terça-feira, 2 de setembro de 2025

O CAMINHO. O VERDADEIRO. Selvino Antonio Malfatti





Estamos cercados, encurralados, andamos de um lado para outro sem achar um lugar para ficar como os habitantes de Gaza. Estamos rodeados de guerras: Ucrânia-Rússia, Israel-Hamas, Irã-Israel. As guerras estão lá, mas estão aqui. Estamos no meio delas. Somos escudos, pontarias indefesas. Para onde vamos? Qual o caminho?

Não é feio, nem antiquado voltar. Um dos exemplos mais clássicos e contundentes de voltar para melhorar foi o Renascimento no final da idade média. O homem tinha tomado um atalho, deixado tudo para trás e chegou num beco sem saída. Dante sintetiza numa palavra “la diritta via era smarrita": (o caminho verdadeiro estava apagado) - Canto I do Inferno. Diante disso as lideranças humildemente se perguntaram: onde nos desviamos?

A resposta saltou aos olhos:

- abandonamos tudo o que até então havia sido conquistado pelos: egípcios, romanos, gregos, hebreus. A decisão:

- Voltemos e retomemos o caminho certo.

E o que encontraram que havia sido abandonado? O humano.

E atualmente estamos de novo perdidos. Na Idade Média, no afã de procura do divino, esqueceu-se o humano. E agora? Conforme Hannah Arend, em “Vita Activa” o esforço para libertação do homem da “prisão terrena”. O cristianismo fala na terra como “vale de lagrimas” e os filósofos no corpo como “prisão da alma”. Até então, porém, nunca havia sido mencionado como “terra prisão do homem”. Diz Arend: “Renunciamos a Deus, que era um Pai celestial e, como pai, dialogamos com a mãe Terra". Na mesma linha apontam as experiências de criar seres superiores, evidentemente libertos da terra. Passados setenta anos do Sputnik o firmamento tornou-se uma autoestrada cheia de satélites, mais de 7 mil, orbitando sobre nossas cabeças.

E no que deu a civilização? Guerras e ameaças, invasões, crises econômicas e degradação dos costumes, que podem acabar com uma hecatombe mundial. Pode, porém, acabar de outra maneira, menos grandiosa, mas não menos fatal. O excesso de bem-estar.

Uma fatia da população vive satisfeita, sem preocupações. Comida em abundância, ausência de problemas. A única preocupação é com o máximo de lazer. Trabalho? Nada. Estudos? Para quê? Argumentam:

- Não consenti para nascer. Agora que sustentem.

Celulares garantem comunicação imediata e com quem agrada. Nem mesmo a saúde se escapa. Se o médico discordar troca o médico.

É um novo mundo que se aproxima como um asteroide prestes a chocar-se contra a civilização atual e destruir tudo. E a apatia toma conta das últimas gerações. As salas da internet é o mundo virtual  criado com total liberdade para mutilar, estuprar e matar num delírio coletivo. E novamente a pergunta: onde nos perdemos.

É verdade que há uma diminuta população jovem que não nasceu em berço de ouro, nem extrema pobreza. São jovens comuns que tem pais, professores e outros orientadores que mostram o caminho não com palavras, mas vivência, que encaram os desafios. Não por suas próprias forças, mas com elas e com apoio de alguém, ou de algo, enfrentam as dificuldades e as vencem. Fui voluntário de grupos de apoio a familiares de dependentes químicos. Constatei que conseguia vencer quem tinha uma família que apoiasse e uma religião que lhe desse um sentido superior. Era preciso a conjunção de dois fatores: a família e a religião. A família poderia ser um amigo, um professor, um psicólogo e a religião um motivo supramaterial, algo espiritual, um ideal.

Nesta linha a volta ao verdadeiro caminho, o renascimento ético-moral da sociedade atual, necessita de uma análise crítica do contexto contemporâneo. É preciso encontrar a “vera via” que foi “smarrita”. Hoje o verdadeiro caminho foi substituído por aparências, consumo, prestígio social. O verdadeiro caminho são os valores universais do amor, compaixão, responsabilidade pelo outro e respeito à vida. O caminho apagado é o relativo, o descartável. Seu oposto é o caminho objetivo, duradouro, enraizado na verdade e na consciência. Não se pesa por “likes” ou o quanto é útil, o bem que proporciona a cada um. O caminho verdadeiro é o bem autêntico que nasce da empatia, da escuta e da ação desinteressada, não de atitudes feitas por obrigação ou autopromoção. O novo Renascimento:

 A VOLTA À INTERIORIDADE.


sexta-feira, 29 de agosto de 2025

Terrivelmente evangélico foi Paulo de Tarso. José Mauricio de Carvalho

 

 



A vida contemporânea como todas as épocas de mudança e transição exige grande esforço de compreensão e atualização. Entendê-la sim, mas sabendo distinguir aquilo que chega como possibilidade e oportunidade, do que parece menos adequado e razoável. Alguns filósofos passaram a denominar esses dias do umbral de um novo tempo que se seguiu à pós-modernidade.   O conceito de pós-moderno é complexo, ele migrou da Arte para a Filosofia e ganhou forma no desconstrutivismo de Jacques Derrida e nas teses de Gianni Vattimo e Pier Aldo Rovatti. Esses pensadores, na síntese de Bauman (BAUMAN e BORDONI, Estado de crise. Rio de Janeiro: Zahar, 2016 b, p. 108): “são profundamente influenciados tanto por Nietzsche quanto por Heidegger.” Eles constroem um pensamento (id., p. 109): “autorreferente, provocador, intuitivo, obscuro, crítico, criativo e ferozmente crítico.” Ele refere-se ao que começou na Europa, mas alcançou o resto do mundo.

Parece que tanto a modernidade, como a pós-modernidade, ficou para trás e já começamos algo novo e indefinido. Não se trata de um detalhe semântico, mas de novos aspectos da cultura. Assim, o que se chamou pós-moderno é a porta de entrada de um novo tempo que ainda não temos uma palavra exata para descrevê-lo. Estamos assistindo a muitas e profundas mudanças no universo cultural, uma das piores é a tentativa de transformar o cristianismo num apêndice do capitalismo e fazer a mensagem de Jesus parecer ser um caminho de prosperidade financeira e não uma trilha de crescimento espiritual.

