I
- O Encontro
Conheci pessoalmente Antonio Paim em
1981. Foi num Colóquio sobre Max Weber (1864-1920) realizado na Faculdade de
Filosofia Ciências e Letras de Viamão, no Rio Grande do Sul. Ele era um dos
palestrantes.
Estavam
presentes também, como palestrantes, o professor Ricardo Vélez Rodríguez e o
finado embaixador José Guilherme Merquior (1941-1991) e o padre jesuíta
português Francisco Videira Pires (†2002), entre outros. Esse Colóquio foi
promovido pelo então Instituto Lindolfo Collor, sob os cuidados de Cezar
Saldanha, professor de Direito Constitucional da Universidade de São Paulo (USP).
Eu então era professor da Universidade Federal de Santa Maria e participava
como co-coordenador do referido Colóquio que era dirigido a jovens militantes
de partidos políticos do Rio Grande do Sul.
Eu
já conhecia Paim pelos seus escritos, mormente através do livro História das Ideias Filosóficas no Brasil,
de sua autoria. A imagem que fazia de Paim era de uma inteligência brilhante e esperava
ouvir uma personalidade firme, desenvolta, com raciocínio rápido e conclusivo.
Quando Paim começou a falar, quase tive uma decepção. Era alguém que sugeria, levantava
dúvidas, raciocinava sempre sobre hipóteses. Ele abordou a questão das formas
de dominação de Max Weber. No entanto, não pude deixar de me sentir instigado
pelo seu discurso. A impressão que tive foi de que, num turbilhão de ideias,
Paim conseguia agarrar alguma e a jogava para nós.
Merquior
abordou a questão dos valores em Weber, Ricardo Vélez falou sobre o positivismo
no Rio Grande do Sul e Videira Pires sobre a política e a religião. Os melhores
momentos eram os debates, pois se estabelecia uma interação entre os
palestrantes e a plateia. Era nesses momentos que Paim crescia. Ele se tornava
então outra pessoa: contava anedotas, ironizava, sorria complacente. Os participantes
aprovavam e ele se entusiasmava. Paim não se encaixava na formalidade, ele
precisava de espaço livre. Aliás, mais tarde ele mesmo afirmou: – “Não sou feito para ser monogâmico”.
Embora,
formalmente, a sessão terminasse, os debates continuavam no intervalo, no
cafezinho, nas refeições e nas “rodinhas”. Numa delas, ouvi Paim comentar com
Cezar Saldanha que o livro O Poder
Moderador na República Presidencial, escrito por Borges de Medeiros
(1863-1961), ainda não havia sido estudado a fundo por ninguém. Fiquei curioso.
Perguntei a Saldanha se ele me conseguiria o livro. Prometeu-me para o dia
seguinte. De posse do livro, não mais assisti às palestras e fiquei lendo-o.
Após a leitura, fui conversar com Paim.
Na
ocasião, ele era professor do Curso de Doutorado em Filosofia da Universidade
Gama Filho (UGF) do Rio de Janeiro e eu buscava um tema para pesquisar no meu
doutorado. Conversamos e ele me pediu para eu fazer um esboço de projeto.
Trabalhei no anteprojeto durante todo dia e, à noite, nos encontramos.
Recordo-me
que Paim sentou-se numa classe, concentrou-se e passou, atentamente, os olhos
no texto. Ora sacudia a cabeça para frente e para trás afirmativamente, ora
balançava lentamente, da direita para esquerda, em forma de dúvida, ou
rapidamente em sinal de desacordo. Após examinar o conteúdo, sugeriu alguns retoques
e pediu para eu apresentá-lo na seleção de doutorado da Gama Filho. – “Pode
dizer que eu serei seu orientador”. O projeto foi aceito e eu me matriculei no
Doutorado, tendo como orientador Antonio Paim.
II
- As Aulas
A
Universidade Gama Filho fica na Piedade, um bairro pobre da Zona Norte do Rio
de Janeiro. O acesso mais prático é pelo transporte ferroviário. O trem da
Central do Brasil que leva à Universidade passa por vários bairros: Maracanã,
Engenho Velho, Engenho de Dentro, Méier, Deodoro e Piedade. O prédio central da
Universidade está encravado numa encosta, embora seu campus esteja distribuído
em diversos locais.
