A descrição das relações
sociais de nosso tempo feitas por Bauman nos levam para um espaço social em que
o outro é pensado como objeto de prazer. Ele é o sujeito/objeto de boas
relações, mas fluídas, superficiais e efêmeras. No capítulo terceiro de Amor Líquido, Bauman nos pede para
pensar sobre essa realidade. Ele faz uma avaliação dessa realidade numa
perspectiva moral, considerando o compromisso com o outro como um fator
estruturante da vida civilizada. E o ponto de partida de sua reflexão é um
diálogo com Sigmund Freud para quem (id., p. 97): “a invocação de amar o
próximo como a si mesmo, dizia ele (em O
mal-estar da civilização), é um dos preceitos fundamentais da vida
civilizada.” Assim, um olhar na perspectiva moral nos leva a um lugar diferente
do que se encontra nos capítulos iniciais da obra. O ambiente social
contemporâneo nos coloca em conflito com o mandamento do amor ao próximo,
porque ele, aparentemente, contraria o que a psicanálise e a tradição
ocidental, em geral, nos ensinaram a pensar. No entanto, por traz do aparente
paradoxo há uma conciliação fundamental que pode ser formulada assim: para além
do amor próprio o amor ao outro é decisivo para a sobrevivência da humanidade.
Ele faz a vida do homem diferente da dos outros animais.
O amor-próprio nos vincula à
vida, nos habilita a defendê-la e nos dá força para realizar a empresa. Bauman
acreditou, como judeu fiel, que a vida vale a pena. Porém, ela pode, em algumas
circunstâncias, seguir na direção oposta aos propósitos de sobrevivência e avaliar
que algumas vidas nem sirvam para ser vividas. O fundamental é que o amor
próprio é fruto das relações humanas, já que tem origem no amor do outro. Ele o
explica (id., 100): “para termos amor próprio, precisamos ser amados. A recusa
do amor – a negação do status de
objeto digno de amor – alimenta a auto aversão. O amor-próprio é construído a
partir do amor que nos é oferecido pelo outro.”
Uma tal condição torna
preciosa a vida de todos os homens. Geralmente se mede o mal de uma ação pela
quantidade de pessoas que alcança. Assim, grandes males nascem de um movimento
que afeta muita gente, mas uma única pessoa atingida pode significar muito mal.
Isso porque ela pode amar e ser decisiva na vida de muitos. Logo a questão não
é de quantidade de pessoas atingidas, mas da extensão do mal perpetrado. Nesse
assunto Bauman dialogou com outro filósofo judeu genial: Ludwig Wittgenstein.
Ele reproduziu uma observação dele de que um ato é imoral não porque atinge
muitos, mas porque toca profundamente um só homem (id., p. 102): “nenhum clamor
de tormento pode ser maior que o clamor de um homem. Ou, mais uma vez, nenhum
tormento pode ser maior do que aquilo que um único homem pode sofrer”.
A modernidade abriu espaço para a brutalidade ser praticada sem culpa com a tese de algo razoável pode provocar um mal que não se deseja. Embora muitas vezes assim ocorra, a tese foi usada para justificar atos imensamente imorais como deixar crianças morrerem de fome num bloqueio comercial praticado numa guerra. Esta brutalidade, usada como justificação de muitas coisas, foi a que mereceu a reprovação de Wittgenstein (id., p. 102): “
O que Bauman não aprofundou
é a origem da indignação de Wittgenstein. O lógico tinha por base uma fé
religiosa que sustenta preocupações éticas o que justificou sua preocupação com
a aceitação da brutalidade e violência. Uma fé judaico-cristã orienta que todos
os valores servem à (id., p. 103): “vida humana e nada mais são que diferentes
fichas para a aquisição do único valor que torna a vida digna de ser vivida.
Este
capítulo do livro nos coloca, pois, diretamente face à questão moral e funciona
como um contraste ao que vemos ocorrer, mas especialmente aponta para o
reconhecimento de que a pessoa humana é o maior e o principal de todos os
valores, o que nos vincula à grande tradição dos modelos éticos ocidentais.