Isso não significa que o crescimento pessoal prescinda de um suporte material, nem que não seja desejável ter boas condições de vida. Ter uma vida segura e confortável não é mal. Não se trata de fazer a defesa da pobreza como em outras épocas. Não é esse o problema, o que estraga tudo é transformar o que é meio em fim. Ter condições materiais adequadas é a base para uma vida que pode ou não me levar a Deus. Não é garantia da presença de Deus na vida e nem é um prêmio pela fé. Pessoas de diferentes classes podem chegar a Deus se fizerem a trajetória de fé e amor que leva a Ele. No entanto, a advertência de Jesus é extremamente atual, quem se apega ao que é meio está distante do Reino de Deus. É pelo amor que se vai a Deus, pelo amor a Deus e ao próximo. Pela caridade com o mais pobre, pelo amparo do mais fraco, pelo cuidado verdadeiro com o pequeno, pelo respeito com todos.

Um dos capítulos mais tristes desses nossos dias é a emergência de um falso cristianismo. O uso da mensagem de Jesus carregada de ódio, com motivação política, usado para defender a riqueza, as armas, a violência, a discriminação do pobre, do estrangeiro e do diferente. Enfim tudo o que não está em Jesus e nem vem de Deus.

O primeiro fruto do verdadeiro cristianismo é o amor ao próximo. Isso já está no decálogo de Moisés, o amor a Deus no primeiro mandamento é a base para todos os outros nove. Os mandamentos foram à raiz da mensagem com Jesus, como na síntese de Mateus (22, 37-39): Respondeu Jesus: " Ame o Senhor, o seu Deus de todo o seu coração, de toda a sua alma e de todo o seu entendimento'. Este é o primeiro e maior mandamento. E o segundo é semelhante a ele: 'Ame o seu próximo como a si mesmo.” Portanto, todo aquele que abandona o segundo mandamento, não segue o primeiro, pois a Trindade é constituída de pessoas, como é o mundo que habitamos. E a Pessoa é o maior valor dentre todas as coisas.

Havia muitas regras, costumes, tradições no Primeiro Testamento, usadas para se purificar e manter-se limpo. Rituais complicadíssimos, que foram criados principalmente como norma de higiene para um povo que vivia no deserto, mas que era apenas o instrumento para o que verdadeiramente importa, amar a vida e respeitá-la.

Essa foi a linda transição íntima de ressignificação da fé que fez Paulo de Tarso tornar-se cristão. Ele entendeu que todas as regras, todas as exigências, todas as leis perdem o sentido quando se tornam fim, pois o fim é Jesus e suas palavras, aquelas que não passarão. Paulo as resumiu (Cor. 1, 13): “ainda que eu falasse a língua dos homens e dos anjos, se não tivesse amor seria como o metal que soa e o címbalo que tine.” E segue-se nessa carta aos Coríntios, a versão paulina do Sermão da Montanha. Pois só seremos de fato terrivelmente evangélicos se a nossa relação com os outros os ajudarem a serem melhores pessoas e nos esforçarmos também para o ser. Por isso todo meu respeito ao Pe. Júlio Lancelotti e a todos os que fazem do amor a razão da vida. Pois tudo o que na vida vale a pena e tem verdadeiro significado é, em sua raiz, amor. Amor em todas as suas formas, aos pais, aos filhos, ao esposo e a esposa e ao próximo em geral.

sexta-feira, 22 de agosto de 2025

A FÉ DE NOSSOS PAIS. Selvino Antonio Malfatti.

 



A aura sacra que acompanhava as pessoas do despertar até á noite agora passou para um mundo prosaico de trabalho sem luz. Um ser humano desnudo com uma carapuça de fantasia gritando felicidade na passarela da vida. Conheceu o bem e mal em troca da felicidade. Um crânio sorrindo.

O sacro de cada dia com sentido para o prosaico de um dia após o outro sem luz. O mudo morreu e o homem nele. Nem dias, nem meses ou ano fazem sentido. Todos sabem o que o espera no fim da jornada: a morte.

Onde está a fé da família que rezava junto? As missas ou cultos com igrejas repletas? Ou um arrependido no fundo da igreja rezando solitário? A fé morreu e com ela a esperança? A caridade, descarte sem serventia?

Deus foi embora e os santos nos abandonaram. Ficou só a ciência. Ela foi encarregada de aliviar a dor, consolar o aflito. Mas ela é fria, não tem coração, só razão. A ciência não abraça, só explica. Como medico que cuida da doença, mas abandona o doente.

Cada etapa da vida tinha seu sentido. Ninguém era meteorito que se precipitava no vácuo e desaparecia incandescente. Nascia e a comunidade recebia. Crescia e ingressavas na fé. Forma uma família de uma só carne com o cônjuge. Pecava e perdoado. Morria e a comunidade do além o recebia.

A vida era sacra. O alimento uma dádiva divina. O sexo um dom de criar vida. Respirava-se o sacro. Levanta-se com o sinal-da-cruz e termina o dia com orações da noite. A fé fosse presente em tudo, e não apenas em objetos ou pessoas: um universo onde tudo respirava fé. Não há figuras, porque o sagrado não se deixava conter em imagens fixas; estava nas ruas, nas casas, nos sinos, nas preces. Procissões e a da vida comunitária, unida pela devoção. O fogo das velas, a luz dourada dos altares, a intensidade das festas religiosas. O mistério: a fé como presença difusa, inefável, que tudo tocava e tudo envolvia.

Agora é diferente por que se fazem as mesmas coisas sem a fé. O mundo dessacralizou-se. Foi a perda do caráter místico do mundo. Tudo é natural, pode ser explicado pela ciência que substituiu o poder do sagrado. Romarias pedindo chuva deixaram de fazer sentido diante da previsão do tempo. Missas para uma boa colheita tornaram-se anacrônicas com as previsões de safras. Para que rezar? Deus não se comove. A oração, no máximo pode comover a si mesmo. Esta é a lógica da ciência. Forças sobrenaturais não interveem na natureza.

