Quando
apresentou sua comunicação O mito do
homem além da técnica no Congresso de arquitetura de Darmstäder, em 1951,
Ortega y Gasset estabeleceu, não de forma proposital, uma polêmica com um dos
grandes filósofos alemães daquele momento: Martin Heidegger. O alemão, no mesmo
Congresso, apresentara uma outra comunicação denominada Edificar, morar e pensar.
A
divergência, Ortega explicou detalhadamente num artigo denominado Anejo: En torno al colóquio de Darmstadt,
1951 que foi publicado no jornal espanhol Tánger. Seu núcleo estava na
interpretação do termo wohnen
(habitar), usada por Heidegger, numa reconstrução etimológica, como habitação.
Na interpretação de Heidegger wohnen
está próximo de bauen ( buan),
significando ambas sou, no sentido de
que estou vivo. Na tradição latina, explica Ortega, esse mesmo sentido de
crescimento orgânico veio do verbo nascor,
raiz de natura ou natureza em português. No entanto, esclarece Ortega, mesmo
ficando na tradição indogermânica é difícil que as palavras wohnen e bauen significassem ser equivalendo-se, pois ser é uma ideia
abstrata demais para estar na raiz da língua. A discordância de Ortega não está
na possibilidade de reconstruir etimologicamente os termos, no que Heidegger
era um mestre notável, mas na tentativa de fazer isto fora do que Ortega
denomina campos pragmáticos. Campos pragmáticos, o que é isto?
Por
campo pragmático, Ortega y Gasset entende um conjunto de palavras que se
associam num determinado espaço vital. A vida humana possui diversos espaços
vitais como o mundo dos negócios, da religião, do amor, da arte, do saber, etc.
Parece a Ortega que não basta reconstruir o historicamente o sentido de uma
palavra se a reconstrução for desconectada do campo vital. Só entendemos a vida
humana articulada nesses campos pragmáticos.
A tentativa de reconstrução etimológica de Heidegger ficou incorreta
porque ele desconsiderou os campos pragmáticos. A noção orteguiana de campo se
sustenta na compreensão de vida humana como realidade circunstancial, a ponto
dele escrever nas Meditações do Quixote
que "eu sou eu e minha circunstância e se não salvo ela, não salvo também
a mim". Não há, portanto, existência humana fora do mundo.
O
artigo orteguiano, bastante longo, foi publicado aos pedaços durante sete dias
de 14 a 21 de janeiro de 1953 numa espécie de novela para povo culto que
acompanhou e comentou os textos do filósofo. O resumo do artigo é fundamental
para entendermos a posição de Ortega no Congresso de arquitetos de Darmstäder
em 1951. No artigo Ortega trata a arquitetura como a arte pela qual o homem
reconstrói sua relação com o mundo, o que fazia muito sentido para os
arquitetos alemães, ocupados no início dos anos 50 com a reconstrução do país
quase todo destruído no final da Segunda Guerra Mundial.
Ortega
reflete com os arquitetos sobre o sentido da arte de construir e chama atenção
para o seu caráter coletivo. O verdadeiro arquiteto é o povo, a nação. Ortega
chama atenção dos arquitetos que se uma cidade fosse construída por arquitetos
geniais, porém cada um por si, sem nenhuma relação com os demais, a cidade
levantada seria um desastre. Ainda que cada edificação individualmente pudesse
ser interessante, o conjunto seria bizarro. As edificações disputariam entre si
de forma a chamar atenção só para ela desconectada do conjunto, como faz um
sujeito imaturo que, num evento social, quer chamar atenção para si. Assim, se
um arquiteto faz um projeto pessoal, diferente do que foi elaborado pelo povo
não é propriamente um bom arquiteto, perde-se do estilo, afasta-se de grande
arquiteto: o espírito coletivo. Escreveu Ortega (1997): "Os edifícios são
como um gesto social. O povo inteiro fala neles. É uma confissão geral da
chamada alma coletiva" (Anejo. O. C., v. IX, Madrid, Alianza, p. 627).
