Parece esclarecido, para os
pesquisadores do pensamento brasileiro, que a reflexão filosófica, de caráter
já genuinamente nacional, configura-se a partir da nossa independência política,
nos inícios do século XIX. Tivemos, sim, ensino de filosofia e produção de
obras, consideradas filosóficas, no período colonial. Tudo, porém, como reflexo
da vida cultural da metrópole, e nos moldes da segunda escolástica,
interpretada e vivenciada segundo ditames da contrarreforma. O surto moderno de
renovação cultural, que a partir do Renascimento começara a configurar-se na
Europa, e que alcançou Portugal na época do Iluminismo, sob o governo do Marquês
de Pombal, teve atuação bastante restrita e, entre nós, foi de pouca
ressonância.
A independência política do
Brasil, contudo, evidenciou, de maneira até aguda, as urgências de repensar a
convivência nacional. A própria dinâmica histórica, que levou o país à
autonomia, operou-se já sob a influência de outro clima cultural, aquele que
resultou na Revolução Francesa e na Independência americana.
A Igreja Católica que, em
Portugal e no Brasil, de parceria com a monarquia portuguesa, se constituíra
instância última de definições e de transmissões de valores, encontrou-se, na
época, num período crítico. De um lado, as autoridades de Roma cobravam
remodelação geral da vida eclesial, exigindo uma independência com relação ao
Estado, em favor da igreja; independência desconhecida, até então, no mundo
ibero-americano. De outro lado, urgia a formação de uma eliteclerical, afinada
com a política ultramontanista de condenação da modernidade, considerada negação
de toda ordem cristã. Um impasse se criava e era preciso contornar a situação
difícil.
Da reflexão filosófica se
pedia, então, aquilo que já vinha acontecendo na Europa, ou seja, bases
sólidas, para uma concepção eticopolítica, não mais dependente dos ditames da
fé cristã, mas baseada na luz natural na razão. Nesse impasse ideológico e
nesses inícios de recomposição institucional dos poderes religioso e político,
no Brasil, é que surgiu, entre nós, a corrente eclética de pensamento, ou
melhor, a tendência eclética em filosofia. Ela tem uma história longa, no
Ocidente. Emerge no mundo greco-romano, após o período áureo da reflexão
filosófica, no mundo helênico. Pleiteou, então,constituir-se como resultado da
escolha seletiva do que de “verdade” se encontrava, nas várias correntes
filosóficas existentes. No século I d.C. Potamon de Alexandria dava a seu
pensamento o nome de ecletismo. Outros pensadores, sem adotar o nome, aceitaram
sua metodologia. Antíoco de Ascalón, mestre de Cícero, pertencente à Nova
Academia, tentou superar o ceticismo da Escola, apelando para o antigo
dogmatismo platônico. Para afirmar algo como provável (afirmação da Nova
Academia) urge um critério de verdade que, para Antíoco, é a concórdia entre os
filósofos. Na Idade Média, vários autores cristãos são considerados ecléticos,
como é o caso de Justino, Clemente, Orígenes e Lactâncio. O critério que
comanda, para eles, a escolha seletiva das verdades filosóficas a admitir é, em
última instância, a concordância com, ou a possível adequação às verdades por
Deus reveladas.
Essa tradição adequava-se
com a situação nacional. A formação cristã da nação brasileira era por demais
arraigada e evidente, para se pensar uma elaboração cultural toda outra, desconsiderando
séculos e séculos da história luso-brasileira. Por outro lado, fortes e
evidentes se tornavam também os apelos para a abertura às doutrinas que estavam
fazendo a glória dos progressos modernos e constituíam fundamento de um mundo
novo.
A tendência eclética entre
nós tentou, pois, uma conciliação entre as bases cristãs da cultura brasileira,
herança de tradição lusitana, e a necessidade de um avanço. Filiou-se, assim,
ao movimento francês de pensamento, ligado a Hegel, através do historicismo de
Cousin e Jouffroy. A problemática ética encontra-se no centro das preocupações
dos ecléticos. Os motivos são bem claros, como tentamos elucidar, no início da
nossa fala. Para a construção de um Estado sólido, urgia a solução de um
impasse criado pelo surgir de nova perspectiva histórica, diante da antiga, originada
e defendida no Cristianismo. O gancho que permitia reencontrar, em bases
racionais e, até, com certa pretensão de cientificidade, a dimensão ética e
religiosa da existência humana colocara-o Maine de Biran. Inicialmente ligado
ao materialismo de Condillac, Maine de Biran, como afirma Henry Goutier, em
Dictionnaire des Philosophes, evade para uma posição prepositivista, afirmando
a aderência aos fatos, mas, ao mesmo tempo, reconhecendo a existência de um
sentido íntimo de apreensão do mundo da vida, especificamente humana, como
capacidade de ter iniciativa de ação. Escreve Goutier: Maine de Biran constata
que na (expressão) eu sinto, o eu que se afirma como o que sente é um sujeito
ativo, cuja gênese não pode se encontrar a partir de sensações passivas,
ligadas ao mundo dos objetos. A consciência do eu emerge de um “sentido intimo”
que, por sua vez, emerge com o “sentimento do esforço motor voluntário”; assim,
eu quero levantar o braço: a iniciativa vem de mim (vontade) e ela provoca um
movimento, em meu corpo (motricidade). Duas vidas, portanto: a vida animal,
essencialmente passiva...; a vida humana, essencialmente ativa, a do sujeito
que toma a iniciativa, mas de um sujeito não separado do seu corpo, já que suas
iniciativas desencadeiam movimentos; meu corpo é, então, enquanto corpo, objeto
dado pelos sentidos externos e estudado pelas ciências da natureza, enquanto
meu (corpo) ele é conhecido a partir do interior e participa da subjetividade.
A esse gancho agarraram-se
pensadores brasileiros. Em A filosofia brasileira de Antonio
Paim, editado em Lisboa em
1991, lê-se: a familiaridade com a doutrina da Escola Eclética é alcançada
graças a ida a Paris, nos anos 30 (do século XIX) de dois jovens, em busca de uma
alternativa tanto para o sensualismo, com quem se tinha familiaridade, como
para o espiritualismo renascente, mais afeiçoado com o ciclo da denominada
Escolástica decadente.
Os dois jovens foram:
Domingos José Gonçalves de Magalhães, do Rio de Janeiro, e Salustiano José
Pedrosa, da Bahia. Na França tornaram-se, os dois, discípulos de Theodore Jouffroy,
“cujo magistério Magalhães exalta em correspondência com Monte Alverne, desde
que se revela digno sucessor de Royer Collard e último discípulo de Cousin”. Em
Pernambuco, as ideias de Cousin tornaram-se conhecidas, de maneira mais fundamentada,
pelo fato de Antônio Pedro de Figueiredo ter-se dado ao trabalho de traduzir e publicar,
em um volume, em 1843, a obra de Victor Cousin, intitulada Introdução à
história da Filosofia e, logo em seguida, em dois volumes, o Curso de História
da Filosofia. Escreve: “Em Pernambuco,
Antônio Pedro de Figueiredo reúne, em seu derredor, diversos intelectuais e, em
pouco tempo, a única opção com que se defrontará será a tradicionalista”.