Estamos num impasse: o sacro ou o natural. Aquele ambiente místico está materializado pelo mundo físico. Os nossos pais era precisavam externar o interior. Devia ser visível. Para comprovar fé precisa fazer o sinal da cruz. Para dizer que fala com Deus precisa recitar em voz alta o Pai-Nosso. Pedir ajuda, balbuciar o Santo-Anjo.

A toda hora dizer graças a Deus, Deus queira, vá com Deus, Adeus, Oxalá. Para ter em mente o sobrenatural guia-se pelo tempo fracionado em semana, meses e anos cada divisão representam um santo ou ato litúrgico. Marcava locais por templos, catedrais, ruas com santos.

Agora prevalece o paradoxo. Multidões se formam para receber uma autoridade religiosa, marchas-para-Jesus reúne milhares de fiéis, procissões congregam muitas centenas de seguidores. Locais de aparições atraem devotos aos milhares. No dia seguinte cada um volta para sua casa e continua tudo como antes.  Num momento multidões oram publicamente e de repente desfazem-se tudo como uma nuvem! Nem sinal do que aconteceu.

Os sinais externos se voltam para o interno? O sentido externado recolheu-se para o interior e somente aflora em alguns momentos e em seguida recolhe-se para o interior?

Onde está a fé de nossos pais?


sexta-feira, 15 de agosto de 2025

NOSSA SENHORA MEDIANEIRA, RAINHA DO POVO GAÚCHO. Org. por Selvino Antonio Malfatti

 


Em solenidade em 15 de agosto de 2024,  realizada na Basílica Nossa Senhora Medianeira, presidida pelo Arcebispo Leomar Antônio Brustolin, Nossa Senhora Medianeira foi coroada Rainha do Povo Gaúcho.

Por isso, a origem da comemoração e do consequente feriado de 15 de agosto deu-se por ter o Episcopado rio-grandense concedido o título de Rainha do Povo Gaúcho Nossa Senhora Medianeira. Para justificar tal título o episcopado busca os fundamentos na Sagrada Escritura, na tradição da Igreja e na história do povo gaúcho.

A devoção a Virgem Maria em Santa Maria, RS, tem duas ramificações, embora se trate de devoção à mesma santa: Maria Medianeira e Mãe Peregrina. Cada uma tem uma origem própria.

A devoção à Nossa Senhora Medianeira em Santa Maria tem suas raízes em 1928, com o incentivo do Padre Inácio Rafael Valle, e se popularizou após a concessão do título de festa própria pela diocese pelo Papa Pio XI em 1929. A devoção à Mãe Peregrina, por sua vez, originou-se do movimento de Schoenstatt e tem em João Luiz Pozzobon seu grande impulsionador, com a primeira imagem peregrina sendo levada por ele em 1950.

A devoção à Medianeira popularizando-se através da iniciativa religiosa em Santa Maria. A basílica, dedicada a essa devoção, foi iniciada em 1935 e elevada à categoria de basílica em 1987.

Em 31 de maio de 2024, o Estado do Rio Grande do Sul foi oficialmente consagrado à Virgem Maria sob esse título, culminando com o decreto que determinou sua coroação como “Rainha do Povo Gaúcho”

A coroação pontifícia, além de um ato litúrgico, simboliza consolo e esperança em um momento de reconstrução e fé para muitos gaúchos, especialmente após as chuvas que afetaram a região com enchentes em muitos locais.

1. Medianeira - Fundamentação Teológica

A Igreja reconhece em Maria o papel singular de Medianeira de todas as graças, associada intimamente à obra redentora de Cristo, único Mediador entre Deus e os homens (cf. 1Tm 2,5).

2. Rainha – Fundamento teológico.

A Tradição eclesial, confirmada pelo Magistério, celebra Maria como Rainha do Céu e da Terra, por sua maternidade divina, sua perfeita união ao Filho e sua participação no Reino de Cristo (cf. Lumen Gentium, 59). A realeza de Maria não é de domínio político, mas de serviço materno e de intercessão constante.

3. Santa Maria como centro de fé do Rio Grande do Sul.

Desde o início do século XX, o povo gaúcho manifesta sua fé e amor à Virgem sob o título de Medianeira, com centro de irradiação na cidade de Santa Maria. A romaria anual, iniciada em 1930, tornou-se a maior peregrinação mariana do estado, expressão visível de uma devoção profunda e perseverante.

Em 1930, o Papa Pio XI proclamou Nossa Senhora Medianeira Padroeira principal do Rio Grande do Sul, conferindo-lhe um vínculo especial com esta terra e seu povo. Ao longo das décadas, essa devoção cresceu como expressão da identidade religiosa e cultural do Rio Grande do Sul.

4. Sentido Pastoral Pastoral do título.

A proclamação de Nossa Senhora Medianeira como Rainha do Povo Gaúcho é um gesto pastoral de consagração e confiança. Reconhecemos nela a Mãe e Intercessora que acompanha nossas famílias, fortalece nossa fé, inspira a solidariedade e aponta sempre para Cristo, seu Filho e nosso Senhor.

Tal título é símbolo de unidade espiritual e convite a seguir o exemplo de Maria em humildade, fidelidade e serviço, para que a presença do Evangelho se mantenha viva nas cidades, campos e comunidades desta terra.


sexta-feira, 8 de agosto de 2025

80 ANOS DE HIROSHIMA E NAGASAKI - Os EFEITOS MORAIS DA BOMBA ATÔMICA. Selvino Antonio Malfatti

 


Estamos há 80 anos da primeira bomba atômica acionada nas cidades do Japão de Hiroshima e Nagasaki . A destruição física foi descrita por historiadores, economistas, populacionistas, ecologistas e outras especialidades. Falta refletir sobre os efeitos morais.

Para contextualizar.  Na década de quarenta a guerra na Europa seguia feroz e devastadora. Estados Unidos ainda não haviam entrado na guerra.  Os Aliados estavam esperançosos numa arma secreta, mas estava mãos dos Estados Unidos que estava fora da guerra. Por isso era preciso atrair os Estados Unidos para os aliados.  De repente e inesperadamente surge o motivo. Uma base naval americana Pearl Harbor no Havai é atacada pelas forças japonesas e o Japão já havia se declarado favorável à Alemanha e Itália formando o Eixo. Por causa do ataque, os Estados Unidos declaram guerra ao Japão e e firma aliança com os aliados. Na guerra com o Japão, Estados Unidos tinha duas opções: enfrentamento terrestre ou?! surgia a justificativa ideal para testar a nova arma e justamente longe da Europa, na Ásia.  

