A morte da jovem iraniana Masha Amini nas dependências da
polícia, após ter sido detida por descumprir a lei islâmica sobre o uso do
hijab, aquele véu que cobre a cabeça especialmente das mulheres para preservar
a modéstia e esconder os cabelos conforme determinação da doutrina islâmica,
produziu uma onda de revolta no país. Como se sabe, o Irã é uma República
Islâmica controlada por autoridades religiosas que se sobrepõem às civis. Assim
é, embora o sistema político oficial seja a de uma república democrática,
regime aprovado pela quase totalidade dos cidadãos depois da revolução de 1979.
O pano de fundo da morte da jovem iraniana e dos protestos não é, portanto, não
é uma revolta contra a forma ou sistema de governo (República e Democracia),
mas do controle exercido pelas autoridades religiosas sobre a sociedade civil
através de diferentes mecanismos, orientação dos aitolás e uma polícia de
costumes. Enfim, temos uma organização política em que as autoridades
religiosas se sobrepõem às civis e têm a última palavra nas questões de moral,
governo e Estado.
O atual presidente do Irã é o ultraconservador Sayyid
Ebrahim Raisol-Sadati, comumente conhecido como Ebrahim Raisi, e foi eleito em
3 de agosto de 2021. Ele trabalhou no sistema judicial do país como Procurador-Geral
e Vice-Chefe de Justiça e adota integralmente as orientações religiosas do
Alcorão. A maior autoridade do país é a autoridade religiosa, e cargo
atualmente ocupado pelo aiatolá Ali Khamenei, que sucedeu ao aiatolá Khomeini,
um dos líderes da revolução islâmica e da implantação desse regime no país em
1979.
Um controle semelhante da autoridade civil pela religiosa
foi muito comum na Idade Média europeia e naqueles dias, na tentativa de manter
o controle sobre os líderes e a sociedade civil, a Igreja Católica acabou
cometendo erros históricos como: a perseguição das chamadas bruxas, a imposição
da autoridade religiosa sobre a civil, na venda das indulgências, etc. Eram
outros tempos que não é razoável condenar com base na mentalidade contemporânea,
pois o mundo ocidental avançou muito para deixar romper com essa dependência. A
evolução na compreensão histórica de um valor no seio de uma cultura foi
denominada por Miguel Reale de historicismo axiológico.
No ocidente quem conduziu melhor a transição do modelo
medieval para o atual foi a sociedade britânica com a proposta da moral social
consensual. Os países do norte da Europa também assumiram rapidamente a
liberdade religiosa quando avançou no continente a divisão da cristandade. Na
experiência britânica cada cidadão tinha a sua religião e a assumia como culto
público da divindade, mas o comportamento moral era consolidado em leis civis
que nasciam do acordo dos representantes do cidadão no parlamento. A questão
moral, com fundamento religioso ou filosófico, determinava a consciência
individual e ditava as normas que o indivíduo queria seguir. Cada qual tinha
sua orientação moral-religiosa, mas o comportamento social era ditado pelas
regras civis.
Estabelecido o aspecto jurídico da construção da legislação
civil não se pode deixar de considerar que o ocidente conservou na sua raiz
moral a tradição judaico-cristã, não porque as religiões sejam iguais, cada uma
tem sua teologia e moral, mas os preceitos morais fundamentais entorno ao valor
central da pessoa humana eram comuns a essa tradição. Toda a discussão levada a
cabo pela geração de Hermann Cohen, Martin Buber, Max Scheler, Emanuel Levinas
acabaram demonstrando isso, a moral judaica não é distinta da cristã.
Assim, ao lado da herança filosófico grega, responsável
pela forma lógica e racional de pensar o mundo e da organização do Estado pelo
legado de Roma, o ocidente encontrou na tradição judaico-cristã as indicações
para reconhecer o valor nuclear da pessoa humana, processo que a tradição
filosófica moderna ajudou a consolidar.
Essa tradição ética, posta na raiz axiológica da cultura
ocidental, ganhou contornos distintos dentro das religiões cristãs por que
foram tratadas de modo diferente por seus teólogos, Agostinho, por exemplo,
reviu o cristianismo na perseguição platônica e Santo Tomás fez o mesmo
dialogando com Aristóteles. Platão e Aristóteles são filósofos gregos cuja
forma de pensar era bastante diversa da tradição judaica e da maneira como
ensinava e pensava Jesus de Nazaré, que os cristãos reconhecem como sendo mais
que um profeta, mas o próprio Cristo, o enviado de Deus. Entre os protestantes
também há teólogos notáveis como Karl Friedrich Bahrdt e Johann Funck.
Assim, em que pese o ocidente ser marcado por valores
judaico-cristãos, de haver liberdade religiosa nos países democráticos do
ocidente, e de ser importante a fé em Deus como instrumento de aperfeiçoamento
pessoal, qualquer tentativa de controle moral da sociedade civil por uma moral
religiosa representa um andar de marcha ré para a Idade Média. O episódio da
jovem morta no Irã e todos os problemas daí decorrentes mostram a inadequação
desse projeto.