quarta-feira, 14 de maio de 2014

A banana e uma séria questão. José Maurício de Carvalho












O jogador Daniel Alves, atleta do Barcelona e da seleção brasileira, reagiu de forma irreverente à provocação de um torcedor que lhe arremessou uma banana. O fato foi notícia em todo mundo. Apanhou-a e comeu-a instintivamente, confessou em entrevista a uma revista de notícias, comportando-se como os macacos nos zoológicos. E assim, usando um comportamento instintivo de forma calculada, desconsiderou a ofensa, assumindo a herança ancestral da nossa humanidade comum. Colocou-se acima da injúria, num lugar onde ela não podia atingi-lo. Num lugar onde a humanidade não é ofendida pela herança animal porque entende que o que a identifica não é este passado. E do que vamos tratar, a seguir.
O reconhecimento da humanidade comum é uma longa conquista da consciência humana, mas encontra adversários no próprio homem. Há algo irracional, profundo, apaixonado em nós, cujas forças arrastam e não são facilmente esclarecidas pela razão. Assim, é movido pela paixão o homem atraído pelo corpo feminino, ou que deseja determinado objeto com uma intensidade que lhe parece inexplicável. É que muitos atos e escolhas de nossa vida decorrem de desejos, ou de apetites sensíveis, como diria Santo Tomás e os seus contemporâneos medievais. No fundo, o que amamos e rejeitamos tem motivos não só racionais ou nascem de escolhas conscientes, mas como resposta a desejos profundos, sobre os quais a Psicologia e a Psicanálise se debruçam com permanente fascínio.
E é assim, por impulsos de nossa origem ancestral, a mesma que faz a banana um alimento tão bom para a espécie, que identificamos os mais próximos pela aparência física, pelos cheiros, pela proximidade nas formas de agir. A família biológica constitui um núcleo de unidade cujas razões transcendem muito as razões intelectuais para conviver. Nela se vive sentimentos intensos de amor e ódio, como relata a literatura. É o mesmo sentimento que se estende para determinados aspectos étnicos, que ligam as pessoas mais a um grupo que a outro. E assim, pela herança animal, somos muitas vezes movidos por amor e ódio animal, quer indo contra uma pessoa ou nos aproximando dela, mas, nos dois casos, estimulados por forças e impulsos dos quais temos pouca ou nenhuma consciência.
O homem reage assim a favor do seu grupo de pertença e contra outros com os quais não se identifica e isto não é um fenômeno desconhecido no próprio reino animal. Atirar bananas para dizer: você não é do meu grupo, o que está fazendo aqui? é reação animal. No entanto, há muitos séculos a humanidade deu-se conta de que não pode se guiar unicamente pelas paixões, embora não tenha como extirpá-la da carne. A experiência de um amor mais amplo que o instinto não é fácil de ser aprendido. O grande mestre da humanidade, Jesus de Nazaré, sofreu e morreu tentando ensiná-lo. Ele alertou que todos são capazes de agradar amigos e parentes, os pais dão coisas boas as seus filhos, mas nem todos os homens enxergam no estrangeiro, no pobre ou no distante o objeto de amor e da atenção. E foi o que Jesus quis ensinar, uma nova forma de amor que não se limita a parentes, ou ao grupo nacional, mas se alarga a toda a humanidade. No caso, embora não estivessem fazendo boas coisas, também o romano invasor e opressor era digno do respeito humano. Respeito ao homem, embora não condescendência com o erro. Perdão ao que erra, mas não aceitação do erro. Perdão que deu aos seus torturadores, embora não à tortura.
A experiência de um tal amor, ensinado durante séculos pelos seguidores que Cristo deixou entre nós, não mudou o homem na sua raiz animal, mas suscitou e permitiu nova experiência histórica ou cultural. E qual é esta experiência? A de que não só a religião, mas a própria condição humana, sua racionalidade comum, exige o reconhecimento de todos os homens potencialmente livres e racionais como criaturas iguais. Todos são merecedores do mesmo respeito dedicado àqueles que nos são próximos e queridos. A fórmula da moral kantiana de respeito à humanidade, em si e no outro sempre como fim, nunca como meio, é a antítese do que proclamaram os nazistas. Eles elegiam, em suas explicações e comportamento, as vidas que mereciam ser respeitadas e aquelas outras que não eram dotadas desta dignidade. A mesma nação que nos ofereceu a genialidade de Emmanuel Kant, mostrou que o reconhecimento moral não é automático.
E é esta raiz moral, desenvolvida em séculos de história da civilização e reconhecida pela consciência humana, que levou as nações da terra acordarem em rejeitar as manifestações racistas. Reside nesta compreensão moral que une os homens numa humanidade comum, as leis que foram criadas nas diversas nações para proteger a vida e a dignidade das pessoas.
O racismo, em suas várias manifestações, é a obediência ao instinto de pertença primitivo como justificativa para defender a existência de grupos superiores. Superioridade que não tem comprovação científica, não encontra amparo na racionalidade, não tem justificativa legal, mas radica nos instintos primitivos, cuja manifestação plena ameaçam a vida civilizada.

O episódio da banana mostra que nem mesmo na Europa desenvolvida a consciência moral é conquista fácil e completa. E qual é este nível desejável? A consciência que somos irmãos diante do Criador, ou ao menos, iguais pela genética comum e pela razão prática que nos faz responsáveis pela nossa liberdade.

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