Com efeito, em 6 e 9 de agosto de 1945, os Estados Unidos lançaram as bombas atômicas sobre as cidades japonesas de Hiroshima e Nagasaki. Mais de 200 mil pessoas morreram, direta ou indiretamente, como resultado imediato ou tardio das explosões. Muito além da destruição física, os impactos morais se desdobraram ao longo das décadas.

A constatação mais elementar é de que na guerra não há limites morais. Tem razão é quem vence. O perdedor leva o ônus da culpa. No caso da Alemanha há consenso na atribuição da culpa, mas no caso das cidades do Japão pairam perguntas sem respostas até o dia de hoje; não estavam envolvidas na guerra, eram comunidades civis, nem sabiam do estado beligerante de seu país. Até seguras se sentiam por estar longe da guerra. Imagine estar na sua cidade, longe da Faixa de Gaza e Ucrânia e do nada cai uma bomba! Foi o que aconteceu com as cidades japonesas.

Qual lição foi tirada do “teste” Hiroshima e Nagasaki?

. medo: o mundo ficou temoroso com o futuro da humanidade

. precavido: foram proibidas as usinas nucleares para fins bélicos

. organismos: criaram-se organismos preventivos que evitassem a guerra como ONU, UE, OEA e OTAN

Enquanto isso os sobreviventes, hibakusha, continuam carregando as feridas físicas e morais da bomba, vítimas expostas dos conflitos de outros.

O impacto moral da bomba atômica permanece como uma ferida aberta na consciência humana. A reflexão sobre Hiroshima e Nagasaki transcende a história militar e pede-nos  uma resposta ética: como civilização, seremos capazes de aprender com o sofrimento e assumir um compromisso com a paz?

 

sexta-feira, 1 de agosto de 2025

ATUAÇÃO DO JUDICIÁRIO. Selvino Antonio Malfatti.

 



Em abril de 1892, Floriano Peixoto, presidente do Brasil, decretou estado de sítio. Prendeu os manifestantes e desterrou outros para a Amazônia. Quando Rui Barbosa ingressou com habeas corpus no Supremo Tribunal Federal em favor dos detidos, Floriano Peixoto ameaçou os ministros da Suprema Corte: "Se os juízes concederem habeas corpus aos políticos, eu não sei quem amanhã lhes dará o habeas corpus de que, por sua vez, necessitarão".

Este episódio se refere a um ato ditatorial de um Presidente, detentor do executivo. Foi um ato arbitrário praticado por um dos poderes, o executivo. Acima dele, porém, havia outro poder, o judiciário. E foi para ele que Rui Barbosa apelou, uma instância superior.

Rui Barbosa (1849–1923), o maior jurista brasileiro, de renome internacional, apelidado de Águia de Haia, pela sua intervenção na Conferência de Paz de Haia, considerou a ditadura do judiciário como a pior das ditaduras, pois contra ela não há a quem recorrer. Quais os argumentos que apresentados por Rui Barbosa para justificar tal afirmativa?

Rui denuncia os abusos oriundos do sistema que deveria ser o defensor da justiça, mas a usa contra seus protegidos. Seria como um pai que em vez de defender sua família torna-se o carrasco dela. Um pai que em vez de escudo torna-se espada ferindo e matando seus filhos e esposa. A ditadura do judiciário numa instituição política corrompe a estrutura do estado de direito. Por que é tão letal o desvirtuamento do judiciário?

Ao contrário dos demais poderes, cujos abusos podem ser contestados judicialmente, não há a quem recorrer quando o Judiciário erra ou se torna tirano. A sua posição de guardião final da legalidade o torna praticamente inalcançável em termos de correção imediata, especialmente se a injustiça vem das instâncias superiores.

Quando o Judiciário deixa de ser imparcial e se submete a interesses políticos ou pessoais, compromete-se a confiança popular na Justiça, pilar fundamental da ordem democrática. Sem essa confiança, o tecido social se rompe, favorecendo a anarquia.

Um Judiciário autoritário é a perversão da própria a justiça. Impõe a sua vontade, muitas vezes em desacordo com a lei ou a equidade. A imparcialidade se converte em parcialidade institucionalizada, e o cidadão se torna vítima de decisões arbitrárias sem possibilidade real de defesa.

A tirania judiciária tem caráter duradouro e insidioso. Diferente de regimes autoritários políticos, que frequentemente enfrentam oposição e revoltas, a opressão judicial pode se perpetuar de forma silenciosa e legalista, mascarada de legalidade.

Quando o Judiciário usurpa funções legislativas ou executivas, ou age com conivência em prol de um grupo dominante, rompe-se o equilíbrio entre os poderes, abrindo caminho para o despotismo institucional.

Atualmente no Brasil há um clamor de vários setores contra a atuação do ministro presidente do judiciário. As acusações não são propriamente ao judiciário, mas ao seu presidente .

O presidente do SPF federal do Brasil vem sendo acusado de arbitrariedades acusado de perseguição política aos seus adversários, mormente a um ex-presidente. Afirmam que se comporta não como juiz imparcial, mas como filiado a um partido.

As principais acusações dirigidas ao ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) dizem respeito à sua atuação firme no combate à desinformação, aos atos antidemocráticos e à responsabilização de figuras públicas e seus aliados. Críticos apontam uma suposta atuação parcial e autoritária. Os principais pontos dessas acusações incluem:

O presidente do STF  é acusado por opositores de extrapolar os limites constitucionais do cargo, tomando decisões monocráticas (individuais) que restringem liberdades, especialmente de expressão e comunicação.

Há críticas de que ele concentra poderes indevidamente, sendo ao mesmo tempo vítima, investigador e julgador em certos inquéritos (como o das Fake News e o dos Atos Antidemocráticos).

Decisões como a remoção de conteúdos ou canais, sem trânsito em julgado e com pouca transparência, são vistas por críticos como censura prévia.

Críticos apontam falta de contraditório e ampla defesa, pois os investigados não foram formalmente denunciados ou ouvidos previamente.

O inquérito é alvo de queixas por violação ao devido processo legal.

