Muitas páginas foram
escritas sobre o filósofo theco-brasileiro Vilém Flusser, outras mais sobre os
temas que abordou. Assim caminha a razão humana, reavaliando o que se fez e construindo
pontes para o enfrentamento dos problemas que a vida oferece e renova
aproveitando-se de elementos herdados do passado.
Podemos olhar a obra de
Flusser de várias perspectivas, dividindo-a, por exemplo, pelo momento
histórico de sua elaboração destacando os escritos da juventude vivida na
República Tcheca, mencionando aqueles da vida adulta elaborados no Brasil e,
finalmente, indicando os elaborados nos dias da maturidade quando retornou à
Europa fixando residência na França. Podemos também estudar o autor a partir de
um conceito nuclear, como fez Rodrigo Duarte ao fazer a hermenêutica filosófica
de Flusser girar entorno ao conceito de Pós-história ou então destacar a
importância da dúvida na meditação filosófica como fez Gustavo Bernardo. Está bem
dos dois modos, podemos dialogar com o autor por essas formas. Prefiro, no entanto, dividir seus textos em
duas partes. Inicialmente inserindo os escritos que explicam a crise de cultura
que vivemos com suas causas e depois aqueles outros que descrevem a sociedade
atual e a proposta de superação da crise. A primeira parte contempla o
diagnóstico dos tempos de crise que vivemos e aí estão os estudos sobre a
pós-história e a segunda na descrição da sociedade atual onde estão os textos
sobre a sociedade telemática e seu destino.
A divisão aqui sugerida é
didática porque a noção de pós-história culmina na superação da escrita em
linha, da consciência histórica e sua substituição pelas imagens técnicas e os
textos que descrevem a sociedade telemática inicia justo quando se processa
essa substituição. Vemos surgir o mundo dos aparelhos e funcionários que
utilizam as imagens técnicas, aquelas feitas pelos aparelhos (máquinas
fotográficas, filmes, gravações, etc.) e usam mais recentemente as máquinas e o
computador. Na prática é difícil dizer até esse texto estamos na primeira parte
e agora passamos a segunda. Essa divisão tem ainda a dificuldade de incluir
toda a preparação para a construção do conceito de pós-história a partir dos
textos sobre a história dos tempos vividos no Brasil, como detalha Rodrigo
Duarte.
A divisão proposta tem
caráter hermenêutico. A noção de pós-história reconstrói, de forma criativa, a
compreensão flusseriana de que o historicismo do século XIX estava superado e
isso é interessante, mas não era novidade. Ortega y Gasset, por exemplo,
explicara porque as ideias de Hegel e Marx já não serviam para tratar o mundo
que ele vivia, embora tivessem sido essenciais para entender o século XIX.
Flusser segue Ortega e os outros fenomenólogos como Edmund Husserl que
recusaram um historicismo que progride em linha em direção a um futuro
grandioso e inexorável e recusaram as ideias econômicas de Marx e Engels. Essa
constatação é importante porque qualquer intelectual de nossos dias sabe que
defender o humanismo ou uma sociedade mais fraterna não significa retornar ao
marxismo ou ao socialismo marxista muito menos repetir historicismo do passado
como o de Giambattista Vico, Joaquim de Fiori ou outro historicista como Johann Gottlieb Fichte e Friedrich Wilhelm Joseph Schelling. No
entanto, a recusa dos historicismos passados não representa para os
fenomenólogos uma recusa da consciência histórica ou possibilidade de pensar a
história em fases como fez Karl Jaspers, pois sem a consciência histórica não
há identidade possível às pessoas ou povos. Esse é um equívoco daqueles que
desprezam os estudos históricos. Além do mais, perde-se um recurso
extraordinário de recuperar no passado elementos para construir pontes para o
futuro. Nisso está o problema dessa parte de suas ideias.
E o que faz Flusser recusar
o pensamento histórico? Foi a sua experiência com os nazistas e a perseguição
aos judeus durante a Segunda Guerra. Flusser avaliou que os instrumentos de
destruição utilizados pelos nazistas estavam implícitos na objetivação da
pessoa inserida no projeto historicista judaico-cristão que forma a espinha
dorsal do ocidente. E então recusou o instrumento de destruição de sua família,
voltando-se contra o ocidente e sua alma judaico-cristã, sua fé transcendente e
os valores culturais. Ao recusar o historicismo da cultura ocidental que
culminava na transformação do homem em coisa ou funcionário. Portanto, o homem
massa ou funcionário não era um desvio de rota, mas algo da essência da cultura
ocidental. Recusando a fé religiosa, a espiritualidade humana mesmo no sentido
fenomenológico, Flusser construiu uma antropologia materialista de inspiração
psicanalítica, seguindo outro judeu Sigmund Freud. O criador da psicanálise, à
parte de sua enorme contribuição para entender a alma (psique) humana, de forma
diferente de Flusser fez o mesmo que ele, atribuiu à fé e cultura judaica a
razão da perseguição que aquele povo sofria. Flusser radicalizou a recusa do
judaísmo e cristianismo recusando a cultura ocidental e desejando matá-la para
colocar outra coisa no lugar. Nesse sentido a sociedade que via nascendo, a
sociedade telemática ou de massas era o ponto de chegada do ocidente. Auschwitz fora um momento desse processo.
Quanto à descrição da
sociedade atual, caracterizada pela sociedade telemática, podemos dizer que
significa uma atualização bem elaborada da sociedade de massas de Ortega y
Gasset. Flusser argutamente observou os aspectos de uma sociedade de massas que
vive não mais num capitalismo industrial. Também que o homem massa não era
apenas infantil, birrento e bárbaro como dizia Ortega, mas dominado pela
linguagem da tecnologia, abandonou a consciência crítica, histórica,
oportunizando a emergência de governos ditatoriais, figuras toscas e desumanas
como o nazista Adolf Hitler e suas novas versões contemporâneas. Visão genial
de por onde andamos nesses dias de reavivamento da extrema-direita e seu
desprezo pelo humanismo, pelos estudos históricos e pela racionalidade,
inclusive a científica. Para Flusser, existe, nessa sociedade telemática, uns
poucos responsáveis pela programação dos aparelhos no centro da vida humana e
seriam eles os responsáveis por vencer a mecanização do mundo, oportunizando o
surgimento de uma sociedade de homens que se divertem entre as tarefas que
executam. Esse homem lúdico que vive se divertindo é o seu modelo de homem que
enxerga para essa sociedade em crise. No entanto, nem a vida é brincadeira,
embora brincar seja parte da vida, nem nosso futuro pode depender de
programadores que cortaram os laços com a consciência crítica, o humanismo e a
consciência histórica. Isso porque, se a sociedade telemática de Flusser
realmente se implantar, nela não haverá espaço para contatos que desfaçam a
lógica do controle realizado pelos aparelhos.
Essa forma de examinar o
pensamento de Flusser permite notar suas boas contribuições, tanto na superação
do historicismo do século XIX, quanto na compreensão da crise vinda da atual
sociedade de massas guiada por aparelhos, com funcionários vivendo entre
aplicativos e outras criações da informática. Porém esse método mostra os
limites do pensamento de Flusser perdido na recusa do humanismo, da consciência
histórica, dos valores judaico-cristãos, da Filosofia e da fé em Deus, qualquer
que seja sua forma de compreensão. Flusser perdeu-se ao se afastar de sua raiz
ocidental e judaica.
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