sexta-feira, 10 de janeiro de 2014

Alimentar a confiança e a esperança. José Maurício de Carvalho





Nos final dos anos cinquenta, o filósofo alemão Karl Jaspers fez uma conferência radiofônica intitulada A bomba atômica e o futuro do homem. O texto foi publicado na Alemanha em 1958 e traduzido, no Brasil pela Agir, em 1960. Não foi a única experiência do  filósofo que fez várias conferências transmitidas pelo rádio, colocando o público alemão em contato com os mais sérios problemas do seu tempo. É admirável reconhecer os erros e meditar sobre o próprio destino. A meditação não redime os erros cometidos, mas fortalece a responsabilidade e os futuros compromissos. A outra iniciativa no gênero deu origem a uma coletânea de doze conferências publicada em Lisboa, pela Guimarães, 1987 com o título Iniciação Filosófica.
No texto A bomba atômica e o futuro do homem Jaspers examinou um tema que provocava enorme angústia na sua geração, o risco de uma guerra entre potências que culminasse na completa destruição da vida na terra. Como forma de erradicar esse risco concebeu uma política de controle recíproco entre potências que levasse a desativação das bombas atômicas. Na época apenas Rússia, Estados Unidos e Inglaterra detinham a tecnologia para produzir a bomba. Ele postulava ainda o reconhecimento internacional dos tratados de paz, o ordenamento da ideia de direito dos povos, a liberdade de comunicação, tomar a violação dos direitos humanos, em qualquer lugar, como ofensa a todos os Estados e a superação da soberania absoluta dos Estados.
O mundo mudou muito desde os anos sessenta e as questões políticas apresentadas na famosa conferência já não fazem sentido. No entanto, o risco atômico ainda existe se artefatos nucleares caírem nas mãos de grupos terroristas ou de fundamentalistas, se pequenas guerras regionais se ampliarem com conflitos maiores envolvendo grandes Estados ou se for ameaçado algum Estado que ainda vive sob controle de grupos totalitários.
As angústias de hoje estão centradas na violência urbana, no poder das máfias das drogas, na falta de desenvolvimento de muitas sociedades, no fundamentalismo religioso e terrorismo fanático, na rápida deterioração das condições ambientais. No entanto, se mudaram os riscos de nossa geração, a raiz dos males de ontem apontada pelo filósofo "na violência, falta de escrúpulos, coragem cega para a luta, e paralelamente, o comodismo, indiferença, descaso e a falta de preocupação previdente" (p. 32) parece ainda muito viva. Assim, se os compromissos éticos não virão de forma impositiva, somente a meditação sobre o futuro do homem pelas diferentes instituições sociais poderão mudar, para melhor, o padrão social. Se também parece inútil acreditar que o homem possa alcançar pela meditação ética um futuro de paz definitiva, talvez o caminho que reste seja ainda aquele que o filósofo vislumbrava com os olhos cheios de admiração no velho Emmanuel Kant: "viver em nosso mundo pela razão, não somente pelo entendimento, mas sim através da esclarecedora razão, e com ela dirigir nossos pensamentos, impulsos, esforços, a começar pelas atividades quotidianas, na superação da catástrofe ameaçadora" (p. 48).

 A linda reflexão de Jaspers sobre as angústias de sua geração encontrarão lugar e sentido em nossos dias se nos dermos conta da necessidade de pensar filosoficamente para não perder o rumo da vida nas rotinas e nas trivialidades quotidianas. Só superando as insinceridades e subterfúgios com que nos enganamos e aumentando o sentido da responsabilidade por nossos atos e escolhas, podemos assegurar confiança e esperança no futuro do homem.

sábado, 4 de janeiro de 2014

LAZER – TEMPO DE DIGNIDADE. Selvino Antonio Malfatti

























“Costumes de São Paulo”, Rugendas.


Ano letivo encerrado, Natal e Ano Novo ficaram para trás, então, está na hora de pensar no lazer.

