sexta-feira, 27 de dezembro de 2013

Ano Novo. José Maurício de Carvalho.





A contagem do tempo em anos é a forma humana de melhor identificar o que passou e colocar os fatos na ordem em que ocorreram. É mais simples localizar e ordenar os acontecimentos dessa maneira, situando-os nos séculos e lugares do mundo. Contudo, a celebração de cada novo ano no calendário solar mostra que vivemos no tempo com os olhos e a esperança no futuro. Já houve época em que a esperança era alimentada por ilusões. Hoje estamos mais maduros, não podemos nos iludir de que esperança se separe do compromisso de fazer boas escolhas e realizar com qualidade nossos trabalhos. Quando avaliamos que a vida é produto das escolhas, temos que assumir com responsabilidade a criação do futuro. O que vem não é mera continuidade ou repetição do passado.
Se a vida um que fazer contínuo, isto é, proceder escolhas todo tempo em meio à insegurança desse processo, então viver é olhar o horizonte. Olhar o futuro a partir de qual ponto? Do presente pessoal e do da sociedade. Escolhe-se, especialmente, pelo que se projeta além desse presente, pelo que dá sentido a ele, pelo que lhe enche de esperança. Entretanto, se o futuro não é continuação do já vivido, não se pode sonhá-lo sem considerar nossa história, sem o impacto e a incorporação do passado.
O ano novo virá para nós com novas realizações, novas pessoas, novas tecnologias, novos conhecimentos, novas criações, novas crenças, enfim, muitas coisas novas. Mas esse mundo antevisto nos sonhos de esperança não é produto do acaso, ele é criação do homem iluminado por um projeto. E que mundo é esse a surgir na esperança de hoje? É um mundo capaz de vencer a violência das cidades, de assegurar dignidade a crescente número de pessoas, de superar guerras e revoluções como solução para as diferenças políticas. Violência que cresce quando queremos uma vida mais rápida do que ela pode ser experimentada, quando aspiramos mais coisas do que somos capazes de adquirir e o mundo de fornecer, quando perdemos o afeto nas relações e o sentido da dignidade no trato com as pessoas. O presente vivido na pressa, dirigida para o consumo ansioso e sem obrigação da excelência numa vida autenticamente nossa, é tempo de violência, de corrupção, de drogas, de insatisfação e de gozo irresponsável.
Não quero apenas desejar um feliz ano novo, é necessário pedir que todos o construam mais próximo de nossa esperança, realizando responsavelmente seu trabalho, vivendo relações pessoais mais iluminadas pela amizade e benevolência, descobrindo o significado particular e o sentido da própria vida.
E se reconheço que a vida que me anima é semelhante, mas não igual a dos animais que diariamente estão à minha volta, se essa diferença dos outros seres vivos nasce da fé e esperança em Deus, não importa o nome de Deus ou a forma como Ele seja cultuado, então a obrigação de renovar o mundo, aquele compromisso mencionado no parágrafo anterior, ganha uma outra justificativa. Nessa fé nasce um pacto não só com a humanidade presente em cada homem, mas com Deus que espera nossa colaboração para fazer o sol nascer, todos os dias, sobre um mundo melhor. Então toda história da humanidade, que não está além dos fenômenos experimentados, torna-se transfigurada e iluminada pela esperança capaz de vencer a insegurança, a ruína, a angústia e a morte.

Façamos um 2014 feliz, pois não se justifica a esperança que não nasce do reconhecimento da dignidade humana e da responsabilidade pessoal pela construção de um futuro melhor. Pois esperança não é otimismo ou ingenuidade, esperança é responsabilidade, é esforço consciente para mudar o futuro, dedicação ao que nos distingue dos outros entes.

sexta-feira, 20 de dezembro de 2013

OS DOIS NATAIS. Selvino Antonio Malfatti.



Aproxima-se o Natal e com ele as confrontações entre o Natal originário e o atual. Uns lembram que está esquecendo-se do aniversariante cujo nascimento foi marcado pela extrema pobreza. Outros se preocupam para que tudo saia de acordo com o planejado com mensagens de Boas Festas, ceias, jantares, presentes.
Realmente o Messias nasceu numa gruta que servia de estrebaria, sem pompa e no anonimato. Certamente Deus poderia ter mudado a cabeça de Augusto para não fazer o recenseamento justamente na data do nascimento de seu Filho, poderia ter evitado que Herodes mandasse matar todas as crianças da Judeia, que a Sagrada Família tivesse que fugir para o Egito e assim por diante. Por que tudo isso aconteceu? Certamente não é fácil a resposta.
Embora pessoalmente partidário do Natal originário, quero me fixar um pouco sobre as comemorações, festas e presentes que ocupam a maior parte do Natal nos dias de hoje para tentar dar uma explicação sobre o fenômeno.
A partir do advento do Salvador Jesus Cristo a história da humanidade tomou outros rumos. Os primeiros momentos do cristianismo foram estritamente religiosos. Os valores antigos foram pouco a pouco sendo substituídos pelos novos, embora a carcaça pagã tenha permanecido. Foi semelhante ao processo de transformação da madeira em pedra ou a substituição da matéria orgânica em sílica. Num segundo momento os valores cristãos assumiram um caráter político e passaram a ser referência de poder. Foi neste momento que se disseminaram em escala universal. Passaram a fazer parte da cultura de todos os povos. Os principais deles: a valorização do Homem (e da mulher) na sua dignidade, liberdade, igualdade e fraternidade e a justiça social com suas exigências. Em terceiro, no estágio que nos encontramos, os valores cristãos estão tomando vida autônoma. Desprenderam-se do cristianismo como religião e assumiram uma postura laica. Existe na atualidade uma cultura de origem cristã, no entanto, não se auto-identifica com a religião. Ela impregna toda nossa sociedade. É nisso que reside a tensão: é cristão, mas não se identifica com a religião cristã. Por isso mesmo, há as comemorações com festas, troca de presentes, sem nexo com a religião. Estas práticas não fazem parte do religioso-cristão, mas de uma cultura cristã. Por causa disso ocorrem dois natais: o religioso cristão e o cultural cristão. O primeiro é identificado com a pobreza e o segundo como falsificado. No entanto, não parece que haja contradição entre o Natal cristão e o Natal cultural.
O problema não está no que vai para a mesa, nos presentes, nas festas de comemorações, mas no sentido daquilo que se faz. Quando o sentido originário foi desviado, temos outra realidade. Isto não significa que é ruim ou mau. Apenas um pluralismo cultural. O próprio Cristo incentivava o pluralismo. Não condenou, mas aceitou que Madalena quebrasse um alabastro de perfume caríssimo para ungir Seus cabelos. Ia cear com pessoas de posses e mesmo pecadoras. Ele mesmo na última ceia comemorou a Páscoa numa sala emprestada de uma arquitetura divinamente bela. Concordou que o rico José de Arimateia lhe emprestasse um túmulo. Apreciava descansar na casa de Maria e Lázaro que não eram pobres. Contudo, condenava: a ganância, o roubo, a riqueza conseguida fraudulentamente. Por quê? Por que se desviaram do sentido que deveriam ter. Fica claro, então, que o Natal cristão e o cultural não são contraditórios, mas diferentes.
Paradoxalmente muitas vezes estas críticas ao Natal cultural provêm até de falsos pobres. Condenam aquilo que coletivamente têm em abundância: enormes prédios, propriedades, comida farta, segurança e total despreocupação com o dia de amanhã. Embora individualmente possam ter pouco, coletivamente têm muito, pois nada lhes falta. Pobreza é não ter nem individualmente e nem em conjunto. E isto pode acontecer por renúncia voluntária (como Francisco) ou por necessidade como os excluídos. Ambos podem comemorar o sentido do Natal, mas para os segundos é infinitamente mais difícil, senão impossível. Diz um ditado popular: quando a pobreza bate à porta, a alegria sai pela janela.
Por isso, não é por comemorar com festas e presentes - ou sem eles - que o Natal é bem ou mal comemorado, mas quando se desvirtua do sentido, isto é, ser cristão, religioso ou cultural.  A Encíclica de exortação de Francisco, Evangelii Gaudium, vai nesse sentido. Os bens são maus quando eles submetem o homem, exigindo adoração como Bezerro de Ouro da Bíblia. Os bens devem estar a serviço do homem e não vice-versa, diz Francisco.



