domingo, 9 de junho de 2019

A EDUCAÇÃO INTEGRAL DO HOMEM NA FILOSOFIA DE MANUEL ANTUNES. Samuel Dimas, Professor auxiliar da Faculdade de Ciências Humanas da Universidade Católica Portuguesa.


Este artigo procura explicitar o sentido integral da educação apresentado na obra do Padre Manuel Antunes, que não visa apenas a instrução técnico-científica, mas sim a formação humana nas suas dimensões ética, estética, filosófica e religiosa. O teólogo e filósofo jesuíta recusa, por um lado, uma perspetiva puramente pragmática e utilitarista da ação humana, centrada no progresso da técnica, e recusa, por outro lado, uma perspetiva puramente fixista da vida humana, centrada nos hábitos e nos dogmas filosóficos, ideológicos e religiosos. Dessa maneira, considera que o objetivo da educação humana não é o homo mechanicus nem o homo romanticus, mas sim o homo misericors que se rege pelos valores universais de um humanismo moral e metafísico que identifique o ser do homem (antropologia) e proporcione o seu fazer ser (pedagogia). O homem misericordioso faz uma experiência sofredora da vida, no reconhecimento da ignorância, da finitude e da morte, pelo que encontra na renúncia e na compaixão as formas mais valiosas de educação e humanização. Palavras chave: educação, pedagogia, humanismo, misericórdia. 1.Introdução: para uma educação integral do homem O desenvolvimento cultural que todos desejamos nos planos ético, estético, filosófico, religioso e científico, para que o homem realize o seu projeto humanizador de forma integral, não é possível sem a educação e esta não se pode concretizar sem uma pedagogia. Consciente desta necessidade, o professor e mestre português Padre Manuel Antunes propõe uma educação que dê primazia à formação sobre a informação e que não reduza o sentido da vida humana ao desempenho econômico-científico e à eficácia da técnica. O homem realiza-se enquanto homem pela educação, mas que dimensões inclui esta humanização e de que saber precisa o homem para a concretizar no dinamismo do devir histórico? 

