sexta-feira, 7 de maio de 2021

Antonio Paim, a pessoa e o mestre. Selvino Antonio Malfatti

 




I - O Encontro

                No Colóquio sobre Max Weber em Viamão, RS, em 1984, Antonio Paim foi o palestrante principal. Foi nessa ocasião que o conheci. Estavam presentes também, como palestrantes, o professor Ricardo Vélez Rodríguez e os finados embaixador José Guilherme Merquior (1941-1991) e o padre jesuíta português Francisco Videira Pires (†2002), entre outros. Esse Colóquio foi promovido pelo então Instituto Lindolfo Collor, sob os cuidados de Cezar Saldanha, professor de Direito Constitucional da Universidade de São Paulo (USP). Eu então era professor da Universidade Federal de Santa Maria e participava como co-coordenador do referido Colóquio que era dirigido a jovens militantes de partidos políticos do Rio Grande do Sul.

                Eu já conhecia Paim pelos seus escritos, mormente através do livro História das Ideias Filosóficas no Brasil, de sua autoria. A imagem que fazia de Paim era de uma inteligência brilhante e esperava ouvir uma personalidade firme, desenvolta, com raciocínio rápido e conclusivo. Quando Paim começou a falar, quase tive uma decepção. Era alguém que sugeria, levantava dúvidas, raciocinava sempre sobre hipóteses. Ele abordou a questão das formas de dominação de Max Weber. No entanto, não pude deixar de me sentir instigado pelo seu discurso. A impressão que tive foi de que, num turbilhão de ideias, Paim conseguia agarrar alguma e a jogava para nós.

                Merquior abordou a questão dos valores em Weber, Ricardo Vélez falou sobre o positivismo no Rio Grande do Sul e Videira Pires sobre a política e a religião. Os melhores momentos eram os debates, pois se estabelecia uma interação entre os palestrantes e a plateia. Era nesses momentos que Paim crescia. Ele se tornava então outra pessoa: contava anedotas, ironizava, sorria complacente. Os participantes aprovavam e ele se entusiasmava. Paim não se encaixava na formalidade, ele precisava de espaço livre. Aliás, mais tarde ele mesmo afirmou:  – “Não sou feito para ser monogâmico”.

                Embora, formalmente, a sessão terminasse, os debates continuavam no intervalo, no cafezinho, nas refeições e nas “rodinhas”. Numa delas, ouvi Paim comentar com Cezar Saldanha que o livro O Poder Moderador na República Presidencial, escrito por Borges de Medeiros (1863-1961), ainda não havia sido estudado a fundo por ninguém. Fiquei curioso. Perguntei a Saldanha se ele me conseguiria o livro. Prometeu-me para o dia seguinte. De posse do livro, não mais assisti às palestras e o fiquei lendo. Após a leitura, fui conversar com Paim.

                Na ocasião, ele era professor do Curso de Doutorado em Filosofia da Universidade Gama Filho (UGF) do Rio de Janeiro e eu buscava um tema para pesquisar no meu doutorado. Conversamos e ele me pediu para eu fazer um esboço de projeto. Trabalhei no anteprojeto durante todo dia e, à noite, nos encontramos.

                Recordo-me que Paim sentou-se numa classe, concentrou-se e passou, atentamente, os olhos no texto. Ora sacudia a cabeça para frente e para trás afirmativamente, ora balançava lentamente, da direita para esquerda, em forma de dúvida, ou rapidamente em sinal de desacordo. Após examinar o conteúdo, sugeriu alguns retoques e pediu para eu apresentá-lo na seleção de doutorado da Gama Filho. – “Pode dizer que eu serei seu orientador”. O projeto foi aceito e eu me matriculei no Doutorado, tendo como orientador Antonio Paim.

II - As Aulas

                A Universidade Gama Filho fica na Piedade, um bairro pobre da Zona Norte do Rio de Janeiro. O acesso mais prático é pelo transporte ferroviário. O trem da Central do Brasil que leva à Universidade passa por vários bairros: Maracanã, Engenho Velho, Engenho de Dentro, Méier, Deodoro e Piedade. O prédio central da Universidade está encravado numa encosta, embora seu campus esteja distribuído em diversos locais.