Antonio
Paim sempre chegava pontualmente às aulas. Vestia esporte. Sério e cordial se
dirigia à sala de aula, acompanhado por nós. Éramos cinco naquela turma. Do Rio
Grande do Sul, eu; dois de Minas Gerais; uma colega do Pará e outra do Rio de
Janeiro. Todos atuavam como professores de universidades.
Eu
estava muito ansioso. Afinal teria aula com um verdadeiro filósofo. Embora
tivesse tido bons professores no Curso de Filosofia, cinco deles se tornaram
mais tarde bispos da Igreja católica, Paim, para mim, era peculiar porque não
só ensinava, mas também escrevia o que ensinava. Além disso, era um filósofo de
referência nacional.
Em
todos os encontros, antes de iniciar a aula, distribuía resumo em forma de
esquema. Expunha o assunto em forma dialógica, isto é, apresentava as diversas
opiniões sobre a questão, os pontos fortes e fracos de cada um, as incongruências,
as diversas conexões que o pensamento possuía. Depois perguntava nossa opinião,
começando então o debate. Da mesma forma que a exposição da aula, uma a uma das
nossas posturas eram analisadas por ele.
De
vez enquanto mesclava alguma anedota sobre o tema ou o autor. Lembro-me de uma,
quando comentava Augusto Comte (1798-1857). Após expor sua famosa teoria dos
três estágios da Humanidade e mostrar que nada tinha de positivo, pois era
apenas teórico, Paim concluiu:
–
Comte até que andava muito bem. Os três estágios tinham alguma coisa de
verdadeiro, principalmente se vistos de cima, globalmente. A perdição de Comte
começou quando conheceu a tal de Clotilde de Vaux (1815-1846). Aí, não dizia
mais coisa com coisa, pois passava o tempo todo só pensando “naquilo”...
As
aulas não tinham rigidez de horário. Quando Paim entendia que o assunto fora
suficientemente assimilado, distribuía as leituras para o próximo encontro e
nos retirávamos.
Eu
morava na Piedade para evitar gastos e perda de tempo com deslocamentos. Além
disso, a Universidade possuía a Biblioteca Central, bem como outras setoriais,
como a de Marcelo Caetano (1906-1980) e a de Ivan Lins (1904-1975). De modo que
tão logo terminava a aula, podia prosseguir minhas leituras e dar andamento à
elaboração da tese.
III
- O Abaixo-Assinado
Como
eu, a maioria de nós estava fazendo o doutorado em Filosofia da Gama Filho por
causa do professor Antonio Paim. Ele era especial. Estivera nas hostes
marxistas, e se “convertera” ao liberalismo. Como professor na Gama Filho,
professava a liberal democracia, algo muito incomum naquele período, pois o “normal”
entre professores universitários era o marxismo. Ele conheceu o marxismo na
teoria e na prática. Seu conhecimento teórico fora adquirido na Universidade de
Lomonosov, em Moscou e na Universidade do Brasil, atual Universidade Federal do
Rio de Janeiro (UFRJ), na década cinquenta. Na prática e na teoria, conheceu o
marxismo in loco. No entanto, foi
exatamente a vivência prática num regime comunista que o fez mudar teoricamente
de ideologia.
Ele
nos contou numa aula que, na Rússia, necessitara consultar Immanuel Kant
(1724-1804) para entender determinada questão. Foi à Biblioteca e solicitou o livro,
a Crítica da Razão Pura e a Crítica da Razão Prática. Surpreso,
soube que tais livros não poderiam ser consultados. Argumentou que era
estudante de filosofia da universidade e a resposta foi que somente poderia ter
acesso aos livros com a permissão Partido Comunista. Decepcionado, retirou-se.
A partir desse fato, aumentou ainda mais sua curiosidade em relação a Kant. De
outra maneira, conseguiu o livro. Após lê-lo, chegou a uma conclusão. A
ideologia marxista não tinha nada de científico, era apenas questão moral.
Assim, abandonou o marxismo e a Rússia.