Após os atos golpistas em Brasília, o presidente  do STF determinou prisões preventivas, bloqueio de bens e suspensão de mandatos políticos.

Alguns setores questionam a celeridade e severidade das medidas, alegando perseguição a simpatizantes adversários.

Organizações e parlamentares internacionais, como integrantes do Partido Republicano dos EUA e ONGs ligadas à liberdade de expressão, criticaram algumas decisões vendo nelas viés autoritário.

Por suas decisões reiteradas contra aliados da direita é acusado por críticos de agir como um adversário político, e não como um juiz imparcial.

Há também críticas ao diálogo restrito com setores da oposição e à suposta convergência ideológica com partidos de esquerda.

O presidente do STF tem apoio expressivo entre instituições democráticas, como o Congresso Nacional, parte da imprensa e o Judiciário, que defendem sua atuação como essencial para conter ameaças à democracia e ao Estado de Direito no Brasil.

No entanto, órgãos internacionais, e nacionais, continuam clamando por justiça contra decisões. A mais recente e forte reação veio dos Estados Unidos ao sancionar o presidente do STF do Brasil com a Lei Magnitsky pela qual são punidos os dirigentes estrangeiros que violarem dos direitos humanos.

 

sexta-feira, 25 de julho de 2025

"A VIDA É BELA". Selvino Antonio Malfatti


 





Quem não viu o filme “A vida é bela” com o artista Roberto Benigni? Ele tentando salvar o filho transformava as situações mais dramáticas em cenas alegres e hilariantes como as gincanas cujo prêmio seria um canhão? Pois bem, agora Benigni, foi ao ar pela RAI externando a beleza da Europa através do programa e livro: “O sonho: a Europa despertou”. Neles apresenta uma Europa bela!

Há um detalhe que escapa a quem não sabe a língua italiana. O significado de “belo” no italiano. São dezenas e dezenas de sentidos. Lembro que minha esposa e eu viajávamos de trem pela Itália e estava escrito em todos os acentos do trem: il treno pulito è più bello. Ela me perguntou o que significava. Disse que a tradução era que o trem limpo é mais bonito, mas tem dezenas de outros sentidos. Apalavra “bello” em italiano é como “coisa” em português do Brasil. Pode usar para tudo.  A palavra diz tudo e não diz nada. É evanescente, abstrata. Sabemos o sentido no contexto, mas não sabemos o que seja. Para o italiano “bello” é a vida, ouvir música, escutar uma notícia, é um vestido, um filme, um olhar, sentir-se perto, amado, uma ideia e assim ao infinito. É uma coisa.

No monólogo na TV e no livro “A Europa desperta” Benigni defende uma união europeia bela. Quer uma União Europeia de identidade, valores, desafios. Para Benigni é maior utopia criada pelo homem nos últimos 5.000 anos. É um caso único da História.

A União Europeia foi fundada sobre os pilares da paz, justiça, liberdade, igualdade no núcleo da integração. Queria que os horrores da guerra fosse página virada.

Benigni ressuscita o sonho dos fundadores no seu Manifesto do Ventotene (1941), tendo como protagonistas Spinelli, Rossi e Colorni e mais tarde Alcide Degasperi. Seu sonho era uma Europa não de agora, mas futura, tal como a União Europeia de hoje.

Para tanto distingue nacionalismo e patriotismo. Patriotismo reflete um amor saudável e humano pelo país; o nacionalismo transita para o oposto — um amor cego e agressivo que pode mascarar intenções autoritárias alegando “amor à pátria”.

Os orçamentos europeus privilegiam mais gastos com armamentos do que o bem estar da população. Deve-se reverter. Para tanto  criar um exército europeu e com um parlamento efetivo. Isto aumentaria a união real.

A arte é uma língua universal e por isso deveria ser mais incentivada, pois traria mais amizade entre os povos. Benigni recorre à arte para reforçar a mensagem política — citando Chaplin e Eve Merriam, ele convoca uma retórica que vai além de “coisas que fazem as pessoas dizer ‘isso é uma m...’” e apontam para alternativas construtivas. Benigni faz um apelo poético-político: a União Europeia é um sonho valioso e uma necessidade histórica; fruto de valores humanos e da coragem que surge das crises. “Mas esse sonho exige coragem, fantasia, realismo institucional e um norte claro» — para que perante o nacionalismo e o ceticismo não se volte à barbárie. Se falharmos, “a alternativa será um conflito ilimitado”.

Enquanto refletia sobre a União Europeia me veio à mente o Mercosul, cambaleante, cheio de nacionalismos, egoísmos, rivalidades, egocentrismos. Cada um por si e os outros que se danem.

Faremos nós um dia um Mercosul belo?

sábado, 19 de julho de 2025

CENTENÁRIO DE LEONIDAS HEGENBERG. SelvinoAntonio Malfatti



Leônidas Hegenberg (1926–1999) foi um dos mais importantes filósofos brasileiros dedicados à filosofia da ciência, com grande influência na formação de professores, pesquisadores e pensadores ao longo da segunda metade do século XX. Nasceu em São Paulo, em 1926, e desenvolveu uma carreira marcada pelo rigor analítico e pelo compromisso com a educação científica e filosófica no Brasil.

Formado em Filosofia pela Universidade de São Paulo (USP), Hegenberg teve atuação marcante como docente e pesquisador. Ao longo de sua trajetória, lecionou em diversas instituições de ensino superior, incluindo a Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e a própria USP. Também colaborou ativamente com a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), promovendo o diálogo entre ciência, filosofia e educação.

Sua principal contribuição intelectual está na análise lógica da explicação científica, inspirada no positivismo lógico, especialmente no modelo dedutivo-nomológico de Carl Hempel. Entretanto, sua obra não se limita a uma abordagem estritamente formal. Hegenberg também promoveu uma crítica à ideia de neutralidade da ciência, aproximando-se de temas como a influência ideológica no desenvolvimento científico e o papel social do conhecimento.

Sua obra mais conhecida, Explicações Científicas: Introdução à Filosofia da Ciência (1976), tornou-se referência nos cursos de filosofia e licenciatura em ciências, sendo ainda hoje reconhecida por sua clareza conceitual e profundidade analítica. Publicou também livros voltados ao público jovem e educadores, com a intenção de democratizar o acesso ao pensamento filosófico-científico.