A arte da educação na unidade indissolúvel entre pensar, sentir e fazer Educar é fazer tomar o hábito ou o costume de alguma coisa, ou seja é edificar e formar nos valores culturais da comunidade em que se habita, sejam eles no plano da eficácia produtiva, sejam eles no plano estético, moral e religioso. O saber que humaniza não é apenas o da instrução utilitarista e pragmática, mas é o saber dos valores que traduz a realidade vital e essencial do homem. Como nos diz Manuel Ferreira Patrício, em diálogo como seu mestre Manuel Antunes, o saber que educa o homem e que o faz ser aquilo que é e deve ser não é apenas lógico-ontológico (ser), nem apenas axiológico ou normativo (dever ser), mas é também realizativo (fazer e transformar), no sentido de um saber 175 pragmático e realista de uma atitude responsável que exige firmeza e objetividade na decisão (gravitas), da piedade, no sentido de um vínculo interior ao divino e aos outros membros da comunidade familiar e social (pietas), da simplicidade, no sentido do reconhecimento do valor autêntico de cada pessoa e de cada coisa e do rigor normativo ajustado de acordo com a medida exata exigido por cada realidade (simplicitas) (ANTUNES, 2005, p. 105-106). Assim, considera Manuel Antunes que uma educação ou é integral ou não é educação, pelo que tem de ter em conta todas as aspirações do homem, incluindo as morais e as metafísicas. Em diálogo com Blondel, considera que a educação é a ação promotora e instauradora de valores, suscitando e conservando atos e formas, ideias e sentimentos, conteúdos e estruturas de humanização através de uma relação livre e intersubjetiva entre consciências. Sendo o homem modificável, a educação deve ser ativa para que o homem saiba construir o seu meio criando valores e assumindo responsabilidade perante os mesmos, promovendo não apenas o surgimento de grandes cientistas e técnicos, mas também de sábios e santos. Só mediante uma visão global do ser do homem se poderá escolher o método adequado para a sua educação (ANTUNES, 2005, p. 175-178). Se a ciência aponta para o saber, a arte aponta para o fazer, e a educação reside, pois, nessa arte de saber fazer bem o projeto de humanizar o homem, socorrendo-se, para tal, da pedagogia que operacionaliza estratégias e técnicas para concretizar esse objetivo. Mas Manuel Ferreira Patrício prefere usar o termo antropagogia para caraterizar esta arte teórica e prática de educar o homem na unidade de pensar aquilo que se faz e de fazer aquilo que se pensa: «(…) a antropagogia é a teoria e prática da educação do homem no horizonte de plenitude de sua humanidade» (PATRÍCIO, 2000, p. 76). 3.Educar para o homo misericors Que tipo de homem procura esta antropagogia? Manuel Antunes considera que o objetivo da educação é o homo misericors que se compadece, escuta e renuncia. Uma renúncia no sentido do amor cristão, que, que como nos diz Afonso Botelho, não significa a perspetiva pessimista gnóstica de abdicar do mundo que Deus criou e viu que era bom, mas a perspetiva otimista de uma aceitação livre e responsável da nossa experiência dramática da existência, que implica uma relativização dos bens materiais transitórios e uma adesão total aos bens definitivos de ordem ética e metafísica que têm na relação com a interioridade dos outros e com a transcendência divina o seu valor supremo (BOTELHO, 1951, p. 5). O homem da bondade e do serviço, da reconciliação e da indulgência, da aceitação e da compreensão, da escuta e da paciência, que se compadece com o sofrimento e dificuldade do outro, realiza-se na sua verdadeira humanidade e acede à via da transcendência divina em que essa humanização se plenifica (ANTUNES, 2005, p. 87). O caráter absoluto e divino da misericórdia está no facto de a sua essência não se alterar com as diferentes culturas e épocas, embora possa diferir na forma de se exteriorizar e concretizar: Aqui, manifesta-se distribuindo os ricos os seus bens pelos pobres; revela-se ali como o escudo do fraco e do oprimido; mais 176 além, surge como piedade universal pelos homens e pelas coisas; mais perto de nós, misericórdia pode ser sinónimo, no despojo pessoal, da promoção da justiça e da fraternidade entre os homens e entre os povos (ANTUNES, 2005, p. 87). O padre Manuel Antunes recorda que a misericórdia, a compaixão e a caridade têm a sua raiz no movimento do coração, que é símbolo da afetividade, suscitado pela miséria ou adversidade do outro. Assim, Deus é por excelência o sujeito de mi 177 alegados artificialismos da cultura e do progresso. O autor adverte para o perigo desta atualização das ideias de Rosseau e para a substituição da imagem fragmentada de um mundo mecânico e técnico em permanente dispersão pela imagem idílica e fascinante de um mundo natural orgânico e