sexta-feira, 13 de dezembro de 2013

Nelson Mandela, gratidão. José Maurício de Carvalho





Lembrar de Mandela com objetividade e equilíbrio agora que o perdemos não é fácil. É difícil separar o homem de gestos serenos do herói nacional dos sul-africanos disposto a morrer pela causa que abraçou. O que dizer,com verdade, de quem seu povo reconhece como pai da pátria?Como separar o homem do Chefe de Estado admirado em todo o mundo, o ex – Presidente que mereceu reconhecimento dos principais líderes mundiais no dia de sua morte? Como se referir ao homem cordial e de sorriso gentil cuja imagem delicada esteve em todos os televisores do mundo?O que nos deixa Mandela, agora que já não estamos fisicamente com ele? O que primeiramente aparece como seu legado é uma democracia multi-racial a enfeitar um dos mais belos cenários do continente africano. Uma democracia que Mandela fez brotar de um regime desigual e injusto. A África do Sul era antes de sua ação política o país do apartaheid, o regime político e social que separava brancos e negros. Esse país onde os homens foram separados primeiro pelo ódio e preconceito e depois pelo arame farpado e pelos muros foi a matéria-prima que ele teve para criar uma democracia de homens livres e iguais perante a lei e o Estado.
E o que mais dizer da circunstância à qual esteve associada sua vida? Nelson Mandela nasceu quando a Belle Époque dava os últimos respiros e o mundo mergulhava nas piores guerras de sua história. Seus dias nesse planeta foram os de revoluções cruéis como a espanhola e soviética. Lições de crueldade e intolerância não lhe faltaram. Um mundo que passou por uma crise econômica sem comparação, crise que destruiu milhões de vida, que mudou o perfil das famílias, que transformou a angústia na categoria com a qual seus intelectuais pensaram a vida humana e seu destino. Um triste tempo de sofrimento, o tempo da Guerra Fria e do medo da bomba atômica arrasar o planeta. Tempo de homens divididos. Esse tempo foi o período das massas. Uma ocasião em que democracia tornou-se sinônimo de mediocridade, onde o ideal divulgado em todo o planeta era ser igual a todo mundo. Um tempo em que a massa assumiu a liderança da história e como sua protagonista alimentou os totalitarismos fascista, nazista e soviético. Esse tempo de mudanças sociais foi o palco da busca ansiosa pelo gozo rápido que termina, inevitavelmente, no vazio e na lama existencial. Esse tempo fez da política atividade suspeita e de seus líderes protagonistas da corrupção. Esse tempo foi também matéria-prima para a ação política de Mandela.
Nesse tempo de massas e de consumismo ansioso, Mandela viveu trajetória singular. Nascido em 1918, na aldeia de Mvezo,  na Província do Cabo Leste, foi educado na fé cristã da Igreja Metodista. Foi nela que aprendeu do cristianismo a dignidade de todos os homens, aprendizado que ele tornou concreto no curso de Direito. Advogado de formação tornou-se militante político na juventude quando foi seduzido pela violência como estratégia política fundando o MK (UmkhontoweSizwe), o braço armado da ANC. Preso por 27 anos, obrigado a trabalhos forçados, isolado da sociedade e quase sem direito a visitas, superou o ódio íntimo e a violência nas relações humanas. Tornou-se admirado pelos carcereiros que, depois de algum tempo, não mais lhe punham as correntes próprias do seu regime prisional. Vencendo em si o ódio e a violência habilitou-se a lutar pela aproximação entre os homens de seu país, pois é no íntimo que se vencem os ódios e é o coração o campo de batalha mais difícil de ser enfrentado. Foi superando em si o que desumaniza que ele conseguiu unir o nobre ideal da democracia à estratégia humana mais eficiente, pois nenhuma boa causa é verdadeiramente boa se tangencia o respeito e a dignidade humanos.

E como despedir desse homem agora que ele se foi? Dizendo-lhe singelamente nossa gratidão pelo que considero seu maior legado: a superação do ódio e da violência. Não porque o mistificamos agora que morreu ou porque hoje falseamos ou diminuímos seus erros, mas porque reconhecemos que Mandela se fez admirável ao vencer em si o ódio e a desconfiança, porque ele conseguiu derrotar o pior inimigo que nós temos. E qual é esse inimigo? Aquele que, no íntimo, leva à indignidade, semeia a violência e colhe a miséria existencial. Grato somos Mandela não porque desconhecemos seus limites humanos, mas porque vimos que você fez tudo o que podia para superar suas limitações e nos legar o que de melhor um homem pode alcançar ao vencer circunstância tão difícil e nos deixar a esperança de um mundo melhor: uma democracia racial construída no esforço íntimo de superação de nossos limites.

sexta-feira, 6 de dezembro de 2013

AMOR - EXIGENTE – O QUE É, O QUE FAZ E COMO FAZ. Selvino Antonio Malfatti.