Antes
de nossas aulas, nós nos reuníamos em frente ao balcão da secretaria,
aguardando o professor: como as crianças hoje esperam a “profe.”! Num
determinado dia, ouvimos uma das funcionárias da secretaria falar, quase
gritando: – “Porque o senhor, professor Paim, é um grosso”!
Entreolhamo-nos.
O sangue nos subiu à cabeça. Cada um se perguntava como se atrevia alguém a
dizer aquilo, logo para o professor Paim. Tomamos, naquele momento, uma
decisão: – “Vamos fazer um abaixo-assinado, pedindo o afastamento da funcionária”.
Se
fizemos ou não o abaixo-assinado não importa. O certo é que pedimos para sermos
recebidos pelo Coordenador, um professor com sotaque francês carregado. Dissemos-lhe:
– “Não admitimos ofensas ao professor Paim. Queremos o afastamento da secretária.
Se nossa solicitação não for aceita, nós todos nos retiraremos do curso”.
Poucos
dias depois, a funcionária não estava mais na secretaria.
IV
- As Leituras
Paim
tinha o dom de captar o ponto fraco de cada um. Quando isso acontecia, ele marcava
um seminário ou apresentação em aula de um autor ou livro e encarregava um de
nós para fazer a exposição. Geralmente o encarregado era o que demonstrava o
ponto fraco no assunto. Um ex-aluno do professor que, posteriormente, se
tornaria um grande discípulo e colega do mestre, Ricardo Vélez Rodríguez,
contou-nos que, certa vez, externara certas influências do pensamento
tradicionalista da Igreja Católica. Paim não teve dúvidas e incumbiu-o de, na
próxima aula, fazer uma apresentação sobre os dois livros de Kant.
Sabendo
que eu vinha da graduação de uma PUC, deu-me por tarefa a leitura e apreciação
de Liberdade Acadêmica e Opção
Totalitária, de sua autoria. Esse livro versa sobre a escalada totalitária,
em surdina, que estava em curso no Departamento de Filosofia da Universidade
Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio). O processo o vem à tona, quando o
departamento censura um texto de Miguel Reale (1910-2006) que seria incluído
numa coletânea de textos como subsídio à disciplina de História do Pensamento.
A professora do Departamento de Filosofia da PUC, Anna Maria Moog Rodrigues,
pede demissão da universidade por não concordar com a atitude da chefia do
departamento. Com a chegada da questão à mídia inicia-se um grande debate,
tanto dentro da universidade como fora, na imprensa escrita e falada.
Paim
acompanhou o desenrolar dos acontecimentos, recolhendo artigos,
pronunciamentos, manifestações e publicou-os em forma de livro, com comentários
críticos. Distinguiu as posições, as origens e as causas do modelo totalitário
em curso naquela universidade. Mostrou que a origem estava na filosofia do padre
jesuíta Henrique Cláudio de Lima Vaz (1921-2002) que tentara conciliar uma
questão gnosiológica, unindo os clássicos, como Aristóteles (384-322) e Santo
Tomás de Aquino (1225-1274), com os modernos Immanuel Kant e Georg Wilhelm
Friedrich Hegel (1770-1831) no livro de sua autoria, Ontologia e História. Mais tarde, avança a tese de que a cultura é
histórica e, portanto, relativa. O problema não está nessa conclusão em si, mas
nas suas perspectivas práticas. A partir disso, Henrique Cláudio de Lima Vaz
busca, no hegelianismo e marxismo, as ferramentas que levarão a um pensamento
totalitário, através da proposta socialista.
Ao
tornar pública a questão, Paim conseguiu que se reorganizassem os defensores do
pluralismo e o processo foi abortado. Após minha exposição, Paim me perguntou:
– “O que você achou?” Respondi: “Constrangedor”. Paim retrucou: –
“Constrangedor? Isso é pouco. Foi uma imoralidade”!
Eu
não poderia imaginar que, dois anos mais tarde, então como coordenador de curso
de pós-graduação passaria por uma experiência semelhante no departamento de
Estudos Políticos e Sociais de minha universidade.
V
- O almoço
Um
dia, após a aula, o professor Paim se aproximou de mim e disse: – “Domingo, vai
almoçar comigo”.
Eu
já sabia do que se tratava. Era sobre minha tese.
