I - O Encontro
No Colóquio sobre Max Weber em Viamão, RS, em 1984, Antonio Paim foi o palestrante principal. Foi nessa ocasião que o conheci. Estavam
presentes também, como palestrantes, o professor Ricardo Vélez Rodríguez e os
finados embaixador José Guilherme Merquior (1941-1991) e o padre jesuíta
português Francisco Videira Pires (†2002), entre outros. Esse Colóquio foi
promovido pelo então Instituto Lindolfo Collor, sob os cuidados de Cezar
Saldanha, professor de Direito Constitucional da Universidade de São Paulo
(USP). Eu então era professor da Universidade Federal de Santa Maria e
participava como co-coordenador do referido Colóquio que era dirigido a jovens
militantes de partidos políticos do Rio Grande do Sul.
Eu já
conhecia Paim pelos seus escritos, mormente através do livro História das
Ideias Filosóficas no Brasil, de sua autoria. A imagem que fazia de Paim era de
uma inteligência brilhante e esperava ouvir uma personalidade firme,
desenvolta, com raciocínio rápido e conclusivo. Quando Paim começou a falar,
quase tive uma decepção. Era alguém que sugeria, levantava dúvidas, raciocinava
sempre sobre hipóteses. Ele abordou a questão das formas de dominação de Max
Weber. No entanto, não pude deixar de me sentir instigado pelo seu discurso. A
impressão que tive foi de que, num turbilhão de ideias, Paim conseguia agarrar
alguma e a jogava para nós.
Merquior
abordou a questão dos valores em Weber, Ricardo Vélez falou sobre o positivismo
no Rio Grande do Sul e Videira Pires sobre a política e a religião. Os melhores
momentos eram os debates, pois se estabelecia uma interação entre os
palestrantes e a plateia. Era nesses momentos que Paim crescia. Ele se tornava
então outra pessoa: contava anedotas, ironizava, sorria complacente. Os
participantes aprovavam e ele se entusiasmava. Paim não se encaixava na
formalidade, ele precisava de espaço livre. Aliás, mais tarde ele mesmo
afirmou: – “Não sou feito para ser
monogâmico”.
Embora,
formalmente, a sessão terminasse, os debates continuavam no intervalo, no
cafezinho, nas refeições e nas “rodinhas”. Numa delas, ouvi Paim comentar com
Cezar Saldanha que o livro O Poder Moderador na República Presidencial, escrito
por Borges de Medeiros (1863-1961), ainda não havia sido estudado a fundo por
ninguém. Fiquei curioso. Perguntei a Saldanha se ele me conseguiria o livro.
Prometeu-me para o dia seguinte. De posse do livro, não mais assisti às
palestras e o fiquei lendo. Após a leitura, fui conversar com Paim.
Na
ocasião, ele era professor do Curso de Doutorado em Filosofia da Universidade
Gama Filho (UGF) do Rio de Janeiro e eu buscava um tema para pesquisar no meu
doutorado. Conversamos e ele me pediu para eu fazer um esboço de projeto.
Trabalhei no anteprojeto durante todo dia e, à noite, nos encontramos.
Recordo-me
que Paim sentou-se numa classe, concentrou-se e passou, atentamente, os olhos
no texto. Ora sacudia a cabeça para frente e para trás afirmativamente, ora
balançava lentamente, da direita para esquerda, em forma de dúvida, ou
rapidamente em sinal de desacordo. Após examinar o conteúdo, sugeriu alguns
retoques e pediu para eu apresentá-lo na seleção de doutorado da Gama Filho. –
“Pode dizer que eu serei seu orientador”. O projeto foi aceito e eu me
matriculei no Doutorado, tendo como orientador Antonio Paim.
II - As Aulas
A
Universidade Gama Filho fica na Piedade, um bairro pobre da Zona Norte do Rio
de Janeiro. O acesso mais prático é pelo transporte ferroviário. O trem da
Central do Brasil que leva à Universidade passa por vários bairros: Maracanã,
Engenho Velho, Engenho de Dentro, Méier, Deodoro e Piedade. O prédio central da
Universidade está encravado numa encosta, embora seu campus esteja distribuído
em diversos locais.
