Aprendemos
a lidar com o mundo a partir da experiência que formamos dele. O modo como o
mundo aparece para mim é a forma que ele parece verdadeiramente ter. Nós,
modernos ocidentais, aprendemos a tratar as coisas dessa forma ou a acreditar que
assim é. O mundo parece ser algo para mim. Acabamos convencidos de que nossa
forma de entender o mundo o representa bem. Acreditamos nisso. Uma forma que
vai além da percepção individual e tem elementos objetivos e compartilhados. Esse
modo de pensar foi uma construção histórica.
Os
historiadores do pensamento ocidental encontram a raiz da formação da
consciência subjetiva ou subjetividade no final da Renascença. O filósofo
francês René Descartes foi quem conseguiu expressar o que o homem do seu tempo
vislumbrava, tudo quando via, tudo quanto sentia, tudo aquilo que ouvia e que
chegava a sujeito não era simples exterioridade, como se pensou durante séculos.
De fato, muitas gerações que se sucederam na história, desde os tempos antigos
até o século XVII imaginavam que assim era. Parecia-lhes que as coisas existiam fora de nós e de alguma
forma vinham para dentro de nós. Descartes mostrou que era problemático ter
alguma certeza se ficássemos em tal entendimento. O processo podia não acabar
bem e o mundo não se mostrar adequadamente. Então Descartes fez da consciência
pessoal o lugar da certeza. Enquanto o homem antigo estava voltado para fora,
Descartes passa a tratar da pura intimidade como o espaço da certeza. Penso, e,
no mais íntimo de mim, descubro-me como ser no mundo. E como ser no mundo posso
me relacionar com as coisas e com as outras consciências.
Essa
descoberta extraordinária reorganizou o modo como tratamos as coisas e os
outros. Porém, essa descoberta maravilhosa, esse ponto de transformação na compreensão
da realidade, que não pode ser desconsiderada depois de descoberta, acabou
levando a exageros pelas gerações que
seguiram Descartes. O próprio corpo já não era algo que podia ser pensado como
outro, o que se sabe dele é uma ideia, uma representação do que ele
verdadeiramente é. Saber como essa consciência forma a compreensão de si e das
coisas e o modo como lida com o mundo ocupou gerações de pensadores. E pelo processo
de exageração do que encanta porque é nos mostra o que é maravilhoso, a própria
vida e tudo o que nos rodeia se reduziu-se a pensamento. Descartes não entende que
o mundo pode enriquecer a consciência, ao contrário, ela fica isolada. E o
resultado do isolamento é a solidão, adquire-se consciência da singularidade
ontológica, isto é, de sermos únicos e diferentes de tudo.
Se
essa descoberta nos legou grandes coisas, se aprendemos que nosso saber do
mundo refere-se ao nosso próprio modo de conhecê-lo e lidar com ele, se a
experiência da solidão ontológica de alguma forma parece válida hoje em dia, o
homem moderno também aprendeu que não podia reduzir o mundo aos conteúdos da
consciência. E esse processo e as relações que ele contém tem muitas
implicações e capítulos. Não é preciso descrevê-lo detalhadamente. Basta registrar
que, de todos os modos, esse grande eu que tanto cresceu até se tornar
Absoluto, no idealismo de Hegel, teve que ser reduzido a sua real dimensão
pelos filósofos que o sucederam. Somos um mundo, experimentamos o entorno e o
colocamos na borda do eu. Vamos nos abrindo e descobrindo que aquilo que existe
não cabe no que pensamos. Contudo, isso que está além da consciência subjetiva nunca
se revela integralmente a ela, porque tem aspectos que a ultrapassam, embora
apareçam como parte da consciência.
Estamos
aprendendo a conviver com isso, o mundo parece algo para nós e somente o
entendemos assim, mas ele tem aspectos que não se limitam à fenomenalidade da
consciência, tem algo que vai além dela.
E
entre muitas coisas que ultrapassam o que pensamos, que está além do que imaginamos,
está o outro. Este outro que é mais do que somos capazes de pensar, que nunca
se enquadra no que esperamos. Contudo, esse outro sujeito não é um absolutamente
outro, como é a matéria em sua composição íntima. A matéria escapa a nossa apreensão, embora possamos dela
ter uma representação. Esse outro que não sou eu, mas que tem algo comum comigo
pode me ensinar muitas coisas.
Quando
viemos ao mundo integramos uma comunidade, nascemos numa família, pertencemos a
uma sociedade, isto é, nascemos nos relacionando. Logo na infância muitos de
nós experimentam o desagradável aperto nas bochechas, especialmente se são
vermelhas e redondinhas. É nossa entrada na sociedade, o aperto na bochecha é a
forma moderna de iniciação social. É o outro que emerge para apertá-la como
sinal de nosso reconhecimento com membros de um grupo. É o outro que também
presenteia, que sorri, que afaga, que se alegra com nossas peraltices.
À
medida que crescemos os relacionamentos ganham significado. Os outros deixam de
ser fonte de satisfação ou insatisfação, classificados conforme aliviem nossas
necessidades, nos distraiam ou aborreçam. Os outros têm nome, estabelecem
relações e ensinam a lidar com o entorno. Aprendemos a nomear as coisas,
aprendemos a pensar com o grupo, aprendemos a usar as referências linguísticas da
sociedade para descrever o que se passa conosco e a nossa volta.