Desde as primeiras teorizações, como de Aristóteles, o lazer sempre estava relacionado ao trabalho ou seu oposto. Dizia ele que trabalhamos para poder desfrutar do ócio. Até o advento da legislação trabalhista, na prática, somente a classe de pessoas ricas podiam gozar deste privilégio, pois suas posses lhes permitiam dar-se ao luxo de não trabalhar para sobreviver. Havia também os que exerciam atividades intelectuais, como magistrados, advogados, políticos médicos e professores, religiosos e outros que reservavam um tempo para o descanso. Mas quem dependia de atividades físicas dificilmente podia gozar deste privilégio, mormente quando iniciou o período industrial. Hoje, com as conquistas sociais, criou-se artificialmente ou legalmente um tempo livre de trabalho, conhecido como férias remuneradas ou descanso remunerado.
As formas de lazer são as mais variadas. Podem ser físicas, artísticas ou intelectuais. Cada categoria destas também varia no tempo e espaço. Entre as físicas podemos citar futebol, corridas, canoagem. Entre as artísticas pode-se mencionar teatro, escultura, pintura entre pinturas, leituras e como intelectuais incluem-se viagens de conhecimento, palestras ou congressos. Parta merecer o epíteto de “lazer” não pode haver retorno material ou pecuniário, embora, uma mesma atividade para uns pode ser lazer e para outros, trabalho. Quem ministra uma palestra está trabalhando e quem assiste pode estar fazendo lazer.
Por isso, pode-se dizer que lazer seja um conjunto de ocupações que os indivíduos entregam-se espontaneamente com o intuito de descansar, recrear-se, entreter-se ou para buscar formação ou informação. O que caracteriza o lazer é a vontade livre de entregar-se a uma atividade, sem objetivo de remuneração ou obrigatoriedade. Como conseqüência o trabalho profissional ou trabalho suplementar se opõem ao lazer, da mesma forma atividades formais, como a educação formal, aquela que se é obrigado a fazer como aulas, provas, temas e outras. Uma atividade doméstica, por exemplo, para uma empregada não é lazer, mas para um membro da família que resolve fazer por que gosta ou quer divertir-se pode ser lazer. Um sacerdote que oficia uma missa é lazer, mas alguém que decide ir à missa para preencher um tempo vago, torna-se lazer. Para que seja identificado como lazer há de preencher os quesitos: tempo liberado (aquele que sobrou depois das obrigações profissionais), tempo livre (tempo que sobra após cumprir todo tipo de obrigações), tempo inocupado (tempo dos que não têm obrigações profissionais, como os aposentados).
Mas a pergunta que insiste em ter uma resposta é a seguinte: por que tanto esforço para conquistar um tempo para o lazer? Para que trabalhar tanto para ter disponível um tempo para não trabalhar? No fundo é a busca da essencialidade do ser humano, qual seja, sua dignidade. Esta significa um valor que não pode ser substituído por outro. O preço de algo, por exemplo, pode ser trocado por outro, porém, a dignidade não pode ser permutada por nenhum equivalente. A dignidade é única e sem igual. Isto por que não se submete a nenhuma lei que não seja instituída por ela mesma.

Na tratativa de configurar o lazer vimos que ele se referia ao poder fazer o que se quer, sem obrigação. Lazer ou ócio é isto: a essência do ser humano que é sua liberdade que lhe dá dignidade. Disso se depreende a máxima de Cícero: “otium cum dignitate.”

sexta-feira, 27 de dezembro de 2013

Ano Novo. José Maurício de Carvalho.