Como
eu estava no Rio de Janeiro exclusivamente para fazer o Doutorado, procurava
adiantar as leituras de minha tese, além das específicas de cada disciplina.
Como já foi referido, minha tese versaria sobre o Poder Moderador em Borges de
Medeiros. Após ler o que o professor Paim e professor Ricardo Vélez escreveram
sobre a questão, procurei fazer uma contextualização histórica do momento. Tive
então de me adentrar nos fatos históricos do período. Com isso, percebi a
magnitude da crueldade da Revolução Federalista no Rio Grande do Sul.
Primeiramente, defrontaram-se os partidários de Júlio de Castilhos (1860-1903) e
Gaspar da Silveira Martins (1835-1901) e, mais tarde, os de Borges de Medeiros
e Joaquim Francisco de Assis Brasil (1857-1938). De um lado, estavam os
chimangos, positivistas, e de outro os maragatos, os liberais. À medida que
avançava na leitura dos acontecimentos, uma verdadeira repulsa tomava conta de
mim e eu ia perdendo o interesse pelo tema. As cenas de degola eram
corriqueiras, de ambos os lados. A ferocidade e frieza dos castilhistas
simplesmente me enojavam. Os que caíam nas mãos dos adversários eram
encurralados em mangueiras, um a um, laçados e degolados. Isso, muitas vezes,
acontecia diante das famílias, na presença de esposa e filhos. Por isso, toda
vez que encontrava com Paim, manifestava-lhe meu desagrado pelo tema.
No
domingo, fui de trem até o Méier e, de lá, de ônibus até a Zona Sul. No Leme,
dirigi-me ao 2º andar e toquei a campainha. – “Olá! Você está bem? Entre”. –
disse Paim.
Depois
do almoço, conversamos bastante. Paim me perguntou sobre as universidades do
Rio Grande do Sul, sobre os partidos políticos, governadores, prefeitos e
deputados. Eu fiquei impressionado como ele conhecia detalhes sobre o Rio
Grande, mormente na política. Após expor-lhe as razões sobre meu desagrado
quanto ao tema da tese, ele me falou:
–
Você pode mudar de contexto, sem mudar de tema. Por que não faz sobre o Poder
Moderador, consagrado na primeira constituição de 1824, no Brasil. Nela, como você
verá, a proposta é liberal, pois a intenção é salvaguardar a nação como um
todo, através de uma representação suprapartidária.
Respondi-lhe
que achava viável, mas que me desse um tempo para fazer uma prévia exploração
sobre a questão. No entanto, já no meu retorno, estava decidido a mudar e
aceitar a sugestão de Paim.
VI
- Transparência
Antonio
Paim intuía inteligência e a acolhia. O contrário também ocorria. Parecia que
imantava as pessoas. Ao natural, os que se aproximavam dele sentiam-se
atraídos. Nunca censurava, mas cobrava coerência de todos.
Uma
das pessoas mais caras e conceituadas para Paim era o professor português Eduardo
Abranches de Soveral (1927-2003). Esse não só fazia parte do corpo docente,
como ele e Paim foram os idealizadores do Curso em Pensamento Luso-Brasileiro.
Soveral nasceu em Mangualde, Portugal, no mesmo ano que o professor Paim,
doutorou-se em filosofia na Faculdade de Letras da Universidade do Porto.
Exerceu suas atividades docentes nessa universidade por vários anos. Inseriu-se
no pensamento moderno, estudando Blaise Pascal (1623-1662) e John Locke
(1632-1704). A Revolução dos Cravos, em Portugal, a 25 de abril de 1974,
enveredou para o comunismo. A partir de então, teve início em Portugal um clima
de intolerância e ódio contra tudo que não fosse de acordo com a ideologia
comunista. Soveral, que era um acadêmico e preferiu a neutralidade, foi um dos
primeiros atingidos pela ação dos revolucionários. Conforme diz Paim: – “Soveral
não suportou o clima de intolerância e perseguição mesquinha, emigrando para o
Brasil”. A amizade entre os dois foi aumentando até culminar com a criação do
curso de Doutorado, em 1989, na Universidade Gama Filho.