                Antonio Paim sempre chegava pontualmente às aulas. Vestia esporte. Sério e cordial se dirigia à sala de aula, acompanhado por nós. Éramos cinco naquela turma. Do Rio Grande do Sul, eu; dois de Minas Gerais; uma colega do Pará e outra do Rio de Janeiro. Todos atuavam como professores de universidades.

                Eu estava muito ansioso. Afinal teria aula com um verdadeiro filósofo. Embora tivesse tido bons professores no Curso de Filosofia, cinco deles se tornaram mais tarde bispos da Igreja católica, Paim, para mim, era peculiar porque não só ensinava, mas também escrevia o que ensinava. Além disso, era um filósofo de referência nacional.

                Em todos os encontros, antes de iniciar a aula, distribuía resumo em forma de esquema. Expunha o assunto em forma dialógica, isto é, apresentava as diversas opiniões sobre a questão, os pontos fortes e fracos de cada um, as incongruências, as diversas conexões que o pensamento possuía. Depois perguntava nossa opinião, começando então o debate. Da mesma forma que a exposição da aula, uma a uma das nossas posturas eram analisadas por ele.

III - As Leituras

                Paim tinha o dom de captar o ponto fraco de cada um de nós. Quando isso acontecia, ele marcava um seminário ou apresentação em aula de um autor ou livro e encarregava um de nós para fazer a exposição. Geralmente o encarregado era o que demonstrava o ponto fraco no assunto. Um ex-aluno do professor que, posteriormente, se tornaria um grande discípulo e colega do mestre, Ricardo Vélez Rodríguez, contou-nos que, certa vez, externara certas influências do pensamento tradicionalista da Igreja Católica. Paim não teve dúvidas e incumbiu-o de, na próxima aula, fazer uma apresentação sobre os dois livros de Kant.

                Sabendo que eu vinha da graduação de uma PUC, deu-me por tarefa a leitura e apreciação de Liberdade Acadêmica e Opção Totalitária, de sua autoria. Esse livro versa sobre a escalada totalitária, em surdina, que estava em curso no Departamento de Filosofia da Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio). O processo o vem à tona, quando o departamento censura um texto de Miguel Reale (1910-2006) que seria incluído numa coletânea de textos como subsídio à disciplina de História do Pensamento. A professora do Departamento de Filosofia da PUC, Anna Maria Moog Rodrigues, pede demissão da universidade por não concordar com a atitude da chefia do departamento. Com a chegada da questão à mídia inicia-se um grande debate, tanto dentro da universidade como fora, na imprensa escrita e falada.

                Paim acompanhou o desenrolar dos acontecimentos, recolhendo artigos, pronunciamentos, manifestações e publicou-os em forma de livro, com comentários críticos. Distinguiu as posições, as origens e as causas do modelo totalitário em curso naquela universidade. Mostrou que a origem estava na filosofia do padre jesuíta Henrique Cláudio de Lima Vaz (1921-2002) que tentara conciliar uma questão gnosiológica, unindo os clássicos, como Aristóteles (384-322) e Santo Tomás de Aquino (1225-1274), com os modernos Immanuel Kant e Georg Wilhelm Friedrich Hegel (1770-1831) no livro de sua autoria, Ontologia e História. Mais tarde, avança a tese de que a cultura é histórica e, portanto, relativa. O problema não está nessa conclusão em si, mas nas suas perspectivas práticas. A partir disso, Henrique Cláudio de Lima Vaz busca, no hegelianismo e marxismo, as ferramentas que levarão a um pensamento totalitário, através da proposta socialista.

                Ao tornar pública a questão, Paim conseguiu que se reorganizassem os defensores do pluralismo e o processo foi abortado. Após minha exposição, Paim me perguntou: – “O que você achou?” Respondi: “Constrangedor”. Paim retrucou: – “Constrangedor? Isso é pouco. Foi uma imoralidade”!

                Eu não poderia imaginar que, dois anos mais tarde, então como coordenador de curso de pós-graduação passaria por uma experiência semelhante no departamento de Estudos Políticos e Sociais de minha universidade.