Leônidas Hegenberg faleceu em 1999, deixando um legado duradouro na filosofia da ciência no Brasil. Sua obra continua sendo estudada e celebrada, especialmente por seu papel pioneiro na introdução de uma reflexão sistemática sobre ciência, tecnologia, ideologia e ensino.

Hegenberg contribuiu sobremaneira com a filosofia da ciência ao resgatar o que havia de aproveitável no positivismo. Este, originário de Comte, foi aplicado ao Brasil não de forma dogmática, mas adaptado à realidade nacional. No pensamento originário pensava-se que somente uma ciência observável sensorialmente explicava o mundo material e imaterial foi moldado por Hegenberg para a nossa realidade. Ele retoma o positivismo do Círculo de Viena filtrando-o através de uma reflexão crítica. Para ele o conhecimento baseia-se no empírico, mas não só. Há atividade da razão sobre ele nascendo daí uma filosofia sem ser metafísica, mas abstrata com ideias, abstrações conceitos e teorias sujeitas a contínuas revisões quando confrontadas com a realidade. Hegenberg, neste sentido, aproveitou o empírico depurado pela reflexão.

Os filósofos brasileiros reconhecem a importância de Leônidas Hegemberg na divulgação do pensamento científico bem como a reflexão sobre seu conteúdo. Destaca-se a forma como conseguiu incorporar o positivismo de maneira aceitável ao torná-lo um método para análise dos problemas de cada momento histórico. Disto resultou que o positivismo lógico e o neopositivismo tomaram nova forma nova com a incorporação da reflexão. Os estágios foram substituídos pelas etapas dando a entender uma continuidade e não ruptura, isto é, um estágio não necessariamente exclui o outro, mas o assimila desde que a metafísica seja excluída. Com isso abriu espaço para a antropologia, sociologia, arte, axiologia e outros campos do saber. Mostrou que além do empírico há outros mundos que podem ser explorados. Evidenciou ainda que fora das sombras da caverna há toda uma realidade iluminada pela razão.

sexta-feira, 11 de julho de 2025

COLÓQUIOS BRASIL-PORTUGAL. Selvino Antonio Malfatti

 



Há anos vem se realizando colóquios entre Brasil e Portugal. Quando em Portugal (Tobias Barreto) e no Brasil ( Antero de Quental). Os colóquios entre Brasil e Portugal — que reúnem intelectuais, acadêmicos e pensadores dos dois países — têm como objetivo estreitar os laços culturais, filosóficos, literários e históricos entre as duas nações lusófonas.

Esses colóquios são simbolicamente associados a pensadores representativos dos dois países: Tobias Barreto (Brasil) e Antero de Quental (Portugal), que no século XIX protagonizaram o chamado “Diálogo Luso-Brasileiro”, ainda que nunca tenham se encontrado pessoalmente.

O próximo será realizado no Brasil, Rio de Janeiro:

XV Colóquio Antero de Quental

Quando: 16–18 de julho de 2025

Onde: Academia Brasileira de Filosofia – Rio de Janeiro

Tema: “Leônidas Hegenberg e a Filosofia da Ciência/Epistemologia no pensamento luso-brasileiro”.

Por que os patronos: Tobias Barreto e Antero de Quental

Tobias Barreto (1839–1889) foi um pensador brasileiro influente no campo do Direito, da Filosofia e da Literatura. Foi um dos principais nomes do Condoreirismo e da Escola do Recife, defensor da germanização da cultura brasileira e crítico do lusitanismo excessivo.

Antero de Quental (1842–1891), poeta e filósofo português, esteve envolvido com o movimento da Geração de 70 em Portugal, engajado em debates sociais, filosóficos e políticos, inclusive com influência do socialismo utópico e do pensamento europeu contemporâneo.

Eles travaram uma polêmica filosófico-literária por meio de artigos e cartas, especialmente sobre identidade cultural, influência europeia e autonomia intelectual. Esses debates inspiraram as gerações futuras e simbolizaram a busca de independência e diálogo entre as culturas lusófonas.

Os principais colóquios:

1. Colóquios Luso-Brasileiros contemporâneos

Nos séculos XX e XXI, colóquios luso-brasileiros vêm sendo realizados regularmente, envolvendo universidades, centros de estudos e institutos culturais como a Universidade de Coimbra, USP, UFPE, Fundação Calouste Gulbenkian, entre outros.

Principais resultados desses colóquios:

Fortalecimento do intercâmbio acadêmico e cultural

Acordos de cooperação entre universidades brasileiras e portuguesas.

Publicações conjuntas, como atas de colóquios, livros e revistas acadêmicas.

Mobilidade estudantil e docente (ex: programas como CAPES/FCT, Erasmus+, etc.).

Redescoberta de autores e pensadores

Revisão crítica da obra de figuras como Tobias Barreto, Antero de Quental, Oliveira Martins, Machado de Assis, entre outros.

Reinterpretação da herança luso-brasileira em áreas como filosofia, literatura, direito e política.

Discussão sobre identidade e língua portuguesa

Reflexões sobre o papel da lusofonia no mundo.

Questões sobre ortografia, diversidade linguística e ensino da língua portuguesa.

Discussões sobre pós-colonialismo, herança imperial e interculturalidade.

Temas filosóficos e sociais contemporâneos

 

Debates sobre ética, democracia, justiça social, direitos humanos, meio-ambiente e globalização.

Contribuições para o pensamento social brasileiro e português a partir de referenciais comuns.

Institucionalização do diálogo

Criação de centros e cátedras luso-brasileiras.

Encontros regulares, como os Colóquios Luso-Brasileiros de Filosofia, Congresso Luso-Brasileiro de Teoria e Filosofia do Direito, entre outros.