belo sem injustiças e sem constrangimentos, que tem como consequência a difusão de ideologias e utopias irrealistas e desajustadas à realidade. A tentação de regressar ao mito antiquíssimo da idade de ouro e à alegada pureza originária da ordem social e da organização religiosa de instituições, como o Cristianismo, ignora as dificuldades, turbulências e desordens dessas épocas e desconhece que vivemos num movimento de progressivo desenvolvimento cultural tendendo para uma vida mais harmoniosa que não se encontra no passado, mas sim no futuro, e cuja plenitude só será atingível na realidade escatológica trans-histórica. Reconhecemos nesta posição de Manuel Antunes uma recusa das configurações gnósticas e neoplatónicas da realidade que concebem a existência mundana como o resultado de uma queda e degradação de uma vida pré-existente perfeita que é preciso restaurar. O regresso à origem da história amanhecente deve servir apenas para renovar o compromisso atual com a energia desse espírito dinâmico e simples da juventude, pelo que o importante não é a reconstituição do passado, mas a descoberta da intuição originária fundante ainda despojada dos assessórios de usos e costumes que o tempo acrescentou. Apesar do abuso da técnica e do excesso de intelectualismo, o caminho não é o de regresso, mas sim de progresso para a criação de um novo estilo de vida e de pensamento assente na complementaridade entre a racionalidade, a imaginação e a emoção que evite alienação e promova a humanização (ANTUNES, 2005, p. 60-68). No seu entender, é a misericórdia que poderá restabelecer a unidade perdida da intuição auroral do projeto da criação, representada pelo mito de origem, elevando-nos para além da alienação e esvaziamento do império da técnica e da exploração irracional dos recursos pelo homo mechanicus (ANTUNES, 2005, p. 90). O regresso utópico e escatológico a uma atitude mística e contemplativa da beleza das criaturas e da instauração da justiça, na distribuição equitativa dos bens, já não pode ser feito sem a aliança da misericórdia com a técnica, da ecologia com a economia, da solidariedade com a política. Mesmo que isso signifique uma perda da eficácia na produtividade, encerra um ganho em valores mais importantes como a comunhão, a qualidade de vida e a limitação da violência, na reunião daquilo que o economicismo dispersou, o tecnicismo endureceu e o sociologismo massificou. Este encontro de sentido na História humana só é possível porque a misericórdia é, ao mesmo tempo, ideia e ação, pensamento e sentimento. 4.Uma Educação fundada na filosofia da Vida e da História que promova o espírito crítico Em contraposição com a filosofia platônica que firmava a verdade na realidade imutável e abstrata das ideias por distinção com a verdade aparente e ilusória da existência sensível, Manuel Antunes empreende uma filosofia da Vida e da História que defende uma evolução no dinamismo natural de crescimento e transformação cultural e recusa as seguintes perspetivas instaladas na tradição: a) recusa a mentalidade parmenidiana do esquematismo fixista e repetitivo das 178 ideologias e correntes alheias à mudança e ao progresso; b) recusa a mentalidade heraclitiana do esquematismo fluxionista e instável dos anarquismos sem leis e valores em ansiosa procura de permanente novidade e mutação científica e tecnológica que gera insegurança e desorientação; c) recusa a mentalidade revolucionária do esquematismo libertarista e voluntarista de certos movimentos, como o iluminismo e o racionalismo modernos, que defendem o niilismo e o relativismo; d) recusa a mentalidade revolucionária do esquematismo igualitarista e totalitarista de certos movimentos socialistas que de forma utópica imanentizam valores escatológicos apenas plenamente realizáveis no tempo supra-histórico; e) e recusa a mentalidade fanática e intolerante do esquematismo dogmatista, alheia à valorização da pluralidade e da diferença que se traduz pela imposição sentenciosa e pela justificação sofística com a estrita finalidade da eficácia (ANTUNES, 2005, p. 93-10). Como tal, Manuel Antunes defende a necessidade de uma educação que supere estes esquematismos, mitologias e ideologias provocados pela angústia e pelo medo e que desenvolva o espírito crítico, no reconhecimento de que estes esquematismos são categorias vazias e construções a priori sem conteúdo. Perante a diferença e a ameaça do desconhecido e do estrangeiro, o homem constrói esquemas conceptuais que o oriente e lhe dê segurança individual e coletiva, daí resultando práticas como o terrorismo ou o fixismo. Recordemos a destruição do patrimônio religioso e cultural por parte de fanáticos como os talibans. Cabe à educação a tarefa de superação da estreiteza destes esquematismos entregues ao capricho