Todos
nós apreciávamos as aulas do professor Soveral. Ele nos fazia passear no mundo
das ideias. Conseguia estabelecer correlações entre pensamentos aparentemente
contrários, bem como percebia e mostrava as antinomias de reflexões
supostamente afins.
Numa
de suas aulas, no intervalo, alguém falou que, em Portugal, se escolhiam os
sobrenomes pelo local em que a pessoa fora concebida. É óbvio que nossa
imaginação começou a funcionar, trazendo os mais excêntricos sobrenomes. Até
mesmo onde Soveral fora concebido. Entramos para sala de aula ainda rindo de
nossa fértil imaginação. Soveral percebeu nosso alvoroço e perguntou o que
tinha acontecido. Depois de relutar um pouco, alguém do grupo lhe contou. – “Isso
seria impossível comigo, disse ele, porque, em Portugal, ‘abrantes’ é um
arbusto muito claro, transparente. Não daria para se esconder”...
VII
- O Capitulo I
Entre
o projeto e a elaboração da tese, há um espaço um tanto incerto, mormente nas
ciências humanas. Qual o fio de luz vermelha que nos guiará entre as centenas
de alternativas? Entre elas, está a do orientador, uma das mais significativas.
Minha
primeira opção foi dar um sentido constitucional ao Poder Moderador contido na
Constituição Brasileira de 1824, isto é, explicá-lo pelas funções a ele
atribuídas pela própria Constituição. Dessa forma, procurei os melhores
constitucionalistas e as justificativas apresentadas pelos próprios
constituintes que haviam cogitado sua inserção na Constituição por influência
de Silvestre Pinheiro Ferreira. Convicto, apresentei ao professor Antonio Paim
meu primeiro capítulo da tese. Ele deu uma olhada superficial e disse: – “Isto
é tese de doutorado?” E me devolveu o trabalho.
Fiquei
surpreso e desapontado. Perguntava-me em que teria falhado, qual era problema,
o que deveria corrigir? Parti para outra hipótese: a emergência histórica do
Poder Moderador na experiência inglesa. O Poder Moderador seria o poder neutro
do rei perante os conflitos partidários.
Refiz
todo o capítulo I, dando-lhe uma interpretação sob o viés histórico.
Custaram-me mais três meses. Naquele tempo não havia computador com Word, era
tudo escrito, primeiro, manualmente e, depois datilografado. Confiante,
apresentei ao professor Paim. Ele novamente deu uma olhada e disse: – “Melhorou
um pouco”.
Comecei
então não só a me preocupar, mas também a me irritar. Afinal, o que ele estava
querendo? Resolvi explicar o Poder Moderador via sociologia. A sociedade
brasileira não possuía um corpo de cidadãos aptos a exercerem livremente a
cidadania e, por isso, era necessário criar uma instância protetora. João Camilo
de Oliveira Torres (1916-1973) foi meu fio condutor nessa hipótese.
Entreguei
novamente o meu primeiro capítulo para Antonio Paim, meu orientador. Após
alguns dias, ele me entregou o trabalho e disse: – “Você não está num curso de
Sociologia, mas de Filosofia”.
Foi
uma “marretada” para mim. Peguei o trabalho e saí atordoado. No caminho de
volta ao apartamento, tomei a resolução: iria desistir. Não fazia sentido eu
estar longe da família, passando trabalho para receber, em troca, três recusas
consecutivas do meu trabalho. Cheguei em casa, liguei para a Varig, perguntando
se ainda havia lugar para o Corujão da meia-noite para Porto Alegre. A resposta
foi positiva. Botei meus pertences na mala, acertei meu aluguel e parti.
Tive
que pousar em Porto Alegre. De manhã, de ônibus fui para Santa Maria. No
trajeto, de aproximadamente, quatro horas, surgiu-me uma ideia que, pouco a
pouco, tomou conta de mim. Peguei um lápis e comecei a escrever, escrever, sem
parar, apesar da dor de cabeça. Cheguei em casa, tranquei-me no escritório e
continuei a escrever. Parava só para as refeições. Domingo, à tarde, parei.
Passei para máquina de datilografia e escrevi tudo de novo. Quando terminei,
resolvi voltar para o Rio de Janeiro. Entreguei, novamente, meu primeiro capítulo
ao professor Paim.