Como
entender a posição de Ortega? Queria ele dizer na comunicação feita naquele
Congresso que o arquiteto não é um técnico que pode ser genial quando projeta,
na intimidade de seu escritório de trabalho, uma edificação com a qual o homem
se adapta ao meio ambiente, ordinariamente inóspito? Suas palavras
significariam que não há espaço para a inovação, mas apenas a repetição de
estilos que se consolidaram na história de um povo? Entendo que não é o caso.
O
intento inicial de Ortega y Gasset parece ser o de mostrar a contribuição do
filósofo para os diversos campos do saber. O filósofo não é um superarquiteto
que vai dizer aos arquitetos como tocar seu trabalho. Assim como o filósofo não
é um artista quando reflete sobre a arte, nem se torna sacerdote quando pensa a
religião e a fé, nem pretende ser cientista ou substituí-lo quando fala da
ciência. O filósofo não vai se sentar em seu gabinete de trabalho para fazer um
projeto arquitetônico. O que ele faz então? O que faz é aclarar as coisas,
deixá-las compreensíveis, no tanto que isto é possível considerando que a arte
de construir é parte da vida humana. E há mais, não é ele que ordinariamente
cria a necessidade da clareza, é a sociedade que coloca o problema e espera uma
resposta. É a sociedade que num determinado momento quer saber o que é a
ciência e porque ela é válida? É o grupo social que pergunta pelo papel da arte
na vida e o que se quer com as religiões.
Quanto
ao sentido coletivo da arquitetura o que parece Ortega deseja destacar é que a
cidade é obra coletiva de um povo. Não é possível que alguém construa, seja ele
um arquiteto formado ou um arquiteto popular, sem considerar o conjunto que ali
se encontra e que foi obra do povo. Ainda que haja espaço para inovação ela
precisa ser guiada pela arte e pela harmonia. Pela arte na execução de obra
graciosa e funcional, na harmonia para respeitar a ordem e disposição das
partes no todo, considerando as novas edificações: o volume, os materiais
empregados, a funcionalidade do conjunto, o uso concebido e consagrado. Uma obra
fora deste conjunto é como um corpo sem conexão com o pensamento, para usarmos
a expressão de Leibniz na sua concepção de harmonia pré-estabelecida. Assim,
não parece que Ortega estivesse negando a habilidade singular do técnico
arquiteto, sua contribuição pessoal na recuperação de um monumento ou na
edificação de outro. A liberdade pessoal de criação fica assegurada balizada
pelos elementos coletivos que presidem a edificação da cidade ou monumento. Se
assim for como entendemos que é, Ortega estava defendendo o profissional
formado já que ele, melhor que o arquiteto popular, embora não exclusivamente,
tem sensibilidade para perceber a dinâmica de crescimento da cidade, a
necessidade de preservar estilos já consagrados, o treinamento para incorporar
a estética no espaço edificado. E dizia mais, os arquitetos alemães tem um
sentido de história que os arquitetos de nações jovens (como os americanos) não
possuem.
Toda
a discussão abre espaço para a tese de que as novas edificações devem respeitar
o espaço já edificado, dando especial
relevo as cidades históricas e seus monumentos que são síntese da história do
povo. Elas devem ser preservadas e mantidas como expressão da cultura do povo.
Nelas com o maior cuidado devem ser pensados os novos bairros e edificações,
nelas as inserções só podem ser feitas com extrema responsabilidade.
Verdade que não se questiona.
ResponderExcluirUm olhar criterioso,análise perfeita.
ResponderExcluirMuito interessante,não tem como desassociar o momento presente na história da arquitetura.
ResponderExcluirInteressante e didaticamente ótima explicação,mas não tenho conhecimento e capacidade para interpretar e responder-,GOSTEI.
ResponderExcluirMuito bom.
ResponderExcluirUma verdade, muito real.
ResponderExcluirUm belo artigo,muito esclarecedor. Faltam adjetivos para elogiar,mas está muito legal.
ResponderExcluirÉ uma explicação muito filosófica,claro um presente para seus leitores não esclarecidos o suficiente,mas li,reli,procurei entender e aprendi. AGRADEÇO.
ResponderExcluirA ordem seria morar e conhecer,pensar para edificar.Valeu a orientação.
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