal que todos os homens possuíam e fazia deles entes iguais, não importa se fosse um cidadão parisiense ou um índio vivendo no interior do Brasil. Tinham em comum a consciência universal cujos erros se explicavam pela insubordinação da vontade que era muito maior que a capacidade de corretamente raciocinar. E o entusiasmo de René Descartes pela consciência abstrata o afastou da experiência concreta de viver, como observou Ortega y Gasset em El tema de nuestro tiempo, mencionando que o pai da filosofia moderna inverteu a perspectiva natural da vida e deixou em segundo plano "o mundo imediato e evidente que contemplam nossos olhos, apalpam nossas mãos, percebem nossos ouvidos e se compõem de qualidades: cores, resistências, sons etc. Esse homem que o homem vive e viverá sempre" (Obras Completas, Madrid, Alianza, v. III, p. 160).
Não teríamos como, num espaço tão limitado, refazer o debate intelectual ocorrido entre racionalistas e empiristas durante toda a modernidade, ambos os grupos herdeiros do pensamento cartesiano, uns privilegiando a experiência e outros as ideias não aprendidas. Apenas parece interessante lembrar que o resultado desse debate culmina no entendimento de que se podia chegar a um esquema objetivo da consciência que Kant chamou de ente racional e Fichte e Hegel perceberam estar em movimento. Essa consciência passou por críticas e revisões desde então até se notar as suas dimensões temporais na individualidade que surge de uma espécie de consciência que é simultaneamente intencional, histórica e executiva.
O que é mesmo a consciência subjetiva e corporal objeto do livro e concebido pela escola fenomenológica? Ela agrega às referências modernas uma maneira contemporânea de entendê-la como: "a referência que o homem faz dos seus estados internos, o que engloba ideias, percepções, emoções e volições. A capacidade de se referir a esses fenômenos ou fatos psicológicos revela consciência do que se passa no nosso interior. Por extensão, o termo se aplica ao reconhecimento que o sujeito desenvolve do próprio corpo e do seu funcionamento. Nesse caso é nomeada de consciência corporal" (p. 12). Portanto, é a consciência humana o objeto do livro e ele é abordado tanto pela reflexão filosófica como pela observação científica (psicológica).
O filósofo alemão Karl Jaspers, valendo-se do método fenomenológico, tratará os momentos de concentração íntima como movimentos necessários da procura por um sentido próprio ou significado para existência. É a consciência que permite não só entender o que somos, não só conhecermos nossa história pessoal, mas a sermos fiéis a isso que somos verdadeiramente, cada um de nós em nosso núcleo mais íntimo. Como filósofo, Karl Jaspers considerava o mal uso da reflexão ou da consciência como causa do sofrimento do homem contemporâneo e assim se referiu ao fato na Iniciação Filosófica (1987):
A ânsia de uma orientação filosófica da vida nasce da obscuridade em que cada um se encontra, do desamparo que sente quando, em carência de amor, fica o vazio, do esquecimento de si quando, devorado pelo afadigamento, súbito acorda assustado e pergunta: que sou eu?que estou descurando, que deverei fazer? (Lisboa, Guimarães, p. 110).
E se deixando de pensar sobre si mesmo o homem cai na irreflexão e se perde nas rotinas, no trabalho diário, nas preocupações da rotina, nos movimentos instintivos, nas tarefas do dia a dia e é isso o que acaba nos levando a uma vida sem o sentido que lhe podemos dar, cada um de nós, únicos nessa tarefa de encontrar um significado particularíssimo para o que fazer de nossos dias. E se deixar de examinar-se é risco permanente na realidade humana, uma vida muito ocupada, envolvida em tanta tecnologia, consumida em trabalhos esgotantes e no ócio vazio contribui ainda mais para esse afastamento de nós mesmos que é responsável em nossos dias pela falta de reflexão reinante e pelo hedonismo ansioso que penetrou na cultura contemporânea.
Quanto ao funcionamento da consciência, Karl Jaspers ensina no terceiro capítulo da Iniciação Filosófica que ela alterna estados de vigília e de sono. E diz que quando estamos acordados a consciência se apresenta na insuperável divisão entre sujeito e objeto. Todas as nossas referências do mundo apenas se expressam nessa cisão (sujeito-objeto), o mundo que experimentamos e em que vivemos surge para nós através dela. E ela inclui não só a referência à coisas que estão diante de mim: a cadeira onde estudo ou pássaro que corta o céu azul, mas também aos números e outras formas de pensamento (que são denominados objetos ideais da consciência). Mesmo pensamentos raros, como um ET com antenas e orelhões que podemos imaginar, aparecem para a consciência como um tipo fantástico de objeto pensado. Todas essas coisas que vemos e pensamos estão na consciência representadas e só se manifestam na relação entre sujeito e objeto. O funcionamento da consciência nos coloca diante de uma dupla realidade que a escola fenomenológica estudou: a. seu caráter intencional (isto é, não se poder pensar a consciência sem os objetos nela representados, isto é, na divisão acima indicada) e b. fazendo a distinção possível de realizar entre o subjetivo e objetivo (isto é, a separação entre quem pensa e a realidade que é pensada por nós que nos surge em perspectivas diversas ou modos diferentes de compreender o mundo).
