Tendo em vista os últimos acontecimentos políticos no Brasil, mormente o que aconteceu no dia 7 de setembro - Desfile da Independência e Fala do Presidente - trazemos o pensamento de Giovanni Sartori, um dos maiores politólogos da atualidade.
Parece que foi Alexis
Tocqueville quem matou a charada: por que a democracia funciona na América e
não funciona na França, embora ambas tenham as mesmas instituições? Tocqueville
responde por que a primeira tem alma e a segunda é apenas corpo. É aquilo que
Montesquieu denominou “o espírito das
leis”. Pode-se lançar mão da alegoria do corpo. Pode haver corpo belo, uma
verdadeira obra de arte, como o Moisés de Miguel Ângelo, mas sem alma. Por mais
que seu autor grite “fale”, ele permanecerá mudo. No entanto, qualquer ser
animado, produzido pela natureza, sem ser obra de arte ultrapassa todas as
comparações. O “corpo” de Miguel por mais belo que seja, falta-lhe a alma: o da
natureza, ao invés, espontaneamente “fala”. A diferença é que o corpo de Miguel
não tem alma, embora tenha tudo. O da natureza embora lhe falte tudo, tem a
alma.
A democracia como corpo
político tem vida na moral que perpassa suas instituições. As sociedades democráticas
de arranjo arquitetônico institucional é apenas o corpo social, sem alma. Uma
sociedade sem alma é um corpo sem vida. Embora possam ocorrer problemas em
qualquer sociedade a que tem alma encontra solução e a outra não. Tomemos um
exemplo: discriminação social. Numa sociedade democrática um dos princípios
fundamentais é a igualdade de todos. Quando ocorrer alguma discriminação nas
sociedades que a democracia tem alma, a própria sociedade que exige reparação.
Na outra, a reparação é remetida à justiça a qual aplica a burocracia que nunca
soluciona o problema. A democracia puramente institucional tem alma burocrática,
é um corpo sem vida. Nela facilmente prolifera a colonização política, a
corrupção, colapso dos partidos políticos.
Uma moral social cimenta a
organização social e política alicerça os princípios da universalização da
justiça, da reciprocidade de direitos e deveres, da solidariedade espontânea.
Nestas sociedades a democracia é um valor moral que embasa o discurso
ético-democrático. Numa sociedade moralmente democrática há uma união
substancial entre o corpo –arcabouço externo – e a alma – princípio vital. É um
só ser, unidos consubstancialmente. A democracia é a união substancial entre o
corpo social com sua alma moral.
A pergunta que se faz: pode
um corpo social adotar uma moral ou uma moral encarnar num corpo? Isto responde à questão:
pode qualquer sociedade ser democrática? Em outras palavras: todas as
sociedades são aptas à democracia? As naturalmente democráticas e as
artificialmente democráticas?
Neste ponto vem ao caso a
pergunta de Giovanni Sartori: "a democracia é exportável? Eu respondo:
surpreendentemente, sim; mas não em todos os lugares e nem sempre.”
A democracia pode admitir
dois tipos de morais: a natural e a adquirida. A primeira é uma moral inata no
meio social. As novas gerações vão assimilando sem se aperceberem os costumes,
as leis, as práticas de seu meio. É aquilo que Tocqueville denomina espírito da
sociedade e Giovanni Sartori “empoderador” da democracia. O primeiro apresentou
como modelo a sociedade americana a qual, desde a mais tenra idade as novas
gerações assimilam, como o respeito pela maioria, a aprendizagem do voto, a
igualdade de direitos, as eleições, os poderes o papel do judiciário.
A segunda moral, a
adquirida, basicamente e genericamente pode ser assimilada pela educação. Não
se refere tão somente aquela formal, mas todas as práticas diárias que
introduzem as práticas morais democráticas como as citadas por Tocqueville.
Para tanto, toda sociedade de estar disposta a adquirir esta nova moral.
Vários exemplos podem ser
mencionados de povos. Neste caso o princípio geral é o seguinte: quando a moral
da religião do povo não for contrária à moral da democracia não há maiores
problemas em aceitar a democracia. Os canadenses, por exemplo, apesar da
composição étnica heterogênea, através da educação, conseguiram assimilar o
espírito democrático. Os japoneses, calcados numa moral religiosa e heterogênea,
mas não adversa à moral democrática “empoderaram-se” facilmente da moral
democrática, pois a moral democrática não colidia com a da religião. A Índia
teve um longo período de colonização inglesa que flexibilizou sua rigidez
moral. Os uruguaios adquiriram o consenso democrático através das tentativas de
“erro e acerto” com o reforço da religião. E assim poderíamos desfilar exemplos
de assimilação da moral democrática. E quando chegam a este estágio de
assimilar a democracia as próximas gerações já se educam naturalmente no
espírito ou moral democrática. Mas há culturas ainda longe do espírito
democrático. É o caso do Irã e do Afeganistão. Diz Sartori:
“, l’Islam a livello di massa è rigido, sclerotizzato, e cioè manca di flessibilità, adattabilità e capacità di risposte creative. Ne consegue che, più l’Occidente laico si ritiene in dovere di «liberare» l’Islam costringendolo alla democrazia, più l’Islam teocratico si ritiene in dovere di liberare la propria fede dalle incrostazioni occidentali e di contrattaccare islamizzando l’Occidente.”( (Tre scritti del 2007, 2011 e 2015 di Giovanni Sartori «Corriere della Sera»,)
(O Islã em nível de massa é rígido, esclerótico, isto é, falta flexibilidade, adaptabilidade e capacidade para respostas criativas. Segue-se que, quanto mais o Ocidente secular se considera obrigado a "libertar" o Islã forçando-o à democracia, mais o Islã teocrático se considera obrigado a libertar sua fé das incrustações ocidentais e contra-atacar islamizando o Ocidente. Tradução livre)
O espírito da democracia, sua alma, é uma condição “sine qua non” da democracia. Pode-se adquiri-lo espontaneamente, por natureza, ou pela educação, artificialmente. Com o tempo a aquisição artificial torna-se natural nascendo um novo corpo social: democrático.