Em face da crise do euro, com os gregos querendo desembarcar
da União Europeia, lembro-me de artigo muito pertinente escrito por meu amigo
João Carlos Espada (A Grécia e as ‘infelizes dicotomias’ continentais, jornal
Público, Lisboa, 6/7) em que ele identificava um problema: não foi imaginado
pelos criadores da zona do euro um mecanismo de desembarque para as nações que,
como os gregos hoje, não se sentissem à vontade nela. Ora, faltou esse
mecanismo de desembarque. Se houvesse, não estaria passando a Europa unida por
tantos sobressaltos.
É claro que eu, como meu amigo Espada, não tenho simpatias
por Alexis Tsipras nem por seu grupo de esquerda radical, o Syriza. Baste
lembrar que a primeira providência do jovem líder grego depois de eleito foi
receber o embaixador do arquirrival da União Europeia, o czar Putin. É botar
gasolina na fogueira.
Passo a refletir sobre a crise do euro à luz dos conceitos
filosóficos, sendo fiel à minha profissão de professor de Filosofia. Falta à
União Europeia, hoje, mais flexibilidade na gestão dos conflitos. Resumiria
esse imperativo no título do meu artigo: menos Platão, mais Aristóteles.
Lembremos que, diante da crise que os gregos enfrentavam no
século 4.º a. C., com Atenas perdendo terreno para a sua rival Esparta, a
solução platônica consistiu em incrementar o modelo educacional ateniense,
tirando o ensino das mãos dos sofistas, estrangeiros em geral, e passando-o às
dos atenienses, sob o rígido controle do governo da polis. O modelo ateniense
deveria ser incutido na mente das novas gerações pela pedagogia platônica, a
Paideia, toda ela a serviço da construção da máquina do Estado, sob a
previdente condução do rei filósofo. Ora, esse modelo funcionava em Atenas e em
nenhum outro lugar. Quando Platão tentou sugeri-lo a Dionísio, tirano de
Siracusa, foi posto em prisão e seus discípulos tiveram de fazer uma vaquinha
para libertar o mestre.
Aristóteles não tinha origem ateniense, era um bárbaro
macedônio civilizado, tendo estudado na Academia platônica. Mas tinha uma visão
ampla do mundo e uma concepção política aberta à diversidade. Viajou pelo Médio
Oriente, pelo Mediterrâneo Oriental e pelo Egito e escreveu sua obra sobre as
constituições do mundo antigo, tendo identificado 158 formas diversas de
governo. Formou nessa mentalidade aberta o seu pupilo, o jovem Alexandre, que
seria o famoso conquistador do mundo antigo, construtor do primeiro império
globalizado da época.
Dessa magnífica obra aristotélica chegou até nós a
Constituição de Atenas, preservada do criminoso incêndio da Biblioteca de
Alexandria por zelosos amanuenses bizantinos, egípcios e árabes, que a
trouxeram até nós. Ora, o postulado fundamental da política em Aristóteles é
que há duas condições para conquistar a estabilidade no seio do Estado: a
primeira é que este se organize a partir das tradições em que a comunidade
acredita e a segunda, que se estabeleça um regime que traduza a média da
opinião, postulado que passou à posteridade, na Idade Moderna, pela mão,
sobretudo, de François Guizot, o primeiro-ministro do reinado de Luís Felipe na
França.
A comunidade do euro foi organizada mais pensando na
unanimidade platônica (herdada por Hegel, que certamente influenciou muito a
intelligentsia alemã e a chanceler atual, Angela Merkel). Faltou a média da
opinião de Aristóteles.
Não foram criados mecanismos que possibilitassem aos países
integrantes um eventual desembarque da zona do euro. Era isso o que justamente
temia Margaret Thatcher quando foi posta em discussão a adoção pelos parceiros
europeus da moeda única.
Lembremos parte do seu discurso pronunciado no Conselho da
Europa, reunido em Roma em outubro de 1990, no qual a então primeira-ministra
britânica desaconselhava a adoção da moeda única por seu país. A sra. Thatcher
afirmava que os trabalhistas não teriam problema em entregar a soberania
nacional. O Partido Trabalhista, dizia ela ironicamente, “talvez concordasse
com a moeda única e com a abolição da libra esterlina. Talvez, sendo totalmente
incompetente na administração da política monetária, ficasse feliz em delegar
toda a responsabilidade a um banco central (europeu), como fez em relação ao
FMI. O fato é que o Partido Trabalhista não tem competência para lidar nem com
dinheiro nem com a economia” (Papéis de Margaret Thatcher, documento número
869, 30 outubro de 1990, http://www.margaretthatcher.org/document/108234).
Ora, a União Europeia, na rigidez dos seus princípios
organizacionais, lembra mais Platão e o Bloco Continental imaginado pelo
imperador Napoleão Bonaparte do que uma federação de Estados livremente unidos
por um pacto flexível, costurado à sombra do bom senso aristotélico. Um banco
central operante pressupõe mecanismos de união política que hoje estão ausentes
da comunidade. Eis o cerne do problema. A ordem imposta de fora é problemática.
“As baionetas”, aconselhava a velha raposa Talleyrand a Napoleão, “servem para
muitas coisas, menos para sentar em cima delas.”
Voltando ao bom senso britânico, considero pertinentes as
palavras com que João Carlos Espada conclui seu artigo: “As instituições
sociais não são fabricadas especificamente por ninguém. Emergem de um longo e
complexo processo de interação descentralizada que não é suscetível de comando
central – mesmo que esse comando central seja exercido pela chamada Razão, ou
mesmo pela Razão libertadora de preconceitos e tradições não racionais (...).
Não pretendo com isto concluir que a criação do euro tenha sido necessariamente
um erro. Mas foi seguramente um erro gigantesco ter criado o euro sem uma
cláusula de saída ordeira. E é um erro gigantesco identificar a moeda única com
a União Europeia. A moeda única deve ser apenas uma opção possível para aqueles
países que queiram subscrevê-la”.