A
descoberta do outro é momento fundamental da nossa relação com o mundo.
Descobrimos que ele nem sempre responde nossas expectativas, nem sempre faz o
que esperamos e muitas vezes faz o que não entendemos. O outro é liberdade e
ação, ele é diferente das coisas que funcionam com regularidade. Se ligamos um
computador ele oferece os programas instalados, os relógios marcam as horas, a
lâmpada se acende quando apertamos o interruptor e o filtro purifica a água. Se
essas coisas não funcionam como delas se espera é porque seu mecanismo se
corrompeu. No entanto, o outro não é assim, ele pode fazer algo diferente de
nossas expectativas sem se ter corrompido. Quão difícil é lidar com isso que
somos no outro, como é difícil aprender que os outros também têm um roteiro
singular de existência. Aprendemos a chamar isso de liberdade, uma experiência
que também vivo.
E
assim, quando nos distanciamos da relação simbiótica com os pais e adquirimos autonomia,
descobrimos que esse outro não atrapalha nossa existência com sua liberdade, ao
contrário, ele ajuda a me conhecer. Ele me ensina a ter paciência, pede que
supere o meu egoísmo e permite que eu construa minha singularidade nesses
relacionamentos.
Esse
outro é sexuado, ele é homem e mulher. Refiro-me apenas ao modo como ele se
sente e se apresenta para não entrar na desnecessária polêmica da
homossexualidade, que nada muda no que aqui falamos. É que homens e mulheres, embora
tenham papéis sociais que se definiram no desenvolvimento das sociedades,
adquiriram comportamentos singulares que lhes parecem naturais. Assim é o
capricho feminino na ornamentação do corpo e do lar, a dedicação da mulher aos
filhos, ou o esforço masculino de desenvolvimento da técnica e controle do
mundo. Pois bem, não interessa tratar dessas relações como subordinação ou
exploração, que ocorreram em períodos históricos definidos, mas realçar que no
encontro com esse outro vive-se a
maravilhosa experiência do amor. Essa é uma das mais importantes dimensões do
relacionamento, a descoberta do outro como objeto de amor.
Com
o amado ou amada surge uma comunidade de afetos, desejos, projetos e sonhos,
com ele ou ela a vida ganha gosto e alegria. Nos últimos anos esse núcleo
central de amor social vem mudando de perfil, mas não importa as transformações
pelas quais passa a família. Ela pode ter menor número de filhos, os parceiros
podem muito se preocupar com o desenvolvimento pessoal e profissional, eles
podem ter filhos de outras relações, se viverem uma comunidade de amor, o amado
ou amada oferecerá as mais importantes experiências humanas de tolerância,
dedicação e entrega. E há ainda a alegria dos filhos que surgem desse amor,
esses outros que não são extensão de nós, nem de nossos projetos, mas que não
deixam de ser uma parte de nós diferente de nós. Os filhos ensinam melhor que
todas as outras lições da vida, que os relacionamentos humanos não são
completamente estranhos, embora não se limitem ao que pensamos que sejam. O
amor aos filhos é um bom começo do amor que podemos desenvolver para com os
outros homens. Jesus disse que mesmo quem pratica o mal consegue dar boas
coisas aos filhos. E assim é, com os filhos é possível fazer boa experiência de
amor.
E
as relações familiares trazem a presença desse outro. Se seus desejos podem
entrar em conflito com os meus, é esse outro o que mais profundamente muda a
minha existência e o rumo dos meus instintos. Ele não é só quem integra minha
família, ele forma comigo uma comunidade de destino. Ele constrói páginas de
futuro quando juntos escolhemos o devir do nosso grupo. Ele permite viver a
experiência da transcendência, só possível porque partilhamos uma humanidade
comum. Podemos construir relacionamentos concretos, pessoais e diretos que nos
mantenham em nosso sentido pessoal, sem nos fechar egoisticamente em nós
mesmos.
E
entre os outros que existem no mundo pode-se descobrir um Outro extraordinário.
Aprendemos como sociedade a chamá-lo Deus (não importa a forma de entendê-lo)
porque Ele não é como os homens e mulheres que conhecemos. Contudo, a
experiência bíblica e nossa razão mostra que somente chegamos a esse grande
Outro, através dos homens e mulheres que encontramos.Talvez Deus seja, como a
matéria, um verdadeiramente Outro, porque nossas semelhanças são
insignificantes dada a sua transcendência.
Os
relacionamentos humanos possuem muitas dimensões, a jurídica, a política e a
esportiva, por exemplo. Contudo, é a experiência de amor que dá às relações pessoais
sua realidade mais alta. Porque o amor rompe com as regras escritas e acordadas
para facilitar a vida, o amor revoluciona os relacionamentos como revoluciona
as regras. Por isso, Jesus de Nazaré foi rejeitado na sua sociedade porque seu
amor aos outros não cabia nas regras que os homens criaram para viver e se
sentir confortáveis.