Dia 5 de dezembro homenageia-se o Voluntariado. É um grupo que parece estar na contra mão da História, pois se vive num ambiente social no qual as regras da convivência, na maior parte das vezes, em vez de seguir o preceito de fazer ao outro o que queremos que nos façam, obedecem a outros critérios, tais como: faça para ti tudo o que puderes e os demais que se lixem, tire vantagem sempre e com todos, faça para ti antes que o outro faça para si, aproveite a vantagem sobre outro antes que ele faça, retribua ao outro tudo o que ele fizer para ti, não brigue, mas também não coopere.
Contrastando com este ambiente de conflito encontram-se algumas exceções. Uma delas é um programa que está se espalhando pelo mundo e já tem uma duração de três décadas, desde que surgiu em 1984. É o AMOR - EXIGENTE que visa reinserir o familiar na família e sociedade, desviado por várias formas de dependências, inclusive da droga. O Amor-Exigente atua em duas frentes básicas: 1. Preventiva – quando quer evitar que no futuro alguém busque a droga e, 2. De apoio - quando acompanha os dependentes e seus familiares. Por isso, ele se insere como um programa de proteção social, pois atua no indivíduo e família inseridos na sociedade.  O programa de Amor - Exigente não se propõe especificamente a ações terapêuticas. Estas ficam a cargo da Federação das Comunidades Terapêuticas. Estas comunidades são atendidas geralmente por igrejas como a católica, evangélicas, luteranas e outras que adotam os doze princípios. Por isso, a maioria das Comunidades Terapêuticas exige que os familiares do que está recebendo tratamento participem do Amor Exigente para aprenderem e praticarem o programa.
O programa tem como missão a proteção social atuando como fator de mudanças de comportamentos na família e sociedade, tem na mira a qualidade de vida através da prevenção da dependência química. A visão é de se apresentar como uma referência para as pessoas para melhorar o ambiente familiar e social. O caráter que nos identifica é o trabalho voluntário como organização não-governamental e sem custos para os assistidos.
Os membros do Amor - Exigente são pessoas de todas as camadas sociais e de todos os níveis de escolaridade. Possuem 11 mil voluntários os quais atendem aproximadamente 100 mil pessoas.  No Brasil há 640 grupos organizados e 260 subgrupos. Em nível nacional há a Federação de Amor Exigente – FEAE. Regionalmente existem coordenações que congregam as Associações e dentro destas funcionam os grupos e subgrupos.
O Amor – Exigente é um programa de auto e mútua ajuda sustentado pelos pilares: 12 Princípios Básicos, 12 Princípios Éticos, uma Espiritualidade pluralista, Metas semanais e responsabilidade social. Nos 12 Princípios básicos, em cada mês é debatido um deles. Desse modo, de janeiro a dezembro, são trazidos à discussão os temas: cultura, liberdade, recursos, igualdade, responsabilidade, interação, reação, crise, grupos, cooperação, disciplina e solidariedade. Os princípios éticos que regem o grupo são decorrentes da ética da convivência entre membros de um mesmo grupo e de diferentes grupos entre si. A espiritualidade não necessariamente deve estar vinculada à religião, embora se privilegie o ecumenismo cristão. A Partilha é o momento culminante da reunião do grupo e subgrupo, pois, através dela, cada um pode externar as dificuldades e conquistas proporcionar aos demais membros uma aprendizagem e, àquele que a socializa, uma captação de apoios. A proposição de metas individuais e grupais serve como parâmetro de avaliação do crescimento.
As reuniões do Grande Grupo possuem um ritmo pré-estabelecido: Espiritualidade (10 minutos), Estudo do Princípio do mês (30 minutos), Avisos e formação de subgrupos (5 minutos).
Após isto, formam-se pequenos grupos - os subgrupos – que terão enfoques específicos, dependendo de suas características. O número de subgrupos varia de grupo para grupo, pois depende das necessidades e possibilidades de cada grupo.  Os mais freqüentes são: grupo de pais, grupo de jovens, grupo de Amor - Exigentinho, grupo de cônjuges, grupo de sempre é tempo, grupo de familiares, grupo de recuperados, grupo de iniciantes, grupo de familiares tentando enviar familiar para tratamento, grupo de adolescentes encaminhados pela promotoria, grupo de familiares de adolescentes.
Quem já assistiu as partilhas dos depoentes sabe que há toda sorte de casos: maridos, esposas e filhos dependentes químicos e alcoólatras. Filho mais velho alicia o menor e o leva para o vício. Há situações em que os familiares já tentaram de tudo, inclusive pensaram no suicídio. O refúgio geralmente é a religião. Pais que confiavam nos filhos até que descobriram que tudo não passava de mentira. O filho dizia que ia à escola, mas na verdade ia se entregar ao vício junto com outros dependentes. Não se pode acreditar candidamente no que os dependentes dizem.  Tendo em vista que o dependentes possuem uma enorme capacidade de manipulação eles conseguem enganar os demais com facilidade. Quando alguém diz que fuma maconha uma vez ou outra, ele é viciado contumaz. Quando se acha alguma droga no seu quarto não é para o consumo pessoal, mas para venda. Quando se encontra alguma droga nos bolsos é para um amigo...e assim por diante. O que o dependente diz dificilmente corresponde à verdade. Alguns, como mortos-vivos, carregam seu próprio corpo, perambulando nos lares e ruas, roubando e destruindo tudo o que encontram pela frente para saciar o vício. Destroem famílias, matam seus próprios pais ou irmãos, cidadãos inocentes. É uma guerra “sem reféns”. E o pior, neste cenário, tudo o que for feito por si sós, em termos de esperança, muito pouco valerá. Outros, silenciosamente “curtem” sua droga preferida, sem alarde, anonimamente, vivendo uma vida “normal”, no entanto, escravos da dependência. Neste contexto, a organização Amor - Exigente, atua como apoio e orientação aos familiares de dependentes químicos, bem como pessoas com comportamentos inadequados.


sexta-feira, 29 de novembro de 2013

VIDA ESPECIALMENTE HUMANA. José Mauricio de Carvalho.






Estes dias reencontrei antigos colegas de curso na comemoração de trinta e dois anos de conclusão da formação universitária. E ao revê-los todos e todas na incontida alegria do reencontro deparei-me com existências maravilhosas, vidas dedicadas ao que nunca pude imaginar quando convivia com aqueles moços e moças. Não se sai impune de um reencontro em que se escuta do colega, que tem nos olhos a ternura amadurecida no sofrimento, que viveu esses anos para estudar, amparar, acompanhar e aliviar as dores de pessoas diagnosticadas esquizofrênicas. Que vida é essa, é inevitável que se pergunte?
Desde que se consolidaram os primeiros núcleos de civilização os homens se perguntam sobre o que seria uma vida propriamente humana. A simples pergunta nos coloca diante da constatação: uma vida singularmente humana não se limita a responder aos desafios imediatos da sobrevivência. Se conseguir os meios de sobreviver é importante, viver por viver nunca pareceu valer a pena. Sem se encantar, apaixonar-se, entregar-se, a vida humana é uma pobre experiência de sentido.
Encantar-se tem algo irracional no sentido de que não dedica a cuidar dos que sofrem por decisão exclusivamente racional, não se decide escolher um companheiro ou companheira simplesmente fazendo um balanço intelectual, não se escolhe um amor como se busca um bom reprodutor ou reprodutora para gerar filhos bonitos e saudáveis. Uma vida sexual satisfatória só ganha charme e duração quando além do contato físico propicia momentos de partilha do mundo do outro. Ortega y Gasset falava de um descansar no outro que é para quem ama um lugar feliz de acolhimento. E o encantar-se é a possibilidade de olhar de perto a personalidade do outro, de encontrar as analgesias para a alma submetida à distância incômoda e inevitáveis ciúmes e experimentar a terna superação das mágoas involuntariamente causadas.
Encantar-se é levar o componente irracional da paixão, ou melhor, transferir o olhar maravilhado do amado para o cuidado com os que sofrem, para as amizades cultivadas, para o ato criador de beleza e bondade. Isto permitiu construir mais que um simples lugar para viver, mas criar um espaço cultural que é uma espécie de segunda pele. Uma pele em que nos sentimos verdadeiramente homens, mais do que quando estamos dentro de nossa pele corporal que nos mantém protegido das inadequadas condições para a vida biológica.
Encantar-se é também comprometer a inteligência com a verdade, mergulhar numa procura diuturna do que vale a pena conhecer, apreciar, avaliar e aprender. Encantar-se está na base da Filosofia. Ela é uma forma de admiração que Aristóteles observa no comportamento do antigo grego quando ele desejava entender os movimentos do universo e com tal preocupação chegou à Filosofia, o maior bem com que os deuses presentearam os homens. Encantar-se, portanto, tem algo irracional, mas não é irracionalismo ou misticismo que ordinariamente alimentam crenças ruins e nos colocam na mentira e na dúvida.
Uma vida especialmente humana é uma criação, é uma realização pessoal que ocorre para além das exigências biológicas, para além da rotina e das repetições sem sentido. E uma vida humana está, em nossos dias, cada vez mais comprometida com relações respeitosas com o ambiente, com o reconhecimento da dignidade dos outros que une todos numa humanidade comum, apesar das diferenças e singularidades. Uma vida dedicada à superação da violência. Enfim, uma vida que se realiza em direção ao futuro, no ir adiante dos limites atuais para encontrar no que transcende a experiência fenomênica os elementos de sentido que diferenciam a vida do homem de outras formas de existir. Uma vida onde o sentido suplanta as dores do momento e o gozo efêmero que ao acabar deixa o vazio da angustia
E só então, pelos imprescindíveis momentos em que vamos além das exigências diárias, é que a vida humana adquire o sentido singular que a diferencia de outras formas de existir. É nessas ocasiões que se fortalece o compromisso com a singularidade que nos faz tão diferentes sob a humanidade comum. É na construção de sentido único que vemos alguém fazer do cuidado com os que sofrem uma razão para a própria vida.


sexta-feira, 22 de novembro de 2013

DISCIPLINA E ORGANIZAÇÃO COMO FERRAMENTAS PARA O PROGRESSO PESSOAL. Selvino Antonio Malfatti.