No
outro dia, após a aula, ele me chamou e disse:
–
Selvino, nem todos os que pedem para eu orientar, eu aceito. Nem todos aos que
eu oriento, dou meu aceite. No entanto, àqueles que eu aprovo, eu garanto.
Agora sim, está ótimo. É só seguir.
Levitei.
VII
- O Imune
Um
dos amigos mais caros a Antonio Paim era Ubiratan Borges Macedo (1937-2007). Sua
pessoa transbordava energia, esparramava ao seu redor uma alegria esfuziante,
falava com as mãos. Ubiratan era do Paraná, Curitiba. Formado em Direito e Filosofia,
doutorou-se em 1984, antes fizera Pós-graduação em Lovaina, Bélgica. Vinha do
mundo católico. Discípulo de Marcelo Caetano, dizia-se um católico liberal.
Ubiratan
era companheiro indispensável nos momentos de descontração, nas
confraternizações dos professores e doutorandos. Nesses encontros, conseguia-se
saber justamente aquilo que o professor não pode dizer em sala de aula.
Podia-se falar à vontade, opinar a favor de algo, discordar, enfim, uma dinâmica
libertária.
Num
desses encontros, Paim e Ubiratan conversavam sobre uma turma na universidade.
Comentavam que ninguém escapava da doutrinação de um determinado professor. Ele
convidava os alunos para as festinhas e os doutrinava para a ideologia
comunista. Ubiratan perguntou ao professor Paim:
–
Paim, você se lembra do fulano de tal?
–
Claro.
–
Foi o único que se escapou da doutrinação do professor.
–
Lembra-se por quê? Paim perguntou.
–
Evidente. Já chegava bêbado às festinhas e de nada adiantava falar alguma coisa
para ele hoje, pois amanhã já havia esquecido tudo. Era imune à doutrinação.
Paim
era um missivista perfeito. Ele não só respondia a todas as cartas, como também
comentava, completava, corrigia ou elogiava o interlocutor. Ora bilhetes
manuscritos que nem Champollion decifrava, ora longas missivas datilografadas
discorrendo, exaustivamente, sobre o assunto. Esse era o Paim missivista. Respondia
sempre. E não gostava de quem não respondesse a alguma carta sua ou
correspondência por ele enviada. Lembro que, certo dia, em aula, opinou sobre
correspondência enviada por ele e não respondida pelo destinatário. Comentou: –
“Podia ao menos dizer se está vivo ou morto”.
Eu
escrevia muito ao professor Paim e recebia cada carta que era um verdadeiro
artigo. Ele esmiuçava tudo, indicava bibliografia, fazia comentários, tirava
conclusões ou levantava hipóteses.
Quando
ele escrevia à máquina, eu dava graças a Deus. Devia ser uma Remington pela
letra. Se escrevesse de próprio punho, só ele e Deus saberiam o conteúdo. De
próprio punho, escrevia bilhetes. Então, éramos eu, minha esposa, filhos e
colegas tentando decifrá-los. Quando conseguíamos, dávamos um: “viva Champollion”.
Se
pensarmos que eram dezenas os orientados por ele, sobre os mais diversos temas,
podemos ter uma ideia da atividade de Paim como missivista. Uns ocupavam-se de
questões éticas, e então, ele indicava leituras de Weber e Kant. Para outros,
sobre questões metafísicas, ele indicava Edmund Husserl (1859-1938), para os de
questões teológicas, indicava Baruch Spinoza (1632-1677), àqueles, como eu, que
tratavam de política, então ele os orientava à leitura de John Locke, Silvestre
Pinheiro Ferreira (1769-1846), entre outros. Podia-se dizer que Paim era
polivalente. Indicava caminho na economia, ética, moral, gnosiologia e outras.
Retribuição pecuniária? Nem pensar. Ao contrário, pagava para trabalhar. No
entanto, o que se via era a satisfação estampada nos seus olhos quando alguém
progredia. Era sua recompensa: a suprema contrapartida.
Paim
era movido por estímulos morais e éticos. Ele era tudo o que Kant e Weber
imaginaram no campo da moral e da ética. O reverso completo do estimulo
econômico, na teoria e na prática.