Antonio
Paim sempre chegava pontualmente às aulas. Vestia esporte. Sério e cordial se
dirigia à sala de aula, acompanhado por nós. Éramos cinco naquela turma. Do Rio
Grande do Sul, eu; dois de Minas Gerais; uma colega do Pará e outra do Rio de
Janeiro. Todos atuavam como professores de universidades.
Eu
estava muito ansioso. Afinal teria aula com um verdadeiro filósofo. Embora
tivesse tido bons professores no Curso de Filosofia, cinco deles se tornaram
mais tarde bispos da Igreja católica, Paim, para mim, era peculiar porque não
só ensinava, mas também escrevia o que ensinava. Além disso, era um filósofo de
referência nacional.
Em
todos os encontros, antes de iniciar a aula, distribuía resumo em forma de
esquema. Expunha o assunto em forma dialógica, isto é, apresentava as diversas
opiniões sobre a questão, os pontos fortes e fracos de cada um, as
incongruências, as diversas conexões que o pensamento possuía. Depois
perguntava nossa opinião, começando então o debate. Da mesma forma que a
exposição da aula, uma a uma das nossas posturas eram analisadas por ele.
III - As Leituras
Paim
tinha o dom de captar o ponto fraco de cada um de nós. Quando isso acontecia, ele
marcava um seminário ou apresentação em aula de um autor ou livro e encarregava
um de nós para fazer a exposição. Geralmente o encarregado era o que
demonstrava o ponto fraco no assunto. Um ex-aluno do professor que,
posteriormente, se tornaria um grande discípulo e colega do mestre, Ricardo
Vélez Rodríguez, contou-nos que, certa vez, externara certas influências do
pensamento tradicionalista da Igreja Católica. Paim não teve dúvidas e
incumbiu-o de, na próxima aula, fazer uma apresentação sobre os dois livros de
Kant.
Sabendo
que eu vinha da graduação de uma PUC, deu-me por tarefa a leitura e apreciação
de Liberdade Acadêmica e Opção Totalitária, de sua autoria. Esse livro versa
sobre a escalada totalitária, em surdina, que estava em curso no Departamento
de Filosofia da Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio). O processo o
vem à tona, quando o departamento censura um texto de Miguel Reale (1910-2006)
que seria incluído numa coletânea de textos como subsídio à disciplina de
História do Pensamento. A professora do Departamento de Filosofia da PUC, Anna
Maria Moog Rodrigues, pede demissão da universidade por não concordar com a
atitude da chefia do departamento. Com a chegada da questão à mídia inicia-se
um grande debate, tanto dentro da universidade como fora, na imprensa escrita e
falada.
Paim
acompanhou o desenrolar dos acontecimentos, recolhendo artigos,
pronunciamentos, manifestações e publicou-os em forma de livro, com comentários
críticos. Distinguiu as posições, as origens e as causas do modelo totalitário
em curso naquela universidade. Mostrou que a origem estava na filosofia do
padre jesuíta Henrique Cláudio de Lima Vaz (1921-2002) que tentara conciliar
uma questão gnosiológica, unindo os clássicos, como Aristóteles (384-322) e
Santo Tomás de Aquino (1225-1274), com os modernos Immanuel Kant e Georg
Wilhelm Friedrich Hegel (1770-1831) no livro de sua autoria, Ontologia e
História. Mais tarde, avança a tese de que a cultura é histórica e, portanto,
relativa. O problema não está nessa conclusão em si, mas nas suas perspectivas
práticas. A partir disso, Henrique Cláudio de Lima Vaz busca, no hegelianismo e
marxismo, as ferramentas que levarão a um pensamento totalitário, através da
proposta socialista.
Ao
tornar pública a questão, Paim conseguiu que se reorganizassem os defensores do
pluralismo e o processo foi abortado. Após minha exposição, Paim me perguntou:
– “O que você achou?” Respondi: “Constrangedor”. Paim retrucou: –
“Constrangedor? Isso é pouco. Foi uma imoralidade”!