Estamos num contexto histórico em que se privilegiam o imediatismo, o momentâneo, o dado imediato. Incentiva-se, em nome da espontaneidade, aquilo que você pensa no momento, o querer agora, o pensar livre. Com isto se insere uma cultura do fácil, do “por si”, do grátis. Inclusive surge uma expressão difundida como se fosse uma verdade: “aprender brincando”. Por outro lado, consta-se que os que realmente conseguem algo de valioso são os que se dedicam com afinco, que queimam horas, dias e anos de energias. Os melhores nos vestibulares são os que se propõem e cumprem uma disciplina nos estudos, intercalados com descanso e lazer. Nas pesquisas científicas são aqueles que se dedicam anos e anos na observação rigorosa e nos estudos acadêmicos. Nos concurso os selecionados são aqueles que sacrificaram muitos momentos que outros aproveitaram para se divertirem. Temos, então, um confronto entre os que deixam a vida rolar e os que dão duro para encará-la. Em outras palavras, entre os que se impõem uma disciplina, e como conseqüência uma organização, e os que respondem às demandas que surgem ao acaso e como resultado não têm nada previsto ou organizado.
O resultado destas duas maneiras de pensar, agir e sentir todos a conhecem: a disciplina conduz, num primeiro momento, a dificuldades e, em longo prazo, ao sucesso, enquanto que o imediatismo, ao contrário, momentaneamente proporciona bem estar, mas em longo prazo, insatisfação e frustração. Quantas pessoas nós conhecemos que dizem: por que não estudei? Por que não me esforcei? Por que preferi um emprego em vez da sala de aula? Ao contrário, não se ouve arrependimentos de quem preferiu o esforço e tenacidade, à vida fácil e ao lazer. Sei que Bill Gates abandonou a faculdade, mas não foi para o lazer e sim para a pesquisa. Neste caso preferiu a uma vida de maior disciplina do que a vida acadêmica oferecia.
Mas como chegar à disciplina e organização? Existem medidas externas e internas. As primeiras dizem respeito ao nosso corpo. Significa ter horas certas para as refeições, asseio, trabalho, lazer e descanso. O corpo precisa criar hábitos que pouco a pouco facilitará a própria vida e automaticamente cumprirá sem necessidade de esforço.
Do externo, corpo, parte-se para o interior, a mente. Há necessidade de se aprender a concentrar-se, inclusive fixar-se. A dispersão dissipa as energias. É preciso policiar a mente para que ela não divague fora do foco, o objeto.
O segundo quesito da interioridade é o ritmo e a ordem. Afastar a idéia de querer tudo de uma vez, É preciso seguir o fluxo natural. Há tempo de plantação, de crescimento e só depois a maturação e colheita. Querer saltar ciclos, queimar etapas significa necessariamente fracasso.
O seguinte passo é ter a coragem para transpor o ciclo posterioer, isto é, não querer acomodar- se naquilo que alcançou. Assim como não se pode saltar etapas, também não se pode estacionar numa delas. Ser aluno até pode ser prazeroso, mas é preciso passar para o patamar do profissional.
A etapa adiante é congregar em torno de si outras pessoas. É ser um polo que imanta outras pessoas. Se até então foi um discípulo agora é a vez de ser mestre. Ter a coragem de assumir a liderança.
Na sequência, é não permanecer naquilo que aprendeu, mas criar algo novo, avançar, progredir. E nisso vai risco, mas é preciso assumi-lo se quisermos melhorar. A mesmice enfastia e embrutece. Nós não somos movidos pelo instinto e sim pela razão. As casas do João-de-Barro são sempre iguais em todos os tempos e lugares. As dos homens todas diferentes.

Criado este ambiente o ser humano está apto a comprazer-se na liberdade. Este é o estágio supremo: ser livre na disciplina e ordem.

sexta-feira, 15 de novembro de 2013

O DESASTRE DA CORRUPÇÃO. José Maurício de Carvalho.













O noticiário da semana chamou atenção para a ação escandalosa da quadrilha de auditores da Prefeitura paulista. O país assistiu bestificado mais este escândalo, quando ainda nem havia digerido o do desvio de verbas do metrô paulista. O grupo, apesar de receber salários que fariam inveja a qualquer servidor público da saúde ou educação, algo entre quatorze e trinta e sete mil reais, desviou enormes quantias do tesouro municipal de São Paulo. A quadrilha que subtraiu milhões de reais dos cofres públicos atuou livremente durante pelo menos sete anos. O que isso significa? Que o enorme aparato burocrático que inferniza empresários e funcionários públicos que atendem a população, não serve para impedir o furto quando quem deveria fiscalizar é quem lidera o mal feito.
O mais lamentável não é a pura constatação de que milhões foram desviados do governo da capital paulista, dificultando a concretização de políticas públicas, é que o triste fato é só mais um entre os que quase diariamente chegam aos noticiários. E os que não chegam? O que ocorreu em São Paulo não parece diferente do que acontece em outras Prefeituras pelo país afora. E enquanto se difunde livremente a noção de que o enriquecimento é fruto de um golpe de sorte (pela loteria ou herança), ou ainda pela corrupção, distancia-se do cidadão comum a percepção necessária a qualquer povo de que o enriquecimento é fruto do trabalho continuo, feito com qualidade e da poupança prolongada. Portanto, o maior desastre que a corrupção causa é a desvinculação entre trabalho e enriquecimento, o único caminho capaz de levar uma sociedade a enriquecer verdadeiramente e superar dificuldades financeiras.
O fato nos coloca diante da inevitável necessidade de desenvolver mecanismos de controle da máquina pública que infernizem menos quem trabalha corretamente, mas que impeçam o desvio de recursos enormes durante tanto tempo. Entre as estratégias a ser  desenvolvidas está não apenas o controle das movimentações financeiras e patrimônio desses altos funcionários e seus familiares, mas a multiplicação de entidades sociais que fiscalizam os gastos públicos. Tudo isso só fará sentido se a justiça punir rapidamente os responsáveis e recuperar tudo o que tiver sido desviado, assim como fizer pagar os prejuízos da turma que nos últimos tempos tem quebrado impunemente o patrimônio público e privado.
Considero, contudo, que além das medidas punitivas tão defendidas pela mídia é fundamental a formação moral das pessoas, pois boa parte delas, quando educadas, não se deixa facilmente corromper. E formação moral é a que se desenvolve nas famílias, nas escolas, nas igrejas, nas instituições, etc. E a questão não se resume ao discurso ideal onde o mal feito seja condenado, mas combater suas causas profundas, que são o propósito do enriquecimento rápido e desvinculado do trabalho produtivo e honesto. Para essa mentalidade desastrada de enriquecimento fácil contribui  a propaganda da jogatina disfarçada em prêmios oferecidos nos títulos de capitalização. E mesmo as propagandas oficiais das loterias do governo quando divulgam os seus prêmios como forma de obter uma vida sem trabalho e esforço também favorecem a mentalidade mágica do enriquecimento sem dedicação ao trabalho. Essa mentalidade é parte da noção contemporânea de direitos sem deveres, mentalidade que o filósofo espanhol Ortega y Gasset entendia estar se formando na Europa desde a Revolução Francesa e ser a base da chamada sociedade de massa.

A internet, as novas tecnologias de ensino, as famílias, escolas e igrejas representam momento de ouro para estimular o enriquecimento ligado ao trabalho honesto. Essa mentalidade não se difunde entre nós enquanto houver um restinho da ética medieval do guerreiro que associava a riqueza ao botim e o crescimento da riqueza a apropriação do que estava pronto e feito por outrem.

sexta-feira, 8 de novembro de 2013

O LIMIAR ENTRE O BEM E O MAL. Selvino Antonio Malfatti.