IV - O Discípulo

                Antonio Paim e Ricardo Vélez Rodríguez se conheceram na PUC do Rio de Janeiro. O primeiro era professor e o segundo, aluno. Daquele dia em diante, Ricardo sempre foi o discípulo predileto do mestre e fazia-o por merecer. Talvez ninguém como ele tenha assimilado melhor os ensinamentos do professor Paim. Ricardo tinha mais uma qualidade: o dom da palavra, além da escrita. Era irônico, patético, eloquente, sugestivo, profundo, tinha senso comum, tudo dependia do momento. Paim sabia pensar. Ricardo entendia e sabia externar, falar. Ambos se complementavam perfeitamente. 

Ricardo era natural da Colômbia. Teve uma formação secundária e universitária dentro do meio católico. No Brasil, obteve o título de mestre pela PUC do Rio de Janeiro, com a dissertação que se tornaria livro: Castilhismo: Uma Filosofia da República, e o doutorado na Universidade Gama Filho, cujo resultado da tese se encontra na obra Oliveira Vianna e o papel modernizador do Estado brasileiro, ambos como aluno e com a orientação de Paim.

                Por isso, minha migração para a orientação de Ricardo não mudava em nada. Foi apenas uma continuidade, além de receber, extraoficialmente a orientação de Paim.

IV- Núcleo Congregativo.

O Curso de Mestrado e Doutorado de Pensamento Luso-brasileiro, fundado por Paim e outros colegas, constituía-se num núcleo congregativo do pensamento  culturalista nos moldes de Miguel Reale. Faziam parte como idealizadores e fundadores, primeiramente Antonio Paim, seus colegas portugueses Esteves Pereira, Caeiro, Eduardo Soveral e Braz Teixeira. Logo em seguida surge uma plêiade de novos idealizadores que levam adiante a idéia: Anna Maria Moog Rodrigues, Vicente Barreto, Aquiles Cortes Guimarães, Creusa Capalbo, Luiz Antonio Barreto, Leonardo Prota, Paulo Mercadante e Ricardo Velez Rodriguez entre outros. Do núcleo inicial e segunda geração emerge em todo Brasil novos líderes culturalista.  

Pode-se dizer que a difusão do pensamento filosófico luso-brasileiro encaminhou-se para duas direções: uma, ligada às universidades, manifestando-se principalmente na emergência de cursos de pós-graduação e outra no surgimento de entidades junto ás universidades como os centros de estudos: filosófico e político.

Destaca-se que em 25 universidades passou-se a ensinar filosofia brasileira, conteúdo totalmente desconhecido no Brasil antes da atuação de Paim e seu grupo de estudos.

Faleceu em 30 de abril próximo passado na cidade de São Paulo. Ele nasceu em 7 de abril de 1927, em Jacobina, na Bahia e se dedicou ao estudo da História das Ideias, Política e Filosofia, campos em que se defrontou com inúmeros problemas, sendo autor de obra extensa e variada. Na década de 50 cursou Filosofia na Universidade Lomonosov, em Moscou, e, posteriormente, fez novamente o curso na Faculdade Nacional de Filosofia, no Rio de Janeiro. Foi professor na Universidade Federal do Rio de Janeiro, na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro e na Universidade Gama Filho, aposentando-se da docência, em 1989. Na PUC-RJ organizou e coordenou o curso de mestrado em Pensamento Brasileiro. Na Universidade Gama Filho, juntamente com o Dr. Eduardo Abranches de Soveral, que veio para o Brasil depois da Revolução dos Cravos, implantou o doutorado em Pensamento Luso-Brasileiro.




5 comentários:

  1. Uma vida, uma história.

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  2. E a pessoa se confunde com o mestre,mas deixou muitas lições, cumpriu sua missão.

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  3. Este é o mestre,conhece seus liderados, mostra caminhos e tira o melhor deles.

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  4. Realmente foi merecedor do título, mestre tira o melhor dos seus pupilos.
    Uma vida dedicada a filosofia, todos ganhamos.

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  5. Não o perdemos, ganhamos sua história.
    Siga para outra vida.
    Pêsames.

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