Eu não
poderia imaginar que, dois anos mais tarde, então como coordenador de curso de
pós-graduação passaria por uma experiência semelhante no departamento de
Estudos Políticos e Sociais de minha universidade.
IV - O Discípulo
Antonio Paim e Ricardo Vélez Rodríguez se conheceram na PUC do Rio de Janeiro. O primeiro era professor e o segundo, aluno. Daquele dia em diante, Ricardo sempre foi o discípulo predileto do mestre e fazia-o por merecer. Talvez ninguém como ele tenha assimilado melhor os ensinamentos do professor Paim. Ricardo tinha mais uma qualidade: o dom da palavra, além da escrita. Era irônico, patético, eloquente, sugestivo, profundo, tinha senso comum, tudo dependia do momento. Paim sabia pensar. Ricardo entendia e sabia externar, falar. Ambos se complementavam perfeitamente.
Ricardo era natural da Colômbia.
Teve uma formação secundária e universitária dentro do meio católico. No
Brasil, obteve o título de mestre pela PUC do Rio de Janeiro, com a dissertação
que se tornaria livro: Castilhismo: Uma Filosofia da República, e o doutorado
na Universidade Gama Filho, cujo resultado da tese se encontra na obra Oliveira
Vianna e o papel modernizador do Estado brasileiro, ambos como aluno e com a
orientação de Paim.
Por
isso, minha migração para a orientação de Ricardo não mudava em nada. Foi
apenas uma continuidade, além de receber, extraoficialmente a orientação de
Paim.
IV- Núcleo Congregativo.
O Curso de Mestrado e Doutorado de Pensamento
Luso-brasileiro, fundado por Paim e outros colegas, constituía-se num núcleo
congregativo do pensamento culturalista
nos moldes de Miguel Reale. Faziam parte como idealizadores e fundadores,
primeiramente Antonio Paim, seus colegas portugueses Esteves Pereira, Caeiro,
Eduardo
Soveral e Braz Teixeira. Logo em seguida surge uma plêiade de novos
idealizadores que levam adiante a idéia: Anna Maria Moog Rodrigues, Vicente
Barreto, Aquiles Cortes Guimarães, Creusa Capalbo, Luiz Antonio Barreto,
Leonardo Prota, Paulo Mercadante e Ricardo Velez Rodriguez entre outros. Do
núcleo inicial e segunda geração emerge em todo Brasil novos líderes
culturalista.
Pode-se dizer que a difusão do pensamento filosófico
luso-brasileiro encaminhou-se para duas direções: uma, ligada às universidades,
manifestando-se principalmente na emergência de cursos de pós-graduação e outra
no surgimento de entidades junto ás universidades como os centros de estudos:
filosófico e político.
Destaca-se que em 25 universidades passou-se a ensinar
filosofia brasileira, conteúdo totalmente desconhecido no Brasil antes da
atuação de Paim e seu grupo de estudos.
Faleceu em 30 de abril próximo passado na cidade de São Paulo. Ele nasceu em 7 de abril de 1927, em Jacobina, na Bahia e se dedicou ao estudo da História das Ideias, Política e Filosofia, campos em que se defrontou com inúmeros problemas, sendo autor de obra extensa e variada. Na década de 50 cursou Filosofia na Universidade Lomonosov, em Moscou, e, posteriormente, fez novamente o curso na Faculdade Nacional de Filosofia, no Rio de Janeiro. Foi professor na Universidade Federal do Rio de Janeiro, na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro e na Universidade Gama Filho, aposentando-se da docência, em 1989. Na PUC-RJ organizou e coordenou o curso de mestrado em Pensamento Brasileiro. Na Universidade Gama Filho, juntamente com o Dr. Eduardo Abranches de Soveral, que veio para o Brasil depois da Revolução dos Cravos, implantou o doutorado em Pensamento Luso-Brasileiro.