O artigo de meu antecessor intitulado, Um Olhar Novo sobre a Vida”, ensejou-me uma reflexão sobre a questão do bem e do mal.
Entre o bem e o mal há um opaco limiar. Um passo entre ambos.  Quanto desejo o mal somente é desejado se for entendido como bem. O que é preferível: a riqueza ou a pobreza? Não é um mal a pobreza? São Francisco a considerava um bem. Não é um bem a riqueza? Os Evangelhos a condenam.
Às vezes o bem triunfa na consciência. Reflito: está claro, é isso, como não foi visto antes? A paz desce à alma e ela se regozija porque pôde fazer o mal e não o fez. Por isso é creditado ao bem. O não fazer o mal se converte em duplo bem, por isso há um festejo celestial.
Ainda não é virtude, pois esta é o poder de sempre vencer o mal. Tão somente um ato isolado louvável, mesmo heróico, mas não virtuoso. A virtude é o estado da alma e do corpo que consubstanciam o dever ser. Por mais que as ondas batam, o rochedo não se abala. As ondas do inferno não prevalecem contra a virtude. Enquanto houver possibilidade de o dever não ser, não temos virtude.
No limiar a consciência pode atravessar o lado inverso do bem e justificar a decisão pelo mal. O sabor amargo-doce de se convencer de que não há mal no mal, deixa a alma e o corpo tensos. Eles se consubstanciaram em razões não da razão, mas de outros apelos humanos. A razão pode abençoar sentimentos irracionais porque se tornaram mais fortes que a razão. Eles se impuseram como razões mais fortes que a simples razão do dever ser. Por que um amor proibido não pode ser bom? Por que o bom deve ser proibido? A razão raciocina com razões da razão. Os sentimentos possuem uma lógica que a razão desconhece.
O sentimento vai ao encontro do próprio gênero da espécie. No ser humano o gênero da espécie se guia pelo instinto, enquanto a espécie pode negar seu gênero e conduzir-se pela razão. Há um conflito dialético entre o gênero e a espécie. O mal consiste negar a espécie e guiar-se pelo gênero. Por isso o sentimento é contra a razão da espécie mas não contra o gênero. As razões do coração são ignoradas pela razão da razão.
O limiar é o mais aflito dos estados de espírito. Ele está entre o dever ser da razão e o dever ser do gênero ou do coração. A virtude opta sempre pelo dever ser da razão. O vício sempre pelo dever ser contrário ao bem. Tanto a virtude como o vício são exceções, por isso, o limiar é o estado comum. A angústia é comum entre os que estão no limiar. E como o estar no limiar é o comum, a angústia é também o comum.

A razão se esforça para superar o limiar. Ela constrói edifícios morais, sistemas filosófico-morais, princípios universais. O sentimento depara-se atônito perante a parafernália do complexo humano. Pergunta-se: por que não é mais simples? Por que não seguir aquilo que meu coração dita? Por que devo ser diferente dos demais? Sou mais feliz por isso? Por que estou no limiar em vez de entregar-me ao bem de meus sentimentos e instintos?  

sexta-feira, 1 de novembro de 2013

UM OLHAR NOVO SOBRE A VIDA. José Maurício de Carvalho.




Temos assistido triste leitura da vida na imprensa. A mídia mostra a dor diária da perda de muitas vidas e a tristeza de conviver com violência crescente. Talvez estejamos mais preocupados com a violência nestes dias, talvez seja simplesmente porque o homem de nosso tempo aprecie a divulgação do mal. Os meios de comunicação, principalmente a televisão, abusam de noticiar o sofrimento e o crime. Tão certo como a propagação do mal é que raramente se noticia o amor e a solidariedade. Isso significa que o amor em todas as suas formas não é digno de registro? E se não é por que motivo não é? Por que as manifestações do amor são consideradas naturais e comuns? Por que o mal é o extraordinário ou notável? Há nessas questões um problema de perspectiva.
O mais próximo da verdade é que o homem é violento e imperfectível. Em sua vida, em sua ação diária ele não se torna nunca o ideal que concebe de sua humanidade. O que isso significa? Que ele nunca é bom o bastante como gostaria, nunca coerente o suficiente como espera, nunca verdadeiro como devia, nunca amigo como acredita que possa ser. E justo por que não consegue ser aquilo que sua razão reconhece como mais desejável para sua vida que ele nunca se torna como deseja sua razão. Nesse sentido fazer o mal é nossa experiência mais comum. Fazer o mal por preguiça, pois custa fazer o bem; fazer o mal por comodidade, porque frequentemente fazer certo tem consequências perigosas; fazer o mal porque há certo prazer em praticá-lo. Qualquer que seja o motivo tudo aponta para o contrário do que a mídia mostra, fazer o bem é que é fato importante, fazer o bem é que é notável, para lá deveria se dirigir o foco de nosso olhar.
Esse novo olhar para a vida nada tem de inocente ou inautêntico. A vida é luta, é esforço, é empenho, é dedicação pura, contém riscos. Imaginar que o mundo está aí pronto para ser gozado é uma da maiores ilusões que se pode ter. Enfrentar os desafios que a vida traz rotineiramente é o que acompanha os seres humanos em todos os tempos. Todos os dias quando desperta o homem se depara com longa lista de tarefas esperando para serem realizadas, mas principalmente de desafios para serem vencidos. E não há como fugir deles, não há como esconder os problemas, o acirramento da violência urbana, as dificuldades de mobilidade no trânsito, os problemas ecológicos, o custo de vida, a necessidade de aprender novas coisas, de descobrir novos tratamentos para as doenças.
O gozo no mal e o reprise do mal diariamente nas televisões parece ser mais que a busca desesperada por audiência, é mais que um instinto inconsciente de gozo no mal por uma audiência pervertida, ela resulta da banalização da vida. Um homem que não se ocupa com o sentido de sua vida, aprecia olhar a vida dos outros como sendo sem finalidade. Parece-lhe correto ver a vida de crianças, jovens e velhos serem desperdiçadas na rotina de violência e brutalidade de nossas cidades. Por que tais vidas são para ele um nada, um vazio de significado.

Esses dias de violência urbana, de guerras civis brutais, de vidas perdidas nas drogas, de banalização da violência e do crime cobram um novo olhar para o mundo. Um olhar não para encobrir o que se sabe que acontece, mas para mostrar que o mais humano é a esperança de viver no sentido, de realizar-se na busca daquilo que nos faz ser o que somos. Só um novo olhar para a vida nos fará voltar a ter esperança no futuro, fará dele um tempo de novas possibilidades, uma jornada de esperança em meio aos desafios que sempre nos acompanharam e continuarão a fazê-lo em nossa jornada nesse mundo.

sexta-feira, 25 de outubro de 2013

A Justiça e a Ética. Selvino Antonio Malfatti.




















A noção de justiça para a ética é extremamente complexa. Por isso, não é fácil indicar seus aspectos fundamentais.  A primeira observação que podemos verificar é que ela preside a todas as relações intersubjetivas: jurídicas, sociais, políticas e até mesmo teológicas.  Se nos perguntarmos quais os critérios para estabelecermos os parâmetros da justiça constatamos que salta à vista a diversidade de interpretações desde a lei do mais forte até oferecer a outra face. No entanto, as diversas interpretações não significam um relativismo axiológico em relação à justiça. O que acontece são experiências concretas, históricas de justiça de cada uma. Se nos abstivermos desses momentos vividos particularmente, verificamos que ela possui um conteúdo universal.
A Justiça está no âmago da ética. Aquela pressupõe uma igualdade originária entre os seres humanos. A função da justiça não é apenas para dirimir conflitos, mas ser um farol que aponta para as virtudes éticas e concretizar a convivência intersubjetiva pacífica.
A definição dada por Aristóteles é perfeita. Haveria dois vetores de justiça. Um, horizontal, estabelece as relações dos indivíduos entre si na troca de bens e serviços e outro, vertical, estabelece a distribuição dos méritos, evidentemente levado adiante por critérios pré-estabelecidos.
A primeira revela algo extraordinário. A justiça deve ser exercida num ambiente de liberdade, pois só assim todos podem ser considerados iguais. Supõe, portanto, relações de pessoas livres que contratam livremente entre si. A condição primeira para que haja justiça é que ocorra num ambiente de liberdade. Senão, vejamos o inverso: como pode haver justiça, isto é, a permuta entre bens e serviços se uma das partes está privada da liberdade. A que está privada da liberdade será necessariamente explorada, pois a outra fará as regras que lhe interessar. 