Estavam
findando minhas férias do primeiro ano do curso. Recebi uma carta. No
remetente: Antonio Paim. Como sempre abri com sofreguidão:
Caro
Selvino:
Por
motivos que não vêm ao caso, demiti-me da Gama Filho. Você terá que procurar
outro orientador. Sugiro o Ricardo.
Abraços:
Antonio Paim.
P.S.
Você pode continuar a contar comigo.
VIII
- O Discípulo
Antonio
Paim e Ricardo Vélez Rodríguez se conheceram na PUC do Rio de Janeiro, o
primeiro era professor e o segundo, aluno. Daquele dia em diante, Ricardo
sempre foi o discípulo predileto do mestre e fazia-o por merecer. Talvez
ninguém como ele tenha assimilado melhor os ensinamentos do professor Paim.
Ricardo tinha mais uma qualidade: o dom da palavra, além da escrita. Era
irônico, patético, eloquente, sugestivo, profundo, tinha senso comum, tudo dependia
do momento. Paim sabia pensar. Ricardo entendia e sabia externar, falar. Ambos
se complementavam perfeitamente. Ricardo era natural da Colômbia. Teve uma
formação secundária e universitária dentro do meio católico. No Brasil, obteve
o título de mestre pela PUC do Rio de Janeiro, com a dissertação que se
tornaria o livro: Castilhismo: Uma Filosofia
da República, e o doutorado na Universidade Gama Filho, cujo resultado da
tese se encontra na obra Oliveira Vianna
e o papel modernizador do Estado brasileiro, ambos como aluno e com a
orientação de Paim.
Por
isso, minha migração para a orientação de Ricardo não mudava em nada. Foi
apenas uma continuidade, além de receber, extraoficialmente a orientação de
Paim. A época, eu trabalhava direto na minha tese. Na Biblioteca Nacional,
pesquisando as atas microfilmadas da Constituinte de 1823, na Gama Filho, os
livros referentes aos primeiros escritos liberais no Brasil, principalmente
Silvestre Pinheiro Ferreira, que trata do Poder Moderador. Em nível ocidental,
com o inglês John Locke, que aborda o Poder de Prerrogativa, e franco-suíço Benjamim
Constant (1767-1830) propondo um quarto poder com o poder Real. Procurava
também ver como de fato funcionara esse poder no período de Dom Pedro II
(1825-1891), nas grandes questões enfrentadas pelo Brasil, na época: Guerras,
Escravatura, Igreja e Estado. Depois verifiquei o grande debate que acontecera
a respeito do Poder Moderador entre liberais e conservadores. Quando pensei que
concluíra, Ricardo me insinuou:
–
Você não quer estudar o Poder Moderador do Borges de Medeiros?
–
Não, por favor, enfrentar o positivismo, não! Disse eu. – Quando fizer o
concurso para professor titular – prossegui – falarei sobre Borges de Medeiros.
Em
setembro de 1984, apresentei minha tese.
Quando,
ainda hoje, reflito sobre Antonio Paim não saberia dizer qual faceta de sua
personalidade seria mais admirável: o mestre ou a pessoa? Como mestre, penso
que a partir da década de 1980, no Brasil, dificilmente alguém o iguala. Como
pessoa, para quem o conheceu, incomparável. Diante dele, todos eram pessoas.
Incrivelmente detalista,uma leitura agradável.
ResponderExcluirMuito bom, belas histórias, amizades verdadeiras seladas pela admiração e respeito.
ResponderExcluirAinda bem que seu professor abandonou o marxismo, sujeito inteligente este Paim, grande mestre.
ResponderExcluirEsta parte de nossa história realmente é derramamento de sangue com banditismo, sofrimento total.
ResponderExcluirUma linda história, a persistência foi muito importante, quantas vezes desistimos,não somos persistentes.
ResponderExcluirA importância de um orientador, a diferença é a formação do profissional outros tempos.
ResponderExcluirTemos sorte quando encontramos pessoas tão especiais, ao mestre com carinho.
ResponderExcluirPessoas especiais que nos levam a continuar, mesmo nos sugando, estão tirando o melhor de nós.
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