A distinção entre subjetivo e objetivo é uma maneira meramente ilustrativa de separar, os conteúdos da consciência, "conforme se refira à capacidade humana de estar ciente dos fenômenos internos ou a tratar os conteúdos das percepções, representações e conceitos. Como fenômeno objetivo considera-se o que a consciência recebe a todo instante informações de fora. Esses elementos fornecem impressões do que está à volta do sujeito e que aparece para ele. Em síntese, subjetiva é a capacidade de reconhecer os fenômenos internos da consciência, objetivos são os elementos representativos do que está à volta dela" (p. 18).
E quanto à consciência corporal ou corporalidade? Filósofos e psicólogos que usam o método fenomenológico descrevem a presença do homem no mundo como existência situada no tempo e espaço. É comum ouvir dizer que vivemos aqui e agora e essa é outra forma de dizer que vivemos numa realidade espaço temporal. "E essa forma de olhar a existência humana contraposta à transcendência para se referir à tensão entre permanecer ligado às coisas e ultrapassar tal relação inclui, de modo singular, a corporalidade. A forma como os fenomenólogos olham a presença física do homem é diferente da simples referência biológica (...), cujo funcionamento é parecido aos animais mais evoluídos" (p. 22).
O livro resume e aprofunda o significado de consciência corporal para os dois fenomenólogos Merleau-Ponty e Karl Jaspers. "O primeiro pensa a consciência a partir da corporalidade, o outro faz algo parecido, mas reconhece que a consciência subjetiva tem aspecto singular. De todo modo, em ambos, a corporalidade significa consciência corporal que é mais que o funcionamento do corpo ou sua divisão em partes anatômicas: cabeça, tronco e membros. O meu corpo é diverso de todos os demais, tenho com ele uma relação particular. Merleau-Ponty explica bem que o corpo é forma de experimentá-lo, isto é, minha presença no mundo se faz pelo corpo e com ele me confundo" (p. 22). Para algumas pessoas essa relação com o corpo é mais importante, para outras menos. Isso é parte da enorme variedade possível de existências singulares.
Tomar a consciência humana como forma de expressar a existência humana ou como vida que se faz em direção ao futuro é outra maneira de descrever que a vida do homem precisa ser experimentada num mundo de mudanças. Mudanças que ocorrem na sociedade em que se vive, mas mudanças que ocorrem também em nossa vida pessoal que vai se tornando diferente à medida que fazemos escolhas e vamos envelhecendo em meio às escolhas feitas. A vida, como lembrava o filósofo francês Roger Garaudy em Palavra de Homem não é "um  cenário já escrito fora de nós e sem nós, onde teríamos apenas que representar aparentando crer em nossa liberdade" (São Paulo, Difel, p. 52).
Estudar a consciência nos coloca diante de uma tensão sempre presente em nossa vida. Estamos numa sociedade onde cada um precisa encontrar uma razão para viver. E o que pode ser num certo momento da existência tomado como sentido, pode desaparecer ou modificar-se no momento seguinte pedindo de nós uma nova razão para continuar viver. "Às verdades pessoais ou subjetivas se somam as verdades culturais ou objetivas, os problemas e dramas pessoais que podem ganhar e encontrar na cultura referências para vencer as crises. Embora assim possa ser, a existência não perde o caráter dramático e conserva algo de singular e arriscado, pois é impossível construir uma cultura tão perfeita que seja definitiva e ponha fim a todas as nossas inquietudes. Não há como chegar a uma cultura definitiva, que realize todas as nossas potências, que nos substitua na criação de nossa existência, uma cultura que supere todos nossos medos, eliminando todas as nossas dúvidas. E ao enfrentar os problemas que a vida traz, construindo novas representações a partir das referências que possui, o homem muda o que ele é, elabora os elementos de sua subjetividade" (p. 24).

O livro entra por esse caminho, apresenta exemplos e mostra a consciência humana objeto de si mesma e como é tratada nas filosofias e psicologias de Merleau-Ponty, Karl Jaspers e na Filosofia Clínica. Explora, para terminar, algumas descobertas que a Psicologia e a Filosofia Clínica fizeram da nossa consciência e de nosso modo de viver. 

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