Mas como fica a justiça no seio de uma sociedade livre e individualista? Há dois instrumentos para se chegar a ela: os pactos – podendo ser ocasionais, tácitos e os contratos – relação bilateral da distribuição de bens e serviços. Isto por que o pressuposto ôntico do ser humano é da igualdade metafísica e desigualdade social, ambas decorrentes da racionalidade e liberdade. No entanto, embora os pactos e contratos sejam os únicos meios numa sociedade individualista para se atingir a justiça, não se pode dizer que sejam uma garantia de cem por cento. Os egoísmos e interesses podem atropelá-los e consequentemente vão afetar a justiça. Além disso, e muito mais grave, é o poder político querer uniformizar os interesses, tornando-os todos igualitários. A justiça tem por fim conciliar uma igualdade originária com uma efetiva desigualdade. Por isso, por paradoxal que seja, sem desigualdade, não haverá justiça, por que esta supõe espaço para as diferenças.

sábado, 19 de outubro de 2013

O Brasil e o ocidente. José Maurício de Carvalho




Há muitas formas de entender o Brasil e de explicar suas virtudes e dificuldades. Minha geração cresceu ouvindo explicações sobre os problemas do país e a maioria delas hoje soa  destituída de sentido. Esses comentários reaparecem vez por outra causando confusão e bastante mal. Eles nunca me  convenceram, mas apenas hoje, um pouco mais maduro, um pouco mais estudado, um pouco mais crítico e um pouco mais preocupado com o destino da pátria consigo entender melhor a razão. E por que é importante desmascarar essas explicações? Por que elas colaboram para popularizar uma imagem distorcida do que somos e nos afasta, pela inconsciência, de um futuro melhor.
A primeira delas é: o Brasil é um país jovem. E o que se quer dizer com isso? Que a juventude histórica explica nosso atraso econômico e cultural. Como estado nacional, o Brasil nasce em 1822, mas seu espírito não é jovem. Foi colônia por três séculos, mas desde o final do século XVIII começou a ser preparado para ser o centro do Império lusitano. O Brasil é realização do projeto nacional da geração pombalina e tem os méritos e limites desse projeto. Boa parte das nações da Europa só se consolidaram na modernidade e alguns países como a Itália e a Alemanha só se unificaram como Estado nacional em 1870, bem depois de nós. O afastamento político de Portugal depois da independência não nos fez, no íntimo, diferentes do projeto português que nos concebeu. Encontra-se nele as razões de nossas virtudes e dificuldades, lamentável que o conheçamos pouco.
Outra afirmação ingênua é: O Brasil recebeu do criador  natureza generosa. E o que isso significa? Que estamos protegidos das catástrofes naturais que assolam outras partes do mundo e aqui a vida é fácil. Houve uma época na Europa que se julgava ser a América o país da Cocanha. Grande ilusão, o Brasil tem problemas com sua natureza como outros povos. Implantar nessa região do globo uma grande nação é um empreendimento hercúleo. Estamos numa região de muito calor durante quase o ano todo, temos solo pobre na maioria do território, tempestades tropicais, uma enorme região semi-árida e outra com parte significativa da maior floresta equatorial do mundo. Esses ambientes são de difícil adaptação e demandam tecnologia própria para conviver num local tão diverso da velha Europa. Apenas o sul tem clima e território parecido com a Europa, berço do ocidente.
Segue-se esse outro primor de incorreção: o brasileiro tem preconceito racial. Se há algo que não temos é isso, pelo menos se entendermos por preconceito o modo como outros povos enxergam estrangeiros e/ou tratam outras nacionalidades. Há preconceito contra o pobre, infelizmente. E a razão é a péssima distribuição da riqueza, última herança da velha nobreza lusitana. Aquela mesma aristocracia improdutiva que vivia dos favores reais, quase sempre cultivando aparências, julgando-se melhor que o cidadão comum, distraindo-se no ócio e na caça, tentando aparentar mais do que verdadeiramente possuía e podia. Pombal fez o que pode para acabar com essa nobreza improdutiva, mas não conseguiu.
Essa outra é ótima: somos pobres porque fomos explorados por Portugal. Essa é a joia rara do marxismo tupiniquim e do chamado terceiro mundismo. Pombal na hora do aperto disse algo parecido ao rei D. José I para explicar a decadência portuguesa: somos pobres porque a Inglaterra nos explora. Safou-se, mas deixou um mau exemplo, qual seja, culpar os outros por nossa incompetência. Na verdade, se tivéssemos que pagar o custo da implantação da nova nação: casario, estradas, pontes, palácios, bibliotecas, igrejas, instalações militares, creio que ainda deveríamos a Portugal, mesmo descontados os impostos pagos e o ouro embarcado. O que nos faz pobres é a dificuldade de viver o espírito do capitalismo ou do mercado como se diz hoje em dia. E isso decorre principalmente de nossa matriz católica (como a espanhola e italiana). Max Weber e sua geração compreenderam que a cristandade ocidental encontrava-se dividida entre dois projetos distintos: um católico e outro protestante. O segundo favoreceu o desenvolvimento do capitalismo, o primeiro não. Só há uma forma de enriquecer como povo: trabalhar muito e com qualidade, poupar e investir no que gera riqueza.

O Brasil é um país ocidental, sua raiz íntima não se afasta dos valores centrais do ocidente: a pessoa, a democracia liberal, o estado de direito e a liberdade. Nossa cultura está estruturada sobre os três pilares do ocidente: a cristandade, a forma jurídica romana e o cultivo do pensamento lógico que é a base da ciência e da filosofia. Nossas dificuldades econômicas, a má gestão da coisa pública, a corrupção e a falta de uma moralidade que não esteja amarrada no direito ou na religião, nossos problemas sociais, a má distribuição da riqueza e a intransigência de impor à força interesses particulares de pequenos grupos (sindicatos radicais e vândalos de plantão), enfim, nossos problemas, nossa timidez e falta de espírito crítico são mazelas de nossa formação cultural.

sexta-feira, 11 de outubro de 2013

Valores éticos cristãos. Selvino Antonio Malfatti

















O pontificado de Francisco sinalizou novos rumos para o catolicismo, tanto na maneira de pensar, como do agir e mesmo do sentir. No pensar propõe-se ao debate a cima da tradição. No agir abriu mão das parafernálias burocráticas e no sentir até se propõe a acolher os excluídos da grei. Isto marca novos tempos, um espírito de “aggiornamento” de João XXIII.
Estas atitudes de Francisco levaram à reflexão sobre a ética cristã. Para o catolicismo a ética está alicerçada no Absoluto. É Dele que ela emerge e é para Ele que ela tende. Este Absoluto é identificado com Deus. Mas não é nenhum deus abstrato, filosófico, “ex- intellecto”, mas um Deus identificável e identificado: o Deus cristão. O cristianismo deixa claro seu pensamento sobre a questão. É nele que repousa a ética cristã.
No entanto, isto não significa que tenhamos, nós cristãos, que assumir uma ética absoluta. Na vida prática, na convivência com nossos semelhantes, temos que ter outros princípios que supram as lacunas da ética absoluta. Por exemplo, a caridade é superior à justiça. Podemos ser caridosos sem sermos justos e vice-versa. Por isso, o cristão atual tem seus próprios princípios e sua ética, mas não postula impô-los aos demais.
Como diz um filosofo português, Eduardo Abranches do Soveral, os valores cristãos atualmente estão disseminados em escala universal. Já fazem parte da cultura de todos os povos. O principal deles: a valorização do Homem e da Mulher na sua dignidade, liberdade, igualdade, fraternidade e a justiça social com suas exigências. No entanto, pensa ele, os valores cristãos se descristianizaram tomando quase que vida autônoma. Existe na atualidade uma cultura de origem cristã, no entanto não se autoidentifica com o cristianismo. Ela impregna toda nossa sociedade pelo seu volume, opacidade, desumanização e fragilidade.
Há, atualmente, um valor peculiar da cultura cristã presente na sociedade. Trata-se do intelectual cristão que se apresenta como o mediador entre o homem de rua e a cultura, como criador desta mesma cultura e que assume uma posição declaradamente ideológica, com convicção e fundamentação. E como é este intelectual cristão? Quais suas características?
A primeira característica é de que seja limpo de coração, isto é, uma pessoa que vive com Deus, em estado de graça. Em segundo, que conheça o conteúdo dos Livros Sagrados e a Doutrina da Igreja e, finalmente, tenha uma visão prospectiva da cultura cristã genuína e primacial em oposição a outras culturas como a marxista, por exemplo. E quais as prospectivas cristãs mais salientes do intelectual leigo cristão?
O progresso. A ideia de progresso é de origem cristã, quando este é entendido como perfeição pessoal, sentido para História, crescimento indefinido de todas as atividades do homem, do universo em geral e dos seres vivos. Em síntese, Deus e Homem são os sujeitos da História.  
A pessoa humana. Cada homem é uma pessoa e não um indivíduo. Possui uma dignidade conferida pelo próprio criador e uma natureza assumida pela própria divindade.
A fraternidade dos homens. Os homens são irmãos por serem filhos do mesmo pai, que é Deus. Esta fraternidade é a origem de sua liberdade e igualdade relativamente de uns para com os outros.
Caridade. A caridade é pessoal, de coração para coração e não para com os homens em sentido universal. A caridade começa com os mais próximos – pais, irmãos, vizinhos, companheiros de trabalho etc. – e depois estende aos demais. Isso tem sentido como um Corpo Místico de Cristo. Sempre na situação concreta e não geral. Cada um seja um Cristo na situação concreta. “É professor? Seja Cristo como professor. É aluno? Seja Cristo como aluno. É empregado? Seja Cristo como empregado” Isso sem arrogância ou afetação e muito menos exigência. Sejas tu e aceite o que o outro quiser ser.

