Esta semana a Câmara Municipal viveu um
clima de disputa envolvendo o Plano
Municipal de Educação. Infelizmente não se entrou, em profundidade, nos elementos
constitutivos plano, o problema ficou restrito à chamada identidade de gênero.
Na tentativa de evitar a evasão por discriminação de pessoas de orientação
sexual diferente da tradicional, aquela no qual as pessoas se sentem homens e
mulheres, identificados com o sexo biológico e atraídos pelo sexo oposto, o
Plano Municipal de Educação trouxe a expressão identidade de gênero. A
expressão sugere que todas as vivências sexuais tenham o mesmo peso, o que numa
lógica simples impede a discriminação, já que independente da orientação sexual
todas teriam o mesmo valor. Nenhuma novidade no que tange à confusão, uma vez
que a questão vem gerando o mesmo tipo de embate em diferentes Prefeituras pelo
país afora. A divergência revela um
conflito no entendimento da condição humana, pois a expressão identidade de
gênero afronta elementos da tradição cristã estruturadoras de nossa sociedade.
A questão do gênero é complexa, ela envolve
a sexualidade no sentido amplo, isto é, o sexo biológico, psicológico, a
orientação e o ato sexual. Uma pessoa que nasce mulher, por exemplo, é biologicamente do sexo feminino, mas pode ser
psiquicamente identificada com o sexo masculino (sente-se, portanto, como homem
apesar de ter corpo feminino), pode não ter vida sexual com nenhum parceiro,
nem masculino, nem feminino. Neste caso porta-se como pessoa assexuada. Pode,
diferentemente, orientar-se sexualmente para ter relações com outras mulheres,
com homens, ou com os dois sexos. Viverá a sexualidade de modo diferente em
qualquer dos casos. O mesmo acontece com homens que tenham identidade feminina
(sentem-se como mulheres) e podem se relacionar com mulheres, com homens ou com
pessoas dos dois sexos. Essas são as possibilidades estatísticas que poderiam
ser representadas numa árvore de eventos, contemplando muitas possibilidades. Creio
que se poderia resumir o problema ao entendimento de que nem sempre a
identificação sexual (sentir-se psicologicamente como) coincide com o sexo
biológico e nem sempre essa identidade reflete-se num comportamento padrão
esperado, ensejando todas as variações acima indicadas.
Desde o início do século passado, a Psicologia,
especialmente devido à contribuição da psicanálise, explicou como ocorre a
identificação sexual mostrando que, no menino, ela procede de identificação
complexa com o pai (ou outro representante do gênero masculino, um avô, tio,
conhecido, etc.), mas que por diferentes razões, em circunstâncias especiais, a
identidade pode também se dar com a mãe (ou outro representante do gênero
feminino uma avó, tia, conhecida, etc.). Com a menina o processo tem a mesma
complexidade, embora com elementos diferentes que seriam muito difíceis de
serem explicados no pequeno texto.
A Bíblia judaico-cristã que tem no seu
início um lindo poema sobre a criação do homem, refere-se à criação do gênero
masculino e feminino, não contemplando variações, quer em virtude da enorme
maioria das pessoas terem sua identidade e orientação sexual coincidente com o
sexo biológico, quer porque foi escrita num tempo em que era necessário o
nascimento de muitas crianças, pois curta era a vida colocando em risco a
sobrevivência do grupo. Assim parecia ser o que prescrevia a natureza e,
portanto, o desejo do seu Criador. Esse entendimento, fortalecido pela visão
filosófica grego medieval que entendia serem fixos os processos essenciais da
vida, prevaleceu durante séculos e construiu a lógica da exclusão. Acabou-se
dizendo que o poema bíblico referia-se à natureza do homem, não podendo ser ela
diferente em nada, consistindo qualquer desvio em pecado e aberração.
Pois bem, o sentido essencial do poema
bíblico parece ser que Deus ao criar o homem da terra (e a mulher de sua
costela) e lhes soprar nas narinas uma alma imortal colocou em cada uma dessas
suas criaturas uma fagulha indestrutível de sua Presença. Não é o fato de suas
criaturas terem dois sexos exclusivos o fundamental no texto. E além disso, a
noção de pessoa que nasce do evangelho de Cristo, proclama que os homens (e
mulheres) são iguais em dignidade, na capacidade de fazer escolhas livres,
responsáveis, criativas e abertas à transcendência ou ao diálogo com Deus. A
noção de pessoa atribuída inicialmente aos três indivíduos da trindade divina
trouxe, por extensão, de Deus para a criatura humana que Ele fez a Sua imagem a
referência, essa mesma condição. Portanto, embora em algumas passagens, a
Bíblia condene a relação homossexual, não quer dizer que alguém perca sua
condição humana ou de Filho de Deus por isso. O fato merece atenção e precisa
ser melhor pensado num tempo em que se entende que a homossexualidade é fruto
de um processo psicológico complexo e inconsciente (colocado fora do campo das
escolhas pessoais) e que, portanto, não parece razoável discriminar ninguém ou
privá-lo da vida social ou de se educar por isso. Nem parece cristão condenar
as pessoas por conta de sua identidade sexual, deixemos a Deus essa dificílima tarefa.
Por outro lado, o respeito proclamado no
parágrafo anterior não significa que todas as orientações sexuais são igualmente
boas e desejáveis. Colocá-las dessa forma numa proclamada identidade de gênero
não parece a melhor forma de tratar a dignidade da pessoa humana. Porém, ainda
mais importante são os aspectos morais da sexualidade. Em sentido amplo a
sexualidade envolve as dimensões biológicas, psicológicas e comportamental, isto
é, para que seja verdadeiramente humana, a vida sexual precisa ser integralmente
vivida na liberdade possível, responsabilidade, no respeito e amor ao outro. E
mais, nas relações humanas em geral, que incluem outras dimensões além da
sexual, o respeito ao outro (ou outros) é valor que precisa ser cultivado com o
mesmo zelo que se dedicou ao problema do gênero. Num tempo de tanta violência,
irresponsabilidade, egoísmo, isso parece o essencial.