e ao desejo irracional, construindo uma nova mentalidade mais aberta, justa, compreensiva e misericordiosa (ANTUNES, 2005, p. 102) que atenda à necessidade vital e autêntica de cada pessoa em saber encontrar uma resposta de sentido para as suas inquietações mais profundas. Como refere Ortega y Gasset, só é homem aquele que se realiza autenticamente por íntima necessidade. Ora, o homem faz metafísica na procura de uma orientação radical para a sua situação dramática de desorientação e perdição existencial, procurando pelo sentido originário do ser e do saber acerca do ser e dos seres (GASSET, 2008, p. 564-565). Como afirma Manuel Antunes num diálogo implícito com o pensador espanhol, o sistema de educação deve abranger o conhecimento fatual empírico e experimental da ciência e o conhecimento valorativo da sabedoria filosófica e religiosa, não apenas pela aquisição extrínseca de informação, mas pela compreensão em profundidade da sua origem. Sem modelos e valores que o guiem no sentido e destino, o homem fica sujeito à anarquia e à desorientação: «Para agir e, principalmente, para agir de forma construtiva e criadora, é indispensável ao homem um mínimo de certeza e de confiança, de sentido do próprio destino e do destino da humanidade em geral» (ANTUNES, 2005, p. 157). 5. Para uma conciliação entre a ciência dos factos e a sabedoria dos valores e do sentido do destino do mundo e do homem Em consonância com a reflexão epistemológica contemporânea, o pensador português reconhece que nem a ciência, nem a filosofia nem a religião podem oferecer ao homem a verdade total porque esta só a Deus pertence. Nesse sentido, critica as posições de um certo infantilismo metafísico que, sob a 179 influência da exigência de verificação experimental e da exigência do dogmatismo ideológico, constituem um obstáculo ao educador que procura ser testemunho da sabedoria. Para que este trabalho seja facilitado perante as exigências da presente conjuntura cultural, é importante que tenha uma informação ampla da História e se deixe guiar por uma criatividade e audácia que não o intimide perante o futuro: «Conjugar o passado e o presente, a sabedoria e a ciência, as culturas e a cultura, a história e a prospectiva, o rigor e a compreensão, eis algumas dessas exigências» (ANTUNES, 2005, p. 159). A nossa cultura industrial, tecnológica e digital, concebida num espaço homogêneo e dinâmico sempre em expansão, exige uma educação melhor que não obedeça apenas ao princípio da eficácia, mas também ao princípio do dever ser, e que acompanhe a permanente inovação dos diversos quadros sociais num dinamismo ascensional de secularidade e de cultura renovadora e inventiva que supere a aceitação do passado e da tradição. Vivemos numa sociedade de relativa paz e de abundância, sob o magistério das Luzes e do Progresso da Ciência e da Técnica que procura minimizar o sofrimento e procura instaurar a justiça social, pela obediência aos valores da liberdade e da fraternidade, em que a educação é um fato, uma necessidade e um dever. A educação é um fato, porque sem educação o homem é apenas uma possibilidade, constituindo-se como uma das criaturas mais desprovidas da escala zoológica, tal como poderemos comprovar através da análise do caso das crianças que não foram educadas humanamente e adquiriram as caraterísticas da sua circunstância animal com grande atraso no desenvolvimento mental. É o meio humano, através de uma linguagem, que oferece os gestos, imagens, ideias e emoções, possibilitando a elevação a um nível superior da simples animalidade. A educação é uma necessidade, porque a humanidade não surge como um dado, mas sim como uma conquista e uma construção. A educação é um dever pessoal e social, porque sem ela a cultura torna-se desumanizadora, numa desordem intelectual e moral, que viola a dignidade da vida humana e o instaura na barbárie. Mas num mundo em que proliferam as ciências e as técnicas, os fatos e os dados, as teorias, as ideias e as emoções, parece que os sistemas tradicionais de educação já não dão resposta. Para quê educar? A educação não pode servir apenas para se ser um excelente profissional, mas tem de ter como objetivo o homem integral na particular atenção ao bem comum e à realização pessoal, não em conformismo e servidão, mas na realização de atos livres capazes de fazer surgir novas formas de cultura e novos sentidos da realidade que está em progressivo e inventivo desenvolvimento (ANTUNES, 2005, p. 178-180). 

2 comentários:

  1. Acreditamos que estamos num caminho sem volta, o futuro dirá.
    Ao futuro.

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  2. Educação é tudo, porisso a grande importância de investimentos na primeira infância.

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