Esta é a ética do cristão atual.

sexta-feira, 4 de outubro de 2013

SÃO JOÃO DEL REI - A vila de 1713. José Maurício de Carvalho.




Comemoramos este ano os trezentos anos da elevação do arraial velho à condição de vila. O fato se deu em 1713, quando reinava em Portugal D. João V. Na organização política da antiga metrópole a vila era um estágio superior a dos aglomerados humanos espontâneos, primitivos e pouco complexos denominados arraiais ou aldeias, embora  vila fosse organização administrativa inferior à cidade. De todo modo, ser reconhecido como vila no sertão das gerais, em 1713, não era pouca coisa. Significava que o povoamento que se formara espontaneamente pela busca do ouro já tinha organização urbana consolidada: Igrejas, praças, ruas, atividade econômica de relativa importância. E tanto tempo de existência num país de quinhentos e poucos anos dá à cidade de hoje tradição, melhor dizendo lastro cultural.
O fato evoca a inevitável questão: essa antiguidade significa algo? O que é ser são-joanense? Dito de outro modo: há alguma coisa que diferencie o são-joanense dos outros brasileiros ou dos homens em geral? Como são-joanense considere-se não só os que nasceram aqui, mas os que adquiriram identidade com o lugar e o escolheram para viver. Não é fácil uma resposta razoável para tais indagações e o que se diz abaixo é uma perspectiva, uma forma de olhar.
O ponto de partida para responder às questões acima é o reconhecimento que ser são-joanense é uma forma de ser homem. De fato, os são-joanenses participam do destino da comunidade humana. São também brasileiros e mineiros. Muito bem, os são-joanenses são homens nascidos ou cuja história se liga a esse lugar preciso. Alguém poderia dizer e é verdade que essas respostas não nos levaram muito longe e continuamos diante da necessidade de responder se somos diversos dos outros brasileiros e mineiros? Muito bem, não se é são-joanense porque se nasceu aqui. Se assim fosse ninguém  poderia se identificar e se considerar são-joanense. Esse é o ponto central. Não se é são-joanense por destino, por um acaso que nada tem a ver com nossas escolhas. Se fosse o caso não seria preciso fazer nada para ser são-joanense, mas ser são-joanense é tornar-se são-joanense, é incorporar um modo de viver.
E, nesse ponto, amplia-se a complicação, pois as ciências, as religiões, as artes ou as filosofias não podem dar uma resposta razoável para as questões acima. Eis aí a conclusão inicial: tornar-se são-joanense é se tornar um tipo especial de homem, de cidadão, de brasileiro e de mineiro. E isso é possível? Há algo que distinga o são-joanense dos outros brasileiros e mineiros? Eis o centro da questão: ser são-joanense não é exterior ao ato de tornar-se são-joanense. E o que isso significa: o que é mesmo tornar-se são-joanense?
Ainda que seja uma resposta incompleta ser são-joanense é aprender, com as gerações passadas, a amar o país. Um aprendizado contínuo de entrega e sacrifício no trabalho diário e nos grandes desafios. O Brasil nasceu do sangue de Tiradentes e dos sonhos de liberdade de seus amigos. Sobre eles Tancredo Neves se pronunciou certa vez: "A nação nasceu aqui na rebeldia criadora dos Inconfidentes" (Sua palavra na história, p. 239). Essa mesma nação foi defendida pelo Regimento Tiradentes na Segunda Guerra Mundial. Naqueles dias de ameaça à liberdade muitos são-joanenses, como Tiradentes, também deram a vida pela pátria. Tancredo Neves mostrou, há menos tempo, com carreira política impecável e sacrifício pessoal, o que significa servir a pátria. É esse passado de patriotismo dos são-joanenses de ontem que inspira e serve de modelo aos de hoje.
Tornar-se são-joanense é também cultivar a latinidade pelos olhos dos portugueses fundadores do lugar. Eles nos legaram uma forma jurídica de pensar a cidade e a crença no cristianismo, ambas herdadas de Roma e, mais que tudo, a noção de que pátria é união de esforços mais do que identidade de sangue. É o que nos faz viver em clima fraterno com: italianos que para cá vieram no século XIX, comunidade árabe que nos enriqueceu com sua cozinha e trabalho e africanos que, trazidos à força por circunstâncias históricas, hoje integram a sociedade com a alegria e entusiasmo que lhes é próprio. Ser são-joanense é viver a singular unidade nascida desses grupos que aqui convivem, sem ódios, sem exclusivismos, sem disputas étnicas.
Tornar-se são-joanense é descobrir na tradição de fé ardorosa dos fundadores a crença em Deus, no homem e no futuro, pois uma fé que não se vive no respeito a outras crenças e não nos faça melhores do que somos não é digna de cultivo. E a fé maravilhosa que recebemos de nossos pais fundadores se expressa em manifestações como a Semana Santa e as festas dos santos e santas de Deus. Essas manifestações são a porta de entrada para a transcendência. Uma fé que, sem ser invalidada pela razão, é uma fé que ajuda a dar sentido à vida e hoje pode chamar Deus de muitos nomes e lhe dedicar muitos cultos. Essa fé tão linda é que aproxima o reino de Deus desse mundo.
Tornar-se são-joanense é aprender que ir ao futuro. Mais que possuir planos, ideais e esperanças é respeitar o passado. Assim, o propósito de fazer a cidade linda de nossos sonhos passa pelo compromisso de preservar a arquitetura tradicional, de cuidar da paisagem urbana, de ampliar as áreas verdes, de construir com qualidade e respeito às normas e leis que regem a ocupação do espaço público.
Tornar-se são-joanense é cultivar o belo em todas as formas de arte: na música barroca das orquestras centenárias, na representação dos grupos de teatro, nos sons das bandas históricas, nos livros dos escritores, nos santos e peças barrocas que saem renovados das oficinas de restauro, nos quadros de nossos pintores, no maravilhoso artesanato da cidade, nas peças de estanho hoje comercializadas em todo o mundo. Enfim, descobrir o belo em tudo o que encanta na explosão de criatividade que se supera em cada nova obra criada.

