A propósito da celeuma provocada pela catarinense Ingrid
Migliorini que colocou em leilão a própria virgindade suscitaram várias
considerações desde legais até éticas. A pergunta radical que se pode fazer é a
seguinte? Pode alguém vender a própria virgindade? A resposta: pode, mas não deve. Não só a virgindade
como qualquer parte do corpo. Com certeza a pessoa tem o poder físico, mas não
o moral. Por quê?
Existem duas vertentes que embasam este pensamento. Uma
delas, atualmente é defendida pelo pensador português Eduardo Abranches do
Soveral. Pensa ele que através da História e nos meios culturais mais diversos
emergiram um conjunto de valores que são alicerce da civilização e mesmo o
sustentáculo da sobrevivência da humanidade. Estes valores não são propriedade
exclusiva de um povo, mas estão disseminados entre todos eles e como tal
propriedade da humanidade. Estão presentes entre muçulmanos, hindus, judeus,
cristãos.
Diz ele que não somos nem deuses nem animais, nem absolutamente
perfeitos nem absolutamente imperfeitos. Somos humanos, por que somos limitados
pela cultura que nos cerca: a comunidade, as circunstâncias, os objetos
culturais, os vivos e os mortos. Daí a questão: como posso definir minha
autodeterminação em tais circunstâncias? Como posso balizar minha ação?
Continua Soveral. Os elementos constitutivos essenciais do
agir humano emergem dentro da história: homens concretos, situados num contexto
cultural no seio de uma linguagem que também é histórica e cultural. Embora
racionalmente se possa admitir que uma ética universal pudesse ser fruto de um
pensador genial, concretamente isto não ocorre. A moral seria individual,
histórica e até mesmo relativa. A reflexão sobre a moralidade nos leva à ética
que possui princípios universais, válidos não só para o “hic et nunc”, mas
supra temporal e supra histórico.
Cada homem se reconhece que não é puro espírito, trans
lúcido e absoluto. No entanto, constata um impulso incontido de autodeterminação.
Como conciliar este paradoxo: não ser algo e querer ser este algo? Diante disso
os pensadores chegaram à conclusão - e Soveral entre eles - de que a vontade de
autodeterminação deva estar relacionada com um absoluto que possua a plena
autodeterminação. É pelo absoluto ao qual o homem está relacionado que o desejo
de autodeterminação encontra seu fundamento. Com isso se pode explicar o elo
entre o perene e o transitório. Pela razão o homem consegue iluminar e mesmo
entender a atividade de um sujeito absoluto presente na história. Então desde o
momento que o homem reflete os objetos culturais está se debruçando sobre dados
sensíveis e a partir deles busca o transcendente. A ética se refere à estrutura
transcendental da ação humana, embora buscada numa cultura dada, concreta e
histórica, está relacionada a um Ente que encarna o absoluto presente no
transitório.
A outra vertente, também concorda com a historicidade dos
modelos morais, mas procura outro fundamento ético. Esta vertente considera os
valores como um fruto da comunidade e não podem ser desobedecidos porque não
são valores privados, mas públicos. São frutos do consenso da comunidade e já
se desprenderam do indivíduo e se tornaram coletivos. É defensor desta vertente
o pensador brasileiro Antonio Paim. É o que o filósofo Michael Sandel no livro
“O que o Dinheiro não Compra”, afirma a propósito da venda da virgindade por
parte de Migliorini. Ambos concordam que há uma esfera a cima do monetário, do
econômico. O dinheiro é um valor e a dignidade é outro. Esta não tem preço.
Diz Paim que a ética consensual nasceu historicamente na
Inglaterra devido principalmente a proliferação de várias morais individuais,
mormente as religiosas. Para contornar a dificuldade, quando se chocavam,
nasceu na sociedade um conjunto de princípios de comportamentos éticos a cima
das morais individuais, consensualmente aceitos. Nesse sentido a ética não tem
seu ponto de apoio no absoluto, mas na comunidade.
Quer adotemos um, quer abracemos outro,
sempre se depara com uma ética que estabelece comportamentos universais.
Por isso, pela moral individual Migliorini
pode vender a virgindade, mas pela ética do absoluto ou do consensual, não.