Ele,
entre outros filósofos da escola fenomenológica existencial, tem sido um dos
autores que mais frequentemente examino há alguns anos. A ele dediquei
capítulos de livros e muitos artigos além do livro Filosofia e Psicologia, o pensamento fenomenológico-existencial de Karl
Jaspers (2006). Porém quero, ao
invés de comentar suas ideias e crenças, dar voz ao filósofo para que ele se
apresente. Jaspers escreveu, no final da vida, um texto necrológico, uma espécie
de testamento intelectual, pelo qual gostaria de ser lembrado. Esse texto foi retirado
do livro mencionado (CARVALHO, 2006, p. 253/4): “Karl Jaspers nasceu em
Oldenburg, a 23 de fevereiro de 1883. Deve aos seus progenitores uma educação
séria e um amor que o envolveu para sempre: no liceu, teve uma formação
humanística: na Universidade; o acesso à Universidade da pesquisa científica.
Gozou do nobre privilégio de poder viver na liberdade como professor que se
assinalava os próprios deveres. Pelo ensino, ele contribuiu com a sua parte
para a continuidade da tradição, apoiando-se confiadamente no sentido da
Universidade do Ocidente. A maravilhosa cidade de Heidelberg, a venerável
cidade de Basiléia, foram os lugares onde se esforçou, na pobre medida das suas
forças, por desempenhar sua tarefa. Tudo o que lhe foi dado realizar não
poderia tê-lo feito sem sua esposa, Gertrud Mayer. Desde o tempo de estudante,
ela o rodeou de um amor sem limites, não consentindo a insinceridade, firme em
suas exigências. Como se tivessem encontrado neste mundo vindos de um outro
inimaginável, como se se recordassem sem o saber, eles viveram, como uma
gratidão infinita, a realidade quotidiana da sua vida, ao longo dos anos
instáveis, por mais de meio século. Foi nesta existência em comum que cresceu a
pesquisa filosófica, cujo germe estava presente desde os anos da escola, mas
que desabrochou então e se tornou vocação para ambos. Intimamente unidos,
suportaram juntos a pena da doença, porque, após a juventude, ele não deixou
mais de sofrer. Depois vieram os doze anos de angústia sob o
nacional-socialismo. Miraculosamente protegidos, passaram pelo meio das forças
temíveis. A perda da sua pátria política precipitou-o em um abismo em fundo, do
qual só escapou, com a sua esposa, graças à origem comum de toda a condição
humana, à amizade de alguns seres amados, na Alemanha ou dispersos pela face da
terra, graças, enfim, ao sonho de uma cidadania mundial por vir. Acolhido em
Basiléia, na tradição europeia, na liberdade, encontrou ali um asilo tranquilo.
Foi essa a última dádiva que recebeu. No decorrer desses anos, dedicou todas as
suas forças ao prosseguimento do seu trabalho filosófico, em si mesmo
inacabável. Por este trabalho, inspirado mais em uma antecipação tateante do
que em um saber já adquirido, experimentando os pensamentos sem possuir
certezas, ele queria prestar o seu contributo na tarefa própria deste século:
encontrar o caminho que conduz, do termo da filosofia europeia, à futura
filosofia mundial (p. 3- 5).
No silêncio e isolamento nos tempos de perseguição, Jaspers se tornou tão admirado como figura humana como era como pensador. Hannah Arendt, uma de suas alunas famosas, lembrava em Homens em tempos sombrios que aquele professor perseguido (ARENDT, 2010, p. 85): “não era a Alemanha, mas o que restara da humanitas na Alemanha.” Isso porque ele permaneceu durante toda a vida na defesa da razão e da liberdade, atualizando a filosofia de Kant e desenvolvendo a filosofia na perspectiva da escola existencial. Isso lhe permitiu escrever páginas magistrais sobre (id., p. 86): “a consciência racional da liberdade, onde o homem se experimenta como um dado de si.
Assim,
quando terminou a Guerra e havendo escapado por milagre da fome e da morte,
reapareceu como a grande referência da venerável universidade alemã, espaço da
pesquisa e da liberdade, da inteligência e moralidade. Aquele professor soube
guiar seu país no reencontro com sua tradição intelectual e, sem deixar de ser psiquiatra
famoso apareceu, diante de seu povo, como o grande filósofo da Alemanha livre.
Assim, num país mergulhado em culpa e envergonhado de seu passado recente,
Jaspers soube mostrar onde apanhar as referências da racionalidade para seguir
vivendo.
Além
de ser a grande voz da Alemanha no pós guerra, Jaspers mostrou a importância de
uma cidadania mundial, uma cidadania que não deixa as referências de sua
pátria, mas que não se afasta do movimento civilizatório do mundo ocidental.
Isso porque Jaspers ligava os acontecimentos importantes dos diferentes países
à história de todos eles. Ele fez então da Filosofia um tecido da cidadania
mundial.
Jaspers
é um desses homens que se tornaram grande pelo que representaram na luta pela
liberdade, pela razão, pela consciência moral da humanidade. Sua lembrança é
especialmente importante nesses tempos em que justo as referências mais
elevadas, nobres e da inteligência foram ofuscadas pelo obscurantismo, pelas
Fake News, pela superficialidade de uma sociedade de massas pouca atenta aos
valores que a edificou.