Tornar-se são-joanense é descobrir a linguagem dos sinos, encantar-se com a beleza das torres que os sustentam enquanto giram no ar, é andar leve pelas ruas estreitas da cidade, admirar as luzes e sons do presépio da Muxinga, contemplar o desenho maravilhoso dos jardins centenários. É aprender a amar esse arruamento de trezentos anos com que a mão do homem enfeitou a natureza do vale do Lenheiro.

sexta-feira, 27 de setembro de 2013

UMA ÉTICA DA ESPERANÇA. Selvino Antonio Malfatti




Se partirmos da constatação de que existimos, de imediato veremos a precariedade de nossa existência. Não conseguimos recuar até o instante de nossa consciência, de nossa interioridade que, iluminada toma consciência de si. Estamos suspensos, sem ser e com desejo de mendigos de tê-lo.
Quando ocorreu o acender de nossa consciência? Tudo se esvanece no passado longínquo o qual não conseguimos identificá-lo. Caminhamos sobre o Nada, como o Mestre caminhava sobre as águas.
O que nos consola como reduto último é a Esperança. Entre o Ser e o Nada, perigosamente suspenso sobre a Morte, o homem consegue viver porque se recusa cortar o fio da Esperança. Se for rompido, cairemos no Nada.  Os acenos das Angústias, do Cuidado, da Náusea na verdade são apenas acenos do desespero, pois são formas de cortejar o Nada, de quem pendula entre a Vida e a Morte.
A Luz pode ser a metáfora da vida, enquanto a Noite da Morte. O primeiro um ser-em-si e o segundo o não-ser. Esta dualidade reflete-se na gnosiologia na relação entre sujeito e objeto. No ato do conhecimento o sujeito não só contempla o objeto, como o objetiva. A relação imediata que surge é uma bipolaridade de eu-isto. Neste primeiro contato sujeito-objeto estabelece-se uma relação fria. O primeiro ignorando a concretude do segundo e este reduzindo ao mínimo sua concretude. Desta relação surge uma metafísica materialista ou mesmo estruturalista. Esta relação, sujeito-objeto, nos leva a renunciar ao conhecimento da Vida, do Homem e do Espírito, pois há um sujeito diante de uma coisa e vice-versa. Será possível outra relação? É possível desde que a relação que se estabeleça seja de natureza de Eu-Tu , Nós-Ele, Eu-Vós. Esta relação muda a natureza, pois em vez de objetos, coisas, há relações de sujeitos inter-subjetivos. Com esta relação é possível captar a vida, o espírito e o Homem concreto. O existente humano é o ser-em-si em trânsito na busca do Ser-em-Si-para-Si.
Cada homem é uma pessoa, pois é capaz de reconhecer-se a si mesmo. O fundamento da pessoa reside na liberdade própria e do outro. O outro é um ser livre igual a mim. Sendo assim o conhecimento que tenho dele é sempre provisório, pois o outro é continuamente um processo em aberto. O outro não é como outro ente que posso conhecê-lo na sua essência, pois ela se revela no fenômeno e está definitivamente definido, isto é, ele não é objetivável, pois, o outro está continuamente em mudança. Além disso, por ser livre não posso adivinhar qual a intenção que o guiará. Na relação intersubjetiva, entre pessoas, o conhecimento não se faz por causa e efeito, mas pela espontaneidade, pois tem a iniciativa da ação e não ser causado.
Com efeito, a idéia de liberdade alheia faz com que o outro se nos apresente como incognoscível dificultando o entendimento dele como um fenômeno puro e assim possa conhecê-lo na sua essência. Por isso o acesso gnosiológico é sempre provisório devido à imprevisibilidade da intenção que o moverá.

No entanto, lançando mão da reflexão posso ter conhecimento de minha consciência e como o outro também tem consciência posso ter um conhecimento analógico. Por outro lado, o conhecimento do outro o leva a externar-se, como por exemplo, a cultura. Este fenômeno pode ser objeto de minha consciência e por isso tenho um conhecimento essencial. Por isso, indiretamente, através da cultura posso conhecer o outro. Por sua vez, as manifestações existenciais do outro e que também são minhas podem me lavar ao conhecimento do outro como é o caso, da morte, sofrimento, injustiças e outros. Disso decorre que os outros, por serem livres, podem ser nossos conviventes fraternais como nossos inimigos figadais.

sexta-feira, 13 de setembro de 2013

AMIZADE. Selvino Antonio Malfatti.





Uma criança sorrindo. Um beijo de mãe. Um abraço de pai. Um enlace de namorada. Um aperto de mão. O que tudo isso evoca em nós? A alegria. E o que nos torna plenos de júbilo? A amizade. A amizade tem o poder de despertar em nós a alegria. Até nos momentos mais tristes podemos sentir alegria se estamos com amigos. A amizade esquece a pobreza, fortalece o sofrimento, perdoa a ingratidão.  Mesmo quando nos despedimos de um ente querido, se estivermos rodeados de amigos, podemos sentir a tristeza envolta na alegria. Amizade e alegria são dois sentimentos que se irmanam, se completam. São almas gêmeas que querem estar sempre juntas.
Quando sentirmos a cadência da amizade, a alegria irrompe aos borbotões no coração. Dispara quando ouvimos a voz do amigo. A amizade pode nos elevar aos céus, imaginar uma humanidade irmanada, um mundo se dando as mãos e entoar a sinfonia de "Ode à Alegria" de Beethoven ou um "Va Pensiero" de Verdi. A amizade nos desprende desta terra, nos deixa levitando no espaço, voando com o pensamento como se não tivéssemos corpo. A amizade é o mais belo presente que alguém pode receber. Ela vale por toda sabedoria, todos os dons, todas as riquezas. Ela enche todo coração. A amizade não necessita de mais nada, ela é completa em si, ela dá alegria.
Estes pensamentos me vieram à mente por ocasião do Colóquio que aconteceu esta semana na Universidade federal de São João Del Rei, Minas Gerais, do dia 9 até 14 de setembro de 2013. Aqui encontrei amigos e antigos mestres  e professores Antonio Paim, Ricardo Vélez Rodriguez e Anna Moog, do Brasil. José Esteves Pereira e Antonio Braz Teixeira, de Portugal.  Colegas professores de universidades de todo Brasil como José Maurício de Carvalho, Tiago Lara, Leonardo Prota entre outros.Uns não estiveram mais presentes como sempre faziam: Caeiro e Soveral, de Portugal e Maciel de Barros e Mercadante do Brasil. Entraram na História 
O tema central deste Colóquio foi a ÉTICA. Os conteúdos desenvolvidos, por professores brasileiros e portugueses, foram os seguintes:
- O debate em torno das concepções éticas e do seu ensino - Prof. Dr. José Esteves Pereira – UNL
- A moral positivista de Luís Pereira Barreto - . Dr. Fábio de Barros Silva – UFSJ
- A moral positivista  de Sílvio Romero e Teófilo Braga - Prof. Dr. Ricardo Vélez Rodríguez – UFJF
- A ética cósmica de Sampaio Bruno - Prof. Dr. Joaquim Domingues- IFLB
- A ética em Farias Brito - Prof. Dr. Leonardo Prota – IH
- A ética criacionista de Leonardo Coimbra - Prof. Dr. Manuel Cândido Pimentel - UCP
- A ética racionalista de António Sérgio e Raul Proença - Prof.ª Dra. Romana Valente Pinho -
- A ética naturalista e neoutilitarista de Edmundo Curvelo e Mário Sottomayor  Cárdia - Prof. Dr. António Braz Teixeira - UAL
- A ética de Leônidas Hegenberg - Prof. Dr. Leônidas Hegenberg - ITA
- A teoria da experiência ética de Antônio Paim - Prof. Dr. Antônio Paim - IBF
-A ética fenomenológica de Eduardo Abranches Soveral - Prof.Prof. Dr. Selvino Malfatti - UFSM
- A ética culturalista de Miguel Reale - Prof. Dr. José Maurício de Carvalho -UFSJ
- A crítica ao culturalismo – A Ética negativa de Júlio Cabrer- Prof. Dr. Júlio Cabrera – UnB
- Ética existencial de Vicente Ferreira da Silva - Prof.ª  Dra. Constança Marcondes César - UFS
- Ética existencialista de Luís Araújo - Prof. Dr. Renato Epifânio -
- Ética neotomista de Urbano Zilles - Prof. Dr. Tiago Adão Lara - UFU
- Ética neotomista em João de Scantimburgo - Prof.ª  Dra. Anna Maria Moog Rodrigues - IBF
- Ética dialética de Henrique Cláudio de Lima Vaz - Prof. Dr. Delmar Cardoso - FAJE-BH
- Ética neoidealista de Antônio José de Brito - Prof. Dr. Miguel Real
- Crítica ao desenvolvimentismo – a ética de Mário Vieira de Mello - Prof. Dr. Paulo Margutti – UFMG


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