Conclusão:

Os colóquios entre Brasil e Portugal são espaços de memória, crítica e reconstrução do pensamento luso-brasileiro. Inspirados na figura de Tobias Barreto e Antero de Quental, esses encontros têm promovido a valorização da língua portuguesa, a integração cultural e o avanço do pensamento filosófico e científico em língua lusófona. O principal resultado é o reconhecimento mútuo da riqueza cultural compartilhada, mas também das diferenças que permitem um diálogo crítico e frutífero.

https://iflb.webnode.page/julho-2024-xv-coloquio-antero-de-quental/

 

sexta-feira, 4 de julho de 2025

A LINGUAGEM DO FUTURO. Selvino Antonio Malfatti

 



A tendência indica cenários de que no futuro falaremos como e com algoritmos. E provavelmente será inglês. Na verdade todos já estamos nos comportando um pouco chatot, mas felizes porque conseguimos entender a metalinguagem.

Num restaurante os personagens serão waiter e custumer e os conteúdos , order e meal etc. Não é diferente em viagens, congressos, aulas, nas ruas.

O Instituto Max Planck para o Desenvolvimento Humano constatou que canais acadêmicos como Youtube estão usando repetidamente palavras como “meticulous", "kingdom", "deepen" and "expert (meticuloso, reino, aprofunda e especialista). Em poucos segundos nos tornamos especialistas em conteúdos que estudiosos de renome levaram anos para entender. Daí surge a pergunta: como agiremos no futuro? Manteremos algum elo com o que precedeu? Ou cortaremos totalmente os vínculos do mundo anterior à internet? Será que nos desvencilharemos e abandonaremos a carcaça pré-internet e flutuaremos livremente no mundo liquido, conforme Baumann?

A comunicação do futuro será digital e se resumirá em algumas palavras chaves usadas em qualquer ambiente, Duas pessoas falando uma ao lado da outra usarão seu tablete para dialogar em qualquer língua, pois o tradutor fará o translado instantaneamente. Adeus estudo de línguas. Basta saber uma que todos entenderão na sua própria. Repetir-se-á Pentecostes? Os apóstolos falavam hebraico e a multidão ouvia na sua própria língua.

Que fim levará a literatura? Praticamente todos os livros mais significativos estão disponíveis na internet. E os literatos? Basta pedir a IA qualquer conto com enredo e detalhes e formato, chamados de pronts, que em questão de segundos a Inteligência Artificial atenderá. E as enciclopédias servirão para mais nada. Qualquer celular com internet dispõe de todos os dados necessários. E as bibliotecas físicas? Tudo atualmente está online e qualquer computador tem acesso. Serão museus. E a Bíblia, o Alcorão, a Torá e os Vedas exibidos publicamente pelos pregadores. Todos online, os remanescentes físicos, relíquias do passado.

Conforme o fundador da Inteligência Artificial, Sam Altman, a mais terrível previsão prevista é a extinção de centenas de classes de empregos que serão substituídos pela IA. Serão eliminados como os acendedores de lampião do passado. Ninguém mais quer saber deles[i].

Abaixo uma tabela elaborada pela IA sobre o futuro de algumas classes de emprego.



Disso se pode concluir de momento:

“A sensação é de que tudo vai mudar para que nada mude: todos nós ainda pareceremos felizes no Facebook, todos de férias no Instagram, todos zangados no X, todos "especialistas" no TikTok, mas todos procurando um novo emprego no LinkedIn”. ( Massimo Sideri, Corriere dela Sera)

 



[i] A Microsoft anunciou nesta quarta-feira (2) que demitirá quase 4% de seus funcionários (6.000), no mais recente corte de empregos enquanto a gigante da tecnologia busca conter custos em meio a pesados investimentos em infraestrutura de inteligência artificial.

 

 

sexta-feira, 27 de junho de 2025

EMPREGADOS(AS) EM CASAS DE RICOS . Selvino Antonio Malfatti.



A socióloga francesa Alizée Delpierre aplicou a teoria da sociologia crítica à pesquisa sobre a relação entre ricos e empregados na França[i]. Por esta teoria se quer verificar e criticar as relações de poder, as desigualdades e as injustiças estruturais no meio social.

A pesquisadora em seu livro: “Servir les riches : Les domestiques chez les grandes fortunes”  (2023). (Servir os ricos Empregados em casas de grandes fortunas.) chegou à conclusão: os empregados em famílias ricas são iguais, com pequenas nuances, aos demais trabalhadores: desigualdades, fronteiras entre empregadores e empregados, estruturas que levam às injustiças. Delpierre mostra como, nas casas das elites econômicas, há uma tendência a naturalizar a desigualdade social. Os ricos costumam ver a presença de empregados domésticos como algo normal e necessário, mas sem refletir criticamente sobre os privilégios que permitem manter essa estrutura.

Um ponto central de sua análise é que os trabalhadores domésticos (babás, cozinheiros, motoristas, etc.) operam em um espaço íntimo, mas permanecem socialmente distantes. A presença desses trabalhadores na vida privada dos patrões não elimina as hierarquias, mas muitas vezes as reforça.

Quanto à estética da discrição e invisibilidade, Delpierre descreve como os empregados são ensinados a ser "invisíveis", ou seja, a não perturbar o cotidiano dos patrões, mesmo estando presentes. Isso reforça uma lógica de dominação simbólica, em que o trabalhador deve “desaparecer” para manter a ordem social.

Delpiere encontra contradições morais na convivência entre empregados em famílias ricas. Muitas famílias ricas afirmam tratar seus empregados "como da família", mas, na prática, mantêm fronteiras rígidas e relações contratuais assimétricas. Isso gera contradições morais, pois a retórica afetiva não corresponde às condições reais de trabalho e remuneração.

Delpierre também inverte a lógica comum das ciências sociais ao focar não nos pobres, mas nos ricos. Estuda como as elites reproduzem seus privilégios por meio do trabalho de outros e das normas sociais que justificam esse arranjo.

Pela teoria e método utilizado chegou à conclusão de que há classes sociais dentro do âmbito familiar. O trabalho doméstico reflete e reforça a desigualdade.

Algumas questões, porém fogem à teoria, mas o método captou. Uma delas é a relação dos empregados entre si. Conforme a pesquisadora, não há só conflito, competição, mas solidariedade:

“Ao me tornar uma empregada nas casas dos ricos, pude ver que entre os empregados existem hierarquias, relações de amizade, de amor, mas também de competição”.

