José Mauricio de
Carvalho
Vivemos um tempo difícil com o
renascimento do nacionalismo radical que reapareceu com o fim da Guerra Fria. O
nacionalismo adoecido e os rancores que provocaram as duas grandes Guerras no
século passado, surpreendentemente renasceram. Não é que o mundo que surgiu depois
da Segunda Guerra fosse bom, estava longe disso. A divisão em dois grandes
blocos e a permanente ameaça da bomba atômica produzia o medo real de uma
guerra definitiva. No entanto, diante do risco do fim da humanidade, aquelas
gerações tentaram reduzi-los. EUA e URSS, as potências líderes,procuravam
controlar seus aliados e, por medo uma da outra, se mantinham distantes dassuas
áreas de influência. As exceções confirmam a regra.Era um equilíbrio difícil,
mas que persistiu algum tempo.
O fim da União Soviética mostrou as
falhas de um sistema que tentou artificialmente criar uma sociedade menos
desigual, mas tinha uma visão econômica que não acompanhou a evolução do
capitalismo, era politicamente inspirada no despotismo oriental e tinha por
referência um tipo de homem econômico que já não existia desde o século XIX.
Por isso, o filósofo Martin Buber, muitos anos antes de 1988advertia que esse
socialismo não subsistiria e a única sociedade solidária razoável precisaria
ter a fraternidade universal pautada na sua alma. Um Estado cuja proposta
social fosse essencialmente ética e não apenas política e econômica.
Quanto ao homemque somos, quando apenas
seguimos nossos instintos, como observou Karl Jaspers (A bomba atômica e o futuro do homem, Rio de Janeiro: Agir, 1953, p.
32): “continua a ser o que sempre foi: com a mesma violência, falta de
escrúpulos, coragem cega para luta e, paralelamente, o mesmo comodismo,
indiferença, descaso e falta de preocupação previdente por parte dos
proprietários, que nessa qualidade, sempre se deixaram dominar por aventureiros
audaciosos.” No caso, a referência era a cooptação dos empresários por líderes
de extrema direita como Mussolini e Hitler.
Voltando a Buber e a experiência de uma
sociedade solidária, o que mais ele observou? Ele descreveu a fragilidade de qualquer
projeto de fraternidade que não possuísse uma alma (Martin Buber, a filosofia e outros escritos sobre o diálogo e a
intersubjetividade. São Paulo: Filoczar, p. 120): “O problema (do
socialismo soviético) foi que com o passar do tempo foi-se perdendo o sentido
comunitário e apesar de colônias mais ricas ajudarem as mais pobres, a
solidariedade diminuiu. Mesmo com a redução da solidariedade, concluiu Buber,
ao lado de Moscou, que é um dos polos do socialismo contemporâneo: atrevo-me a denominar o outro polo de
Jerusalém.” O que Buber chamava atenção, muito antes da queda da União
Soviética, é que o socialismo como o judaico somente era viável porque se pautava
numa fé profunda no Altíssimo e essa se realizava no serviço aos irmãos. Por
outro lado, ele acreditou que judeus e palestinos viveriam como irmãos nesse
novo Estado.
Buber tratou dessas questões no livro Sobre Comunidadeque reúne sete ensaios dedicados
à temas sociais, onde contrapôs o ideal de vida em comunidade ao modo de vida
da sociedade de massas como estava se desenhando na Europa do último século. Os
ensaios reunidos naquele livro foram elaborados entre 1905 e 1947, mesma época
em que Ortega y Gasset elaborou o seu clássico La rebelión de las masas. No seu livro mais conhecido, Ortega
resumiu como era o homem-massa que surgia:parecia-se a uma criança birrenta,
senhorzinho satisfeito e um especialista tosco, ou seja, um verdadeiro novo
bárbaro cujo reduzido conhecimento não estava à altura da cultura atual.
Os diversos textos que formam a obraSobre Comunidade tratam da formação de
uma comunidade e refletem a adesão de Martin Buber à formação do Estado judeu
na Palestina. Um Estado que não era apenas uma organização geopolítica, mas a
tentativa de concretizar o ideal contemplado no livro de Isaías. De forma
alegórica vemos numa magnífica ilustração de um mundo onde os diferentes
conviverão em fraterna paz (11, 6-9): “O lobo viverá com o cordeiro, o leopardo
se deitará com o bode, o bezerro, o leão e o novilho gordo pastarão juntos; e
uma criança os guiará.A vaca se alimentará com o urso, seus filhotes se
deitarão juntos, e o leão comerá palha como o boi. A criancinha brincará perto
do esconderijo da cobra, a criança colocará a mão no ninho da víbora. Ninguém
fará nenhum mal, nem destruirá coisa alguma em todo o meu santo monte, pois a
terra se encherá do conhecimento do Senhor como as águas cobrem o mar.”Enfim,
um Estado precisa ser mais que uma organização geopolítica e possuir uma alma
que aproxime as pessoas, lhes confira identidade e solidariedade num destino
comum.
A guerra entre Israel e o Hamas, além da
outra Rússia e Ucrânia, mostra o quão longe os homens estão de viver de modo
fraterno como propôs o profeta Isaias há 2700 anos e como o sonho de uma única
nação reunindo diferentes descendentes de Abraão falhou.