Magnífica
Reitora Valéria Kemp
Senhores
pró-Reitores, colegas professores, caros pais e familiares, queridos alunos a
quem me dirijo neste momento de conclusão do curso.
1.
Começo recordando. Era dezembro de 1981. Éramos pouco mais que trinta colegas na
alegria de concluir o ensino universitário. No velho teatro do campus Dom Bosco, com suas cadeiras de
madeira, suas paredes amarelas, portas abertas para o pátio, tela suspensa
sobre o palco enfeitado, diante da congregação reunida, nós nos apresentamos. Havia
naquela hora um clima de ansiosa expectativa. Soprava o vento quente das noites
de verão, acima do pátio o céu estrelado e poucas nuvens formavam a moldura de
um dia mágico que terminava. Ele fora precedido de uma véspera de abraços e de um
emocionante almoço de despedida. Nunca esqueci o olhar de cada colega naquela
hora de despedida. Todos estavam ali de corpo e alma. Começar recordando aquele
momento inesquecível para mim foi a melhor forma que encontrei de introduzir esse
discurso. Acredito que esse momento seja
para vocês tão feliz quanto foi para mim aquele dia de dezembro de 1981. Vivíamos,
melhor dizendo, um misto de alegria, apreensão e tristeza, felizes pela conclusão
dos estudos, ansiosos pelo início da vida profissional e tristes pela separação
irremediável dos colegas. E havia mais razão para essa mistura de sentimentos,
aqueles colegas que havíamos conhecido adolescentes e estavam então crescidos
estariam longe de nossos olhos em poucas horas. Dificilmente nos encontraríamos
novamente, pelo menos todos nós. Previsão concretizada, mesmo nos encontros de
turma sempre faltaram alguns e hoje nem todos estão mais entre nós. E se antes sem
dificuldade podíamos escutar todos eles, depois da formatura já não era mais possível.
Ficou hoje a dor da ausência dos que ficaram na memória. E por isso, em meio a alegria de nossos pais e
familiares, da sensação de dever cumprido, corria uma lágrima escondida nos
olhos já saudosos pela despedida que se aproximava.
2.
Janeiro de 2015. Encontram-se vocês neste teatro como turma pela última vez, com o desafio próximo de
trabalhar ou continuar os estudos. De todo modo, o que os espera agora que
deixam a graduação universitária para se apresentarem à sociedade como
professores de Filosofia? Que mundo os aguarda? Já não a guerra fria, o mundo
pós Segunda Grande Guerra, os tempos da ditadura, como foi o mundo encontrado
por minha turma. Vocês encontrarão um mundo novo, um século novo, um milênio
novo. Um mundo com outros problemas e dificuldades. Um mundo onde as guerras
setoriais substituíram as guerras mundiais, um mundo com a nova família
construída mais pelo afeto que pelo sangue, um mundo com nova composição
política, com novos países, um mundo em que nosso país ainda permanece mais à
margem que no centro dos grandes acontecimentos. Um mundo em que explodiu o
vício da droga e a violência urbana, no qual ressurgiu o terrorismo religioso,
onde reapareceu o fanatismo religioso que escraviza ao invés de libertar. Um
mundo onde se corta cabeça das pessoas em nome da fé. Um mundo assim precisa de
Filosofia.
3.
E para esse país que espera tanto e precisa tanto de seus jovens, o que vocês
podem oferecer? É hora de se perguntarem o que farão pela sociedade que lhes pagou
o estudo, como colaborarão com aqueles que com o suor do seu imposto mantiveram
abertas as portas da universidade, custearam as bolsas que receberam, encheram
de livros a biblioteca onde pesquisaram, pagaram a limpeza do ambiente,
ajudaram nas viagens de estudo que vocês fizeram. O que vocês podem realizar como
professores de Filosofia para esse nosso país e seu povo? O principal da missão
de vocês parece ser levar para as escolas a fé na razão e na capacidade humana
de respeitá-la, mesmo quando os fatos vividos, a irracionalidade e a violência sugerem
que devemos perder as esperanças na humanidade e no futuro. Um país em que se
tortura crianças, em que se mata com a facilidade que hoje vemos, onde os
velhos não são objeto de cuidado, onde a diferença social coloca alguns à margem
da dignidade. Não há dúvida, esse país precisa de Filosofia. Necessita cultivar
os produtos da inteligência, incluída a inteligência prática da moralidade.
4.
Vocês são chamados a refletir nas escolas e fora delas sobre a vida e seu
sentido, a dar à realidade um sentido e a falar de esperança para nossos jovens.
