sexta-feira, 10 de setembro de 2021

CONDIÇÕES DA EXISTÊNCIA DA DEMOCRACIA. Selvinio Antonio Malfatti.

 


                                     G. SARTORI


Tendo em vista os últimos acontecimentos políticos no Brasil, mormente o que aconteceu no dia 7 de setembro - Desfile da Independência e Fala do Presidente - trazemos o pensamento de Giovanni Sartori, um dos maiores politólogos da atualidade. 

Parece que foi Alexis Tocqueville quem matou a charada: por que a democracia funciona na América e não funciona na França, embora ambas tenham as mesmas instituições? Tocqueville responde por que a primeira tem alma e a segunda é apenas corpo. É aquilo que Montesquieu denominou  “o espírito das leis”. Pode-se lançar mão da alegoria do corpo. Pode haver corpo belo, uma verdadeira obra de arte, como o Moisés de Miguel Ângelo, mas sem alma. Por mais que seu autor grite “fale”, ele permanecerá mudo. No entanto, qualquer ser animado, produzido pela natureza, sem ser obra de arte ultrapassa todas as comparações. O “corpo” de Miguel por mais belo que seja, falta-lhe a alma: o da natureza, ao invés, espontaneamente “fala”. A diferença é que o corpo de Miguel não tem alma, embora tenha tudo. O da natureza embora lhe falte tudo, tem a alma.

A democracia como corpo político tem vida na moral que perpassa suas instituições. As sociedades democráticas de arranjo arquitetônico institucional é apenas o corpo social, sem alma. Uma sociedade sem alma é um corpo sem vida. Embora possam ocorrer problemas em qualquer sociedade a que tem alma encontra solução e a outra não. Tomemos um exemplo: discriminação social. Numa sociedade democrática um dos princípios fundamentais é a igualdade de todos. Quando ocorrer alguma discriminação nas sociedades que a democracia tem alma, a própria sociedade que exige reparação. Na outra, a reparação é remetida à justiça a qual aplica a burocracia que nunca soluciona o problema. A democracia puramente institucional tem alma burocrática, é um corpo sem vida. Nela facilmente prolifera a colonização política, a corrupção, colapso dos partidos políticos.

Uma moral social cimenta a organização social e política alicerça os princípios da universalização da justiça, da reciprocidade de direitos e deveres, da solidariedade espontânea. Nestas sociedades a democracia é um valor moral que embasa o discurso ético-democrático. Numa sociedade moralmente democrática há uma união substancial entre o corpo –arcabouço externo – e a alma – princípio vital. É um só ser, unidos consubstancialmente. A democracia é a união substancial entre o corpo social com sua alma moral.

A pergunta que se faz: pode um corpo social adotar uma moral ou uma moral  encarnar num corpo? Isto responde à questão: pode qualquer sociedade ser democrática? Em outras palavras: todas as sociedades são aptas à democracia? As naturalmente democráticas e as artificialmente democráticas?

Neste ponto vem ao caso a pergunta de Giovanni Sartori: "a democracia é exportável? Eu respondo: surpreendentemente, sim; mas não em todos os lugares e nem sempre.”

A democracia pode admitir dois tipos de morais: a natural e a adquirida. A primeira é uma moral inata no meio social. As novas gerações vão assimilando sem se aperceberem os costumes, as leis, as práticas de seu meio. É aquilo que Tocqueville denomina espírito da sociedade e Giovanni Sartori “empoderador” da democracia. O primeiro apresentou como modelo a sociedade americana a qual, desde a mais tenra idade as novas gerações assimilam, como o respeito pela maioria, a aprendizagem do voto, a igualdade de direitos, as eleições, os poderes o papel do judiciário.

A segunda moral, a adquirida, basicamente e genericamente pode ser assimilada pela educação. Não se refere tão somente aquela formal, mas todas as práticas diárias que introduzem as práticas morais democráticas como as citadas por Tocqueville. Para tanto, toda sociedade de estar disposta a adquirir esta nova moral.

Vários exemplos podem ser mencionados de povos. Neste caso o princípio geral é o seguinte: quando a moral da religião do povo não for contrária à moral da democracia não há maiores problemas em aceitar a democracia. Os canadenses, por exemplo, apesar da composição étnica heterogênea, através da educação, conseguiram assimilar o espírito democrático. Os japoneses, calcados numa moral religiosa e heterogênea, mas não adversa à moral democrática “empoderaram-se” facilmente da moral democrática, pois a moral democrática não colidia com a da religião. A Índia teve um longo período de colonização inglesa que flexibilizou sua rigidez moral. Os uruguaios adquiriram o consenso democrático através das tentativas de “erro e acerto” com o reforço da religião. E assim poderíamos desfilar exemplos de assimilação da moral democrática. E quando chegam a este estágio de assimilar a democracia as próximas gerações já se educam naturalmente no espírito ou moral democrática. Mas há culturas ainda longe do espírito democrático. É o caso do Irã e do Afeganistão. Diz Sartori:

“, l’Islam a livello di massa è rigido, sclerotizzato, e cioè manca di flessibilità, adattabilità e capacità di risposte creative. Ne consegue che, più l’Occidente laico si ritiene in dovere di «liberare» l’Islam costringendolo alla democrazia, più l’Islam teocratico si ritiene in dovere di liberare la propria fede dalle incrostazioni occidentali e di contrattaccare islamizzando l’Occidente.”( (Tre scritti del 2007, 2011 e 2015 di Giovanni Sartori «Corriere della Sera»,)

 (O Islã em nível de massa é rígido, esclerótico, isto é, falta flexibilidade, adaptabilidade e capacidade para respostas criativas. Segue-se que, quanto mais o Ocidente secular se considera obrigado a "libertar" o Islã forçando-o à democracia, mais o Islã teocrático se considera obrigado a libertar sua fé das incrustações ocidentais e contra-atacar islamizando o Ocidente. Tradução livre)

O espírito da democracia, sua alma, é uma condição “sine qua non” da democracia. Pode-se adquiri-lo espontaneamente, por natureza, ou pela educação, artificialmente. Com o tempo a aquisição artificial torna-se natural nascendo um novo corpo social: democrático.

 

 

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