A contagem do tempo em anos é a forma humana de melhor identificar o que passou e colocar os fatos na ordem em que ocorreram. É mais simples localizar e ordenar os acontecimentos dessa maneira, situando-os nos séculos e lugares do mundo. Contudo, a celebração de cada novo ano no calendário solar mostra que vivemos no tempo com os olhos e a esperança no futuro. Já houve época em que a esperança era alimentada por ilusões. Hoje estamos mais maduros, não podemos nos iludir de que esperança se separe do compromisso de fazer boas escolhas e realizar com qualidade nossos trabalhos. Quando avaliamos que a vida é produto das escolhas, temos que assumir com responsabilidade a criação do futuro. O que vem não é mera continuidade ou repetição do passado.
Se a vida um que fazer contínuo, isto é, proceder escolhas todo tempo em meio à insegurança desse processo, então viver é olhar o horizonte. Olhar o futuro a partir de qual ponto? Do presente pessoal e do da sociedade. Escolhe-se, especialmente, pelo que se projeta além desse presente, pelo que dá sentido a ele, pelo que lhe enche de esperança. Entretanto, se o futuro não é continuação do já vivido, não se pode sonhá-lo sem considerar nossa história, sem o impacto e a incorporação do passado.
O ano novo virá para nós com novas realizações, novas pessoas, novas tecnologias, novos conhecimentos, novas criações, novas crenças, enfim, muitas coisas novas. Mas esse mundo antevisto nos sonhos de esperança não é produto do acaso, ele é criação do homem iluminado por um projeto. E que mundo é esse a surgir na esperança de hoje? É um mundo capaz de vencer a violência das cidades, de assegurar dignidade a crescente número de pessoas, de superar guerras e revoluções como solução para as diferenças políticas. Violência que cresce quando queremos uma vida mais rápida do que ela pode ser experimentada, quando aspiramos mais coisas do que somos capazes de adquirir e o mundo de fornecer, quando perdemos o afeto nas relações e o sentido da dignidade no trato com as pessoas. O presente vivido na pressa, dirigida para o consumo ansioso e sem obrigação da excelência numa vida autenticamente nossa, é tempo de violência, de corrupção, de drogas, de insatisfação e de gozo irresponsável.
Não quero apenas desejar um feliz ano novo, é necessário pedir que todos o construam mais próximo de nossa esperança, realizando responsavelmente seu trabalho, vivendo relações pessoais mais iluminadas pela amizade e benevolência, descobrindo o significado particular e o sentido da própria vida.
E se reconheço que a vida que me anima é semelhante, mas não igual a dos animais que diariamente estão à minha volta, se essa diferença dos outros seres vivos nasce da fé e esperança em Deus, não importa o nome de Deus ou a forma como Ele seja cultuado, então a obrigação de renovar o mundo, aquele compromisso mencionado no parágrafo anterior, ganha uma outra justificativa. Nessa fé nasce um pacto não só com a humanidade presente em cada homem, mas com Deus que espera nossa colaboração para fazer o sol nascer, todos os dias, sobre um mundo melhor. Então toda história da humanidade, que não está além dos fenômenos experimentados, torna-se transfigurada e iluminada pela esperança capaz de vencer a insegurança, a ruína, a angústia e a morte.

Façamos um 2014 feliz, pois não se justifica a esperança que não nasce do reconhecimento da dignidade humana e da responsabilidade pessoal pela construção de um futuro melhor. Pois esperança não é otimismo ou ingenuidade, esperança é responsabilidade, é esforço consciente para mudar o futuro, dedicação ao que nos distingue dos outros entes.

sexta-feira, 20 de dezembro de 2013

OS DOIS NATAIS. Selvino Antonio Malfatti.