Viver é experiência que compartilhamos com as plantas e animais. A nossa vida,
contudo, tem algo diferente dessas vidas e a Filosofia retrata esta
singularidade. Vocês estudaram o que a tradição filosófica pensou de nossa
existência, pelo menos o mais importante. Pode ser que a algum homem possa
parecer possível deixar passar a vida como se ele fosse um pé de feijão
germinando nos dias de sol e chuva. No entanto,
temos experiência de que a vida humana não é o crescimento mecânico e
inconsciente do feijão, ela implica em pontos de perspectiva e um sentido. E
vocês terão que trabalhar esses assuntos com seus futuros alunos. A referência
aos grandes pensadores da humanidade que vocês estudaram é o instrumento para fazer
isso. E nossos jovens vão precisar de vocês, a nossa escola precisa de seus
professores filósofos. Nossas crianças precisarão aprender a viver uma vida
singularmente humana, a olhar o outro com respeito, aprender não só o conteúdo
das unidades pedagógicas, mas o significado da ciência e do seu uso, entender
os limites do homem, aprender a conter os próprios impulsos e cultivar valores.
Enfim, a levar as lições da Filosofia para o dia a dia. E quem de vocês não for
para a escola deverá fazer da sociedade seu objeto de atuação e refletir
diariamente sobre o sentido de uma vida autenticamente humana para essa nossa sociedade
tão carente de humanidade.
5.
Voltemos ao ponto de perspectiva que falamos atrás, o que ele é? Um tal ponto é
um momento especialíssimo da nossa existência. Temos poucos deles durante
nossos dias nessa terra. As pessoas mais privilegiadas talvez experimentem umas
quatro ou cinco ocasiões assim. Esses momentos especiais são aqueles nos quais
tudo o mais vivido parece adquirir uma razão que aparentemente não tinha. Que
melhor exemplo de um momento desses que o batismo de Jesus de Nazaré. Ele viveu
um momento de perspectiva quando foi batizado por João e saiu transformado das
águas do Rio Jordão. Naquele momento iniciou sua trajetória de rabino e
profeta, deixando para traz a vida de carpinteiro e construtor de cidades que o
ocupara antes de se tornar um mestre da humanidade, o filho de Deus na fé de milhões
de homens.
6.
Ocorre uma mudança semelhante na vida quando deixamos um emprego seguro, mas
que não realiza para viver o sonho de um trabalho libertador; ou superamos um
relacionamento conveniente, mas que não nos faz feliz; ou ainda quando
arriscamos morrer por algo ou alguém, mas sem o que ou quem a vida não teria gosto. A rigor, o ponto de perspectiva mais
importante é o momento da morte. Nesse momento tudo o que foi feito pode ser
olhado de traz para frente, naquele instante em que a vida vivida revela seu
ponto de chegada. Nessas ocasiões extraordinárias, o que fazer diário, as
escolhas aparentemente banais como ir aqui ou ali para almoçar, tomar café ou
chá, estudar nessa escola ou naquela, ganham importância que aparentemente não
tinham quando foram vividas. As escolhas feitas tornaram-se parte de nós, mesmo
que não tivéssemos consciência do fato quando as fizemos. Aqueles momentos vividos
estão grudados em nós e não podem ser removidos, nos apropriamos deles e agora fazem
parte de nossa história, do que somos, do que nos tornamos.
7.
O sentido da vida é a direção dada ao que se faz. Pode-se ter do fato mais ou
menos consciência, pode-se considerá-lo mais ou menos importante. No entanto,
como viver não se assemelha a fazer um bolo seguindo uma receita, a questão do
sentido é sempre surpreendente pelo ineditismo que representa. Como nosso que
fazer nessa vida não tem roteiro prévio, vivemos inseguros nas escolhas.
Inseguros dos resultados obtidos, sem confiança de que estamos no rumo certo,
na dúvida se devíamos ou não ter mantido o relacionamento com aquele amor adolescente
de tantos sonhos, sem saber de devíamos ter insistido naquele emprego ou
profissão antes de largá-lo para tentar algo novo. Enfim, um Pinheiro cresce no
jardim onde foi plantado ou no lugar onde sua semente se fixou, o leão segue
seus instintos para fazer filhotes e para lhes levar o alimento caçado nas
estepes, o homem vive cheio de perguntas onde quer que habite, não importa o
tempo em que viva. Por isso em meio a suas dúvidas há necessidade do exercício
da razão da qual vocês se tornaram guardiães.
8.
É a razão que nos deve guiar na busca de resposta para as perguntas: até quando
continuaremos a usar mal a natureza a ponto de comprometer as futuras gerações?
Até quando continuaremos a fabricar bombas para jogar uns nos outros? Até quando a indiferença nos fará fechar os
olhos ao sofrimento alheio quando não somos nós mesmos a causa desse
sofrimento? Até quando conviveremos com a corrupção, criticando quando
beneficia os outros, mas aceitando felizes se somos os beneficiados da mamata, aspirando
coisas imerecidas, querendo aposentadoria sem trabalho e/ou resultados para os
quais nada fizemos por merecer? Até quando lutaremos por direitos sem deveres
ou aceitaremos a violência como solução para os problemas? Até quando compactuaremos
com o saque em caminhões acidentados? Até quando desrespeitaremos as leis de
trânsito quando não há um policial para fiscalizar? Até quando sujaremos nossas
ruas e picharemos os muros de nossas cidades com frases e rabiscos sem sentido?
9.
Dúvidas não nos faltam, e há aquelas que não tem significado moral, mas
metafísico ou gnosiológico: será que já conhecemos com precisão o mundo, ou
poderemos conhecê-lo melhor? Temos razões para acreditar em Deus, qualquer que
seja nossa crença? Pode o universo em que habitamos ser reduzido aos elementos
que lhe dão fundamento? Podemos pensar um fundamento para o mundo? E diante
dessas questões cabe ainda indagar: até quando aceitaremos uma vida sem
reflexão que nos afasta e nos faz esquecer de nós mesmos? Até quando viveremos
longe da Filosofia e do efeito benfazejo que ela traz quando desperta em nós a
pergunta pelo fundamento e nos oferece um rumo na vida?
10.
Enfim, para tudo isso com que lidamos e, em última instância, e para tratar da
vida mesma, a Filosofia não pode faltar. E nossa existência é de tal forma que
a reflexão filosófica pode não só ajudar, mas nos obriga a fazê-la melhor. Pode
ajudar a fazer escolhas mais responsáveis, a entender o caminho a seguir. Não
há como ensinar uma Filosofia distanciada da ciência, mas uma feita a partir de
seus resultados e limitada por suas provas. Uma Filosofia ao lado da ciência,
mas que, diferentemente dela, se obriga a sempre renascer ao pensar o
fundamento, pois a originalidade da formulação expressa a renovação da vida e o
propósito de tratá-lo mais corretamente. O problema filosófico nunca se esgota,
ele se renova, ele é como a vida.
11.
A Filosofia como atividade é algo que o homem faz. Considerada uma forma de
relação com a sabedoria nas suas origens gregas, a Filosofia é uma forma de
pensar o mundo pela qual o homem mostra mais claramente o que há. E quando
pensa sobre sua vida, a descobre construção de um sentido e uma reflexão sobre
a perspectiva. Fazer esse trabalho, dialogando com a tradição filosófica,
ajudando a pensar, permitindo a cada pessoa descobrir o significado da vida e
fazer dela algo que valha a pena não é tarefa fácil, mas é imprescindível.
Creio que é isso o que a sociedade espera de vocês, creio que é essa a missão
do professor de filosofia e do filósofo, trabalhar a razão como alimento da ação. E fazendo isso vocês
estarão no centro do processo educativo e a escola não se imaginará sem vocês,
nosso país não abrirá mão do vosso trabalho. E a sociedade, algumas vezes sem
entender bem, acabará percebendo ser imprescindível o filósofo no cultivo de uma
nova humanidade pela racionalidade, pelo treino e exercício de obter e dar
razão.
Zélia Bisognin Tonial
6 de fevereiro às 23:58
Muitas verdades..uma resenha perfeita do momento histórico atual.... precisamos colocar filósofos para nortear os nossos POLÍTICOS. ..
Não é só um belo discurso, é o momento histórico, é a responsabilidade que jovens precisam assumir ,concretiza-se o sonho, e a realidade é que precisamos de pessoas conscientes, preparadas para mudar o meio que estiverem atuando, e o amor a profissão fará a diferença para que o mundo se torne melhor.
ResponderExcluirParabéns pelo discurso, falou o homem conhecedor da realidade, ético que respeita e valoriza o dinheiro suado do povo.
ResponderExcluirUm belo presente a seus alunos.
ResponderExcluirSó quem vive o amor a profissão entende esta emoção.
ResponderExcluirProfessor suas palavras serão abençoadas, que façam eco nos ouvidos daqueles profissionais que muitas vezes saem da faculdade e não dão o mínimo de atenção aos menos favorecidos. Qual o professor que coloca em seus alunos a responsabilidade e respeito ao que receberam?. Que suas palavras sejam um eco¨ É hora de se perguntarem o que farão pela sociedade que lhes pagou o estudo, como colaborarão com aqueles que com o suor do seu imposto mantiveram abertas as portas da universidade, custearam as bolsas que receberam, encheram de livros a biblioteca onde pesquisaram, pagaram a limpeza do ambiente, ajudaram nas viagens de estudo que vocês fizeram¨
ResponderExcluirPARABÉNS enquanto houver um professor de seu quilate não perderemos a esperança de dias melhores.