Quanto à remuneração. “Estes empregados são privilegiados, pois tem ótima remuneração, alimentação saudável, boa e em abundância. São de causar inveja aos trabalhadores comuns. Diz a autora, uma "Exploração dourada" é um oximoro [união de palavras de sentido apostos] que me ajuda a explicar que os empregados estão em uma situação de exploração porque trabalham de forma ilimitada, mas, ao mesmo tempo em que trabalham muito, também ganham muito”.

E continua: “A parte "dourada" é que ganham muito: 3 mil, 4 mil, 5 mil, até 12 mil euros [entre R$ 19 mil e R$ 76 mil - o salário mínimo mensal na França é de 1,8 mil euros, ou R$ 11,4 mil.”

Os empregados, os bons, são disputadíssimos entre os empregadores ricos. O que os ricos temem dos empregados? É que vão embora: “Então, não, eles não têm medo dos empregados. A única coisa de que têm medo é que eles vão embora, que encontrem outra casa para trabalhar. Por isso, diz Delpierre no livro:  o sonho dos patrões é que os empregados que continuem trabalhando eternamente em suas famílias.

Alizée Delpierre contribui para a compreensão crítica das relações entre classes sociais, mostrando como o trabalho doméstico em casas de elite reflete e reforça a desigualdade. Sua pesquisa destaca a dimensão moral, simbólica e afetiva dessas relações, além dos aspectos econômicos.

No entanto se analisarmos sob o prisma da teoria estrutural-funcionalista tem-se os mesmos resultados, mas com interpretações diversas.

Para a teoria funcionalista a desigualdade é estrutural, a forma como se manifesta é funcional. Geral para sociedade e diferente nos indivíduo. Todos são iguais genericamente, mas diferentes nas individualidades.

 Quanto à questão da intimidade. Em nenhum lugar se permite a intimidade entre empregador e empregado.

A invisibilidade a que fala a autora é da natureza do trabalho: cada um na sua função para que o todo funcione bem.

Na questão da remuneração: se os empregados são bem remunerados a prática contradiz toda teoria.

Por isso, para teoria estrutural- funcionalista a pesquisa não trouxe nada de novo a não ser clarear o que já era óbvio, mas nem por isso deixa de ter valor. Todos "achavam" que seria assim, porém ninguém tinha mostrado a realidade ou comprovado cientificamente.



[i] A série dinamarquesa “A Reserva” retrata em boa parte a convivência de empregadas estrangeiras, au pair, em casas de ricos na Dinamarca.

sexta-feira, 20 de junho de 2025

Ressignificação e Clínica. José Mauricio de Carvalho



Há dois momentos bastante dramáticos numa clínica, independente da escola seguida pelo psicoterapeuta ou filósofo clínico. Hoje, um pouco mais velho e experiente, sem a pressa da juventude, entendo que a teoria é um guia necessário para o caminhar num tratamento, mas é o mundo do paciente o que mais importa. Claro que as escolas distintas possuem procedimentos diferentes e explicações diversas para a personalidade e sua dinâmica, mas há dois momentos difíceis nesse caso. O primeiro é quando não há futuro, o paciente encontra-se no fim de sua jornada terrena, o outro é quando o passado foi muito doloroso.
Normalmente as duas situações pedem ressignificação. Por ressignificação entendemos a capacidade de visitar os pensamentos, emoções, valores e outros aspectos do mundo interno, de modo diverso ao que provoca sofrimento. Esse é o extraordinário trabalho clínico que é preciso realizar com muita habilidade e cuidado. Nos dois casos é preciso que o terapeuta conheça bem seu cliente, entenda como ele funciona. A psicologia fenomenológica e a filosofia clínica fazem isso recuperando a historicidade do paciente, pedindo-lhe que conte sua vida e a forma como lidou com suas experiências.
Ressignificar tem um caráter forte. Trata-se de encontrar um sentido no sofrimento, implica em superá-lo, e essa não é atitude de quem nele se compraz. Sofrer por sofrer não leva ninguém ao crescimento pessoal, não a torna uma pessoa melhor, nem permite o bom enfrentamento de qualquer circunstância.
O psiquiatra e filósofo Viktor Frankl lembrava que se podemos evitar o sofrimento devemos fazê-lo da melhor forma ou é masoquismo. No entanto, se o sofrimento é inevitável podemos ir além dele e o transcender. Transcender significa tornar o sofrimento um sacrifício com sentido. Assim ensinou Viktor Frankl (Fundamentos antropológicos da psicoterapia. Rio de Janeiro: Zahar, 1978, p. 244): “a análise existencial se vê às voltas com a tarefa de analisar existencialmente o sofrimento, com vistas à possibilidade de que tenha um sentido.” E se tiver sentido permitirá a quem significou o sofrimento olhar para aquilo de outro modo e hidratar a alma. Por exemplo, caso alguém esteja sofrendo com a perda de um ente querido. Ele irá sofrer o luto, sentirá a perda pois somos humanos, mas poderá dirigir seu olhar para o quanto aquela pessoa deixou nele. Que experiências maravilhosas de amor ficou dali. Poderá entender o quanto aquele ente querido que partiu ainda está com ele, uma parte dessa pessoa ainda habita seu mundo interior. Perceberá o quanto esse ente querido se esforçou para que ele ficasse bem, o quanto companhia de ambos era boa, quanto amor havia naqueles momentos. Assim, aos poucos perceberá que a situação não foi de fato perdida, boa parte da pessoa amada ainda está ali e pode alimentar seu coração. Terá tanta gratidão quanto saudade e depois mais gratidão que saudade.
No caso de a própria pessoa estar no final da vida pode-se perguntar a ela se o que alguém que viveu de significativo acabou, um médico querido que atendia sua família em caso de necessidade, por exemplo. Digamos que esse médico já tenha morrido, toda sua dedicação e cuidado se perdeu? Será que perdeu também valor e significado tudo o que essa pessoa fez naqueles dias já vividos? Será que foi inútil seu trabalho para cuidar dos filhos e os ver crescer sadios? Será que ficou perdido sua dedicação profissional? É claro que não. A própria pessoa encontrará sentido e ressignificará o seu passado para que ele hidrate seja o sentido que seu futuro pode não lhe reservar.
A clínica é um espaço maravilhoso de entranças e reentrâncias e o clínico é um companheiro de jornada para permitir que a pessoa se reconstrua continuamente à medida que ressignifica suas experiências e expectativas.

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