Aproxima-se o Natal e com ele as confrontações entre o Natal originário e o atual. Uns lembram que está esquecendo-se do aniversariante cujo nascimento foi marcado pela extrema pobreza. Outros se preocupam para que tudo saia de acordo com o planejado com mensagens de Boas Festas, ceias, jantares, presentes.
Realmente o Messias nasceu numa gruta que servia de estrebaria, sem pompa e no anonimato. Certamente Deus poderia ter mudado a cabeça de Augusto para não fazer o recenseamento justamente na data do nascimento de seu Filho, poderia ter evitado que Herodes mandasse matar todas as crianças da Judeia, que a Sagrada Família tivesse que fugir para o Egito e assim por diante. Por que tudo isso aconteceu? Certamente não é fácil a resposta.
Embora pessoalmente partidário do Natal originário, quero me fixar um pouco sobre as comemorações, festas e presentes que ocupam a maior parte do Natal nos dias de hoje para tentar dar uma explicação sobre o fenômeno.
A partir do advento do Salvador Jesus Cristo a história da humanidade tomou outros rumos. Os primeiros momentos do cristianismo foram estritamente religiosos. Os valores antigos foram pouco a pouco sendo substituídos pelos novos, embora a carcaça pagã tenha permanecido. Foi semelhante ao processo de transformação da madeira em pedra ou a substituição da matéria orgânica em sílica. Num segundo momento os valores cristãos assumiram um caráter político e passaram a ser referência de poder. Foi neste momento que se disseminaram em escala universal. Passaram a fazer parte da cultura de todos os povos. Os principais deles: a valorização do Homem (e da mulher) na sua dignidade, liberdade, igualdade e fraternidade e a justiça social com suas exigências. Em terceiro, no estágio que nos encontramos, os valores cristãos estão tomando vida autônoma. Desprenderam-se do cristianismo como religião e assumiram uma postura laica. Existe na atualidade uma cultura de origem cristã, no entanto, não se auto-identifica com a religião. Ela impregna toda nossa sociedade. É nisso que reside a tensão: é cristão, mas não se identifica com a religião cristã. Por isso mesmo, há as comemorações com festas, troca de presentes, sem nexo com a religião. Estas práticas não fazem parte do religioso-cristão, mas de uma cultura cristã. Por causa disso ocorrem dois natais: o religioso cristão e o cultural cristão. O primeiro é identificado com a pobreza e o segundo como falsificado. No entanto, não parece que haja contradição entre o Natal cristão e o Natal cultural.
O problema não está no que vai para a mesa, nos presentes, nas festas de comemorações, mas no sentido daquilo que se faz. Quando o sentido originário foi desviado, temos outra realidade. Isto não significa que é ruim ou mau. Apenas um pluralismo cultural. O próprio Cristo incentivava o pluralismo. Não condenou, mas aceitou que Madalena quebrasse um alabastro de perfume caríssimo para ungir Seus cabelos. Ia cear com pessoas de posses e mesmo pecadoras. Ele mesmo na última ceia comemorou a Páscoa numa sala emprestada de uma arquitetura divinamente bela. Concordou que o rico José de Arimateia lhe emprestasse um túmulo. Apreciava descansar na casa de Maria e Lázaro que não eram pobres. Contudo, condenava: a ganância, o roubo, a riqueza conseguida fraudulentamente. Por quê? Por que se desviaram do sentido que deveriam ter. Fica claro, então, que o Natal cristão e o cultural não são contraditórios, mas diferentes.
Paradoxalmente muitas vezes estas críticas ao Natal cultural provêm até de falsos pobres. Condenam aquilo que coletivamente têm em abundância: enormes prédios, propriedades, comida farta, segurança e total despreocupação com o dia de amanhã. Embora individualmente possam ter pouco, coletivamente têm muito, pois nada lhes falta. Pobreza é não ter nem individualmente e nem em conjunto. E isto pode acontecer por renúncia voluntária (como Francisco) ou por necessidade como os excluídos. Ambos podem comemorar o sentido do Natal, mas para os segundos é infinitamente mais difícil, senão impossível. Diz um ditado popular: quando a pobreza bate à porta, a alegria sai pela janela.
Por isso, não é por comemorar com festas e presentes - ou sem eles - que o Natal é bem ou mal comemorado, mas quando se desvirtua do sentido, isto é, ser cristão, religioso ou cultural.  A Encíclica de exortação de Francisco, Evangelii Gaudium, vai nesse sentido. Os bens são maus quando eles submetem o homem, exigindo adoração como Bezerro de Ouro da Bíblia. Os bens devem estar a serviço do homem e não vice-versa, diz Francisco.



sexta-feira, 13 de dezembro de 2013

Nelson Mandela, gratidão. José Maurício de Carvalho





Lembrar de Mandela com objetividade e equilíbrio agora que o perdemos não é fácil. É difícil separar o homem de gestos serenos do herói nacional dos sul-africanos disposto a morrer pela causa que abraçou. O que dizer,com verdade, de quem seu povo reconhece como pai da pátria?Como separar o homem do Chefe de Estado admirado em todo o mundo, o ex – Presidente que mereceu reconhecimento dos principais líderes mundiais no dia de sua morte? Como se referir ao homem cordial e de sorriso gentil cuja imagem delicada esteve em todos os televisores do mundo?O que nos deixa Mandela, agora que já não estamos fisicamente com ele? O que primeiramente aparece como seu legado é uma democracia multi-racial a enfeitar um dos mais belos cenários do continente africano. Uma democracia que Mandela fez brotar de um regime desigual e injusto. A África do Sul era antes de sua ação política o país do apartaheid, o regime político e social que separava brancos e negros. Esse país onde os homens foram separados primeiro pelo ódio e preconceito e depois pelo arame farpado e pelos muros foi a matéria-prima que ele teve para criar uma democracia de homens livres e iguais perante a lei e o Estado.
E o que mais dizer da circunstância à qual esteve associada sua vida? Nelson Mandela nasceu quando a Belle Époque dava os últimos respiros e o mundo mergulhava nas piores guerras de sua história. Seus dias nesse planeta foram os de revoluções cruéis como a espanhola e soviética. Lições de crueldade e intolerância não lhe faltaram. Um mundo que passou por uma crise econômica sem comparação, crise que destruiu milhões de vida, que mudou o perfil das famílias, que transformou a angústia na categoria com a qual seus intelectuais pensaram a vida humana e seu destino. Um triste tempo de sofrimento, o tempo da Guerra Fria e do medo da bomba atômica arrasar o planeta. Tempo de homens divididos. Esse tempo foi o período das massas. Uma ocasião em que democracia tornou-se sinônimo de mediocridade, onde o ideal divulgado em todo o planeta era ser igual a todo mundo. Um tempo em que a massa assumiu a liderança da história e como sua protagonista alimentou os totalitarismos fascista, nazista e soviético. Esse tempo de mudanças sociais foi o palco da busca ansiosa pelo gozo rápido que termina, inevitavelmente, no vazio e na lama existencial. Esse tempo fez da política atividade suspeita e de seus líderes protagonistas da corrupção. Esse tempo foi também matéria-prima para a ação política de Mandela.
Nesse tempo de massas e de consumismo ansioso, Mandela viveu trajetória singular. Nascido em 1918, na aldeia de Mvezo,  na Província do Cabo Leste, foi educado na fé cristã da Igreja Metodista. Foi nela que aprendeu do cristianismo a dignidade de todos os homens, aprendizado que ele tornou concreto no curso de Direito. Advogado de formação tornou-se militante político na juventude quando foi seduzido pela violência como estratégia política fundando o MK (UmkhontoweSizwe), o braço armado da ANC. Preso por 27 anos, obrigado a trabalhos forçados, isolado da sociedade e quase sem direito a visitas, superou o ódio íntimo e a violência nas relações humanas. Tornou-se admirado pelos carcereiros que, depois de algum tempo, não mais lhe punham as correntes próprias do seu regime prisional. Vencendo em si o ódio e a violência habilitou-se a lutar pela aproximação entre os homens de seu país, pois é no íntimo que se vencem os ódios e é o coração o campo de batalha mais difícil de ser enfrentado. Foi superando em si o que desumaniza que ele conseguiu unir o nobre ideal da democracia à estratégia humana mais eficiente, pois nenhuma boa causa é verdadeiramente boa se tangencia o respeito e a dignidade humanos.

E como despedir desse homem agora que ele se foi? Dizendo-lhe singelamente nossa gratidão pelo que considero seu maior legado: a superação do ódio e da violência. Não porque o mistificamos agora que morreu ou porque hoje falseamos ou diminuímos seus erros, mas porque reconhecemos que Mandela se fez admirável ao vencer em si o ódio e a desconfiança, porque ele conseguiu derrotar o pior inimigo que nós temos. E qual é esse inimigo? Aquele que, no íntimo, leva à indignidade, semeia a violência e colhe a miséria existencial. Grato somos Mandela não porque desconhecemos seus limites humanos, mas porque vimos que você fez tudo o que podia para superar suas limitações e nos legar o que de melhor um homem pode alcançar ao vencer circunstância tão difícil e nos deixar a esperança de um mundo melhor: uma democracia racial construída no esforço íntimo de superação de nossos limites.

sexta-feira, 6 de dezembro de 2013

AMOR - EXIGENTE – O QUE É, O QUE FAZ E COMO FAZ. Selvino Antonio Malfatti.















Dia 5 de dezembro homenageia-se o Voluntariado. É um grupo que parece estar na contra mão da História, pois se vive num ambiente social no qual as regras da convivência, na maior parte das vezes, em vez de seguir o preceito de fazer ao outro o que queremos que nos façam, obedecem a outros critérios, tais como: faça para ti tudo o que puderes e os demais que se lixem, tire vantagem sempre e com todos, faça para ti antes que o outro faça para si, aproveite a vantagem sobre outro antes que ele faça, retribua ao outro tudo o que ele fizer para ti, não brigue, mas também não coopere.
Contrastando com este ambiente de conflito encontram-se algumas exceções. Uma delas é um programa que está se espalhando pelo mundo e já tem uma duração de três décadas, desde que surgiu em 1984. É o AMOR - EXIGENTE que visa reinserir o familiar na família e sociedade, desviado por várias formas de dependências, inclusive da droga. O Amor-Exigente atua em duas frentes básicas: 1. Preventiva – quando quer evitar que no futuro alguém busque a droga e, 2. De apoio - quando acompanha os dependentes e seus familiares. Por isso, ele se insere como um programa de proteção social, pois atua no indivíduo e família inseridos na sociedade.  O programa de Amor - Exigente não se propõe especificamente a ações terapêuticas. Estas ficam a cargo da Federação das Comunidades Terapêuticas. Estas comunidades são atendidas geralmente por igrejas como a católica, evangélicas, luteranas e outras que adotam os doze princípios. Por isso, a maioria das Comunidades Terapêuticas exige que os familiares do que está recebendo tratamento participem do Amor Exigente para aprenderem e praticarem o programa.
O programa tem como missão a proteção social atuando como fator de mudanças de comportamentos na família e sociedade, tem na mira a qualidade de vida através da prevenção da dependência química. A visão é de se apresentar como uma referência para as pessoas para melhorar o ambiente familiar e social. O caráter que nos identifica é o trabalho voluntário como organização não-governamental e sem custos para os assistidos.
Os membros do Amor - Exigente são pessoas de todas as camadas sociais e de todos os níveis de escolaridade. Possuem 11 mil voluntários os quais atendem aproximadamente 100 mil pessoas.  No Brasil há 640 grupos organizados e 260 subgrupos. Em nível nacional há a Federação de Amor Exigente – FEAE. Regionalmente existem coordenações que congregam as Associações e dentro destas funcionam os grupos e subgrupos.
O Amor – Exigente é um programa de auto e mútua ajuda sustentado pelos pilares: 12 Princípios Básicos, 12 Princípios Éticos, uma Espiritualidade pluralista, Metas semanais e responsabilidade social. Nos 12 Princípios básicos, em cada mês é debatido um deles. Desse modo, de janeiro a dezembro, são trazidos à discussão os temas: cultura, liberdade, recursos, igualdade, responsabilidade, interação, reação, crise, grupos, cooperação, disciplina e solidariedade. Os princípios éticos que regem o grupo são decorrentes da ética da convivência entre membros de um mesmo grupo e de diferentes grupos entre si. A espiritualidade não necessariamente deve estar vinculada à religião, embora se privilegie o ecumenismo cristão. A Partilha é o momento culminante da reunião do grupo e subgrupo, pois, através dela, cada um pode externar as dificuldades e conquistas proporcionar aos demais membros uma aprendizagem e, àquele que a socializa, uma captação de apoios. A proposição de metas individuais e grupais serve como parâmetro de avaliação do crescimento.
As reuniões do Grande Grupo possuem um ritmo pré-estabelecido: Espiritualidade (10 minutos), Estudo do Princípio do mês (30 minutos), Avisos e formação de subgrupos (5 minutos).
Após isto, formam-se pequenos grupos - os subgrupos – que terão enfoques específicos, dependendo de suas características. O número de subgrupos varia de grupo para grupo, pois depende das necessidades e possibilidades de cada grupo.  Os mais freqüentes são: grupo de pais, grupo de jovens, grupo de Amor - Exigentinho, grupo de cônjuges, grupo de sempre é tempo, grupo de familiares, grupo de recuperados, grupo de iniciantes, grupo de familiares tentando enviar familiar para tratamento, grupo de adolescentes encaminhados pela promotoria, grupo de familiares de adolescentes.
Quem já assistiu as partilhas dos depoentes sabe que há toda sorte de casos: maridos, esposas e filhos dependentes químicos e alcoólatras. Filho mais velho alicia o menor e o leva para o vício. Há situações em que os familiares já tentaram de tudo, inclusive pensaram no suicídio. O refúgio geralmente é a religião. Pais que confiavam nos filhos até que descobriram que tudo não passava de mentira. O filho dizia que ia à escola, mas na verdade ia se entregar ao vício junto com outros dependentes. Não se pode acreditar candidamente no que os dependentes dizem.  Tendo em vista que o dependentes possuem uma enorme capacidade de manipulação eles conseguem enganar os demais com facilidade. Quando alguém diz que fuma maconha uma vez ou outra, ele é viciado contumaz. Quando se acha alguma droga no seu quarto não é para o consumo pessoal, mas para venda. Quando se encontra alguma droga nos bolsos é para um amigo...e assim por diante. O que o dependente diz dificilmente corresponde à verdade. Alguns, como mortos-vivos, carregam seu próprio corpo, perambulando nos lares e ruas, roubando e destruindo tudo o que encontram pela frente para saciar o vício. Destroem famílias, matam seus próprios pais ou irmãos, cidadãos inocentes. É uma guerra “sem reféns”. E o pior, neste cenário, tudo o que for feito por si sós, em termos de esperança, muito pouco valerá. Outros, silenciosamente “curtem” sua droga preferida, sem alarde, anonimamente, vivendo uma vida “normal”, no entanto, escravos da dependência. Neste contexto, a organização Amor - Exigente, atua como apoio e orientação aos familiares de dependentes químicos, bem como pessoas com comportamentos inadequados.


sexta-feira, 29 de novembro de 2013

VIDA ESPECIALMENTE HUMANA. José Mauricio de Carvalho.






Estes dias reencontrei antigos colegas de curso na comemoração de trinta e dois anos de conclusão da formação universitária. E ao revê-los todos e todas na incontida alegria do reencontro deparei-me com existências maravilhosas, vidas dedicadas ao que nunca pude imaginar quando convivia com aqueles moços e moças. Não se sai impune de um reencontro em que se escuta do colega, que tem nos olhos a ternura amadurecida no sofrimento, que viveu esses anos para estudar, amparar, acompanhar e aliviar as dores de pessoas diagnosticadas esquizofrênicas. Que vida é essa, é inevitável que se pergunte?
Desde que se consolidaram os primeiros núcleos de civilização os homens se perguntam sobre o que seria uma vida propriamente humana. A simples pergunta nos coloca diante da constatação: uma vida singularmente humana não se limita a responder aos desafios imediatos da sobrevivência. Se conseguir os meios de sobreviver é importante, viver por viver nunca pareceu valer a pena. Sem se encantar, apaixonar-se, entregar-se, a vida humana é uma pobre experiência de sentido.
Encantar-se tem algo irracional no sentido de que não dedica a cuidar dos que sofrem por decisão exclusivamente racional, não se decide escolher um companheiro ou companheira simplesmente fazendo um balanço intelectual, não se escolhe um amor como se busca um bom reprodutor ou reprodutora para gerar filhos bonitos e saudáveis. Uma vida sexual satisfatória só ganha charme e duração quando além do contato físico propicia momentos de partilha do mundo do outro. Ortega y Gasset falava de um descansar no outro que é para quem ama um lugar feliz de acolhimento. E o encantar-se é a possibilidade de olhar de perto a personalidade do outro, de encontrar as analgesias para a alma submetida à distância incômoda e inevitáveis ciúmes e experimentar a terna superação das mágoas involuntariamente causadas.
Encantar-se é levar o componente irracional da paixão, ou melhor, transferir o olhar maravilhado do amado para o cuidado com os que sofrem, para as amizades cultivadas, para o ato criador de beleza e bondade. Isto permitiu construir mais que um simples lugar para viver, mas criar um espaço cultural que é uma espécie de segunda pele. Uma pele em que nos sentimos verdadeiramente homens, mais do que quando estamos dentro de nossa pele corporal que nos mantém protegido das inadequadas condições para a vida biológica.
Encantar-se é também comprometer a inteligência com a verdade, mergulhar numa procura diuturna do que vale a pena conhecer, apreciar, avaliar e aprender. Encantar-se está na base da Filosofia. Ela é uma forma de admiração que Aristóteles observa no comportamento do antigo grego quando ele desejava entender os movimentos do universo e com tal preocupação chegou à Filosofia, o maior bem com que os deuses presentearam os homens. Encantar-se, portanto, tem algo irracional, mas não é irracionalismo ou misticismo que ordinariamente alimentam crenças ruins e nos colocam na mentira e na dúvida.
Uma vida especialmente humana é uma criação, é uma realização pessoal que ocorre para além das exigências biológicas, para além da rotina e das repetições sem sentido. E uma vida humana está, em nossos dias, cada vez mais comprometida com relações respeitosas com o ambiente, com o reconhecimento da dignidade dos outros que une todos numa humanidade comum, apesar das diferenças e singularidades. Uma vida dedicada à superação da violência. Enfim, uma vida que se realiza em direção ao futuro, no ir adiante dos limites atuais para encontrar no que transcende a experiência fenomênica os elementos de sentido que diferenciam a vida do homem de outras formas de existir. Uma vida onde o sentido suplanta as dores do momento e o gozo efêmero que ao acabar deixa o vazio da angustia
E só então, pelos imprescindíveis momentos em que vamos além das exigências diárias, é que a vida humana adquire o sentido singular que a diferencia de outras formas de existir. É nessas ocasiões que se fortalece o compromisso com a singularidade que nos faz tão diferentes sob a humanidade comum. É na construção de sentido único que vemos alguém fazer do cuidado com os